O MELHOR DA VIDA

A vida deveria ser sorvida, apreciada como uma boa bebida, era o que sempre dizia. Ele costumava usar vários nomes, diferentes, um para cada ocasião, fazia uso de inúmeros artifícios para consolidar seu status de “bon vivant”. Nunca se dera ao trabalho de verter o próprio suor para colher os benefícios da boa vida que tanto prezava, na verdade, trabalhar, na essência da palavra, era algo terminantemente proibido em seu dicionário.

André Valente, assim se apresentava atualmente, exercia um verdadeiro culto ao próprio corpo. De acordo com seu pensamento, este seria a sua principal fonte de renda, além, é claro, do impressionante poder de persuasão que detinha. Naquela noite, elegantemente trajado, faria uso do conjunto de armas que dispunha para estreitar os laços com a vítima que havia, há algum tempo, escolhido.

Dolores Remy era viúva há muitos anos, mas ninguém jamais testemunhara um novo afeto em sua vida, não que pretendentes lhe faltassem, longe disso, além de extremamente rica, sua beleza era um presente aos olhos alheios, não aparentava a idade que possuía e nunca fora um mero adereço para seu finado marido, os mais íntimos classificavam sua personalidade como forte e marcante. Embora se enquadrasse nos padrões mais refinados da alta sociedade, sempre rejeitava a imagem fútil que muitas de seu círculo faziam questão de ostentar.

André sabia que ela era um alvo difícil, mas se ele tinha uma característica da qual se orgulhava era essa, confiava demais na auto-estima, apostava alto no próprio poder de decisão, e os resultados nunca o decepcionavam.

Distribuindo galanteios e sorrisos, o homem desfilava e deslizava suavemente pelos salões, não havia uma só pessoa que não se afeiçoasse com o seu carisma. Antes que alguém mais atento pudesse perceber, André já estava infiltrado entre os contatos mais próximos da ilustre dama, e sem que a própria desse conta, já estava oferecendo uma taça de vinho para o sujeito.

Apenas algumas horas foram suficientes para que a fortaleza de Dolores desabasse, a imagem que gostava de apresentar, bem como as bases de sua personalidade, sucumbiam aos encantos irresistíveis do até então estranho que a tomava nos braços, tendo somente os arbustos do vasto jardim como testemunhas. Tal qual uma adolescente com os hormônios em ebulição, ela se via completamente domada pela vontade de André.

Durante os meses que se seguiram, ocultos dos holofotes da mídia e demais curiosos, os dois mantiveram um relacionamento arrebatador e voluptuoso. No início, André conseguiu atingir alguns objetivos que arquitetara, era muito bem tratado, ganhava presentes caros, usufruía de tudo que o dinheiro era capaz de proporcionar. Entretanto, aconteceu algo que não estava em seus planos. De maneira lenta, porém incontrolável, uma chama começou a arder em seu peito, André passou a enxergar na mulher algo mais do que uma simples oportunidade, e pela primeira vez na vida encontrava-se envolto pelo manto irresistível dos encantos femininos.

Enfim encontrava uma felicidade diferente, algo que estava muito além do que o vil metal poderia fornecer, ele desejava gritar, expor para o mundo o que sentia, pois Dolores partilhava do mesmo sentimento que agora explodia em seu peito. No entanto, ela não gostava de dividir detalhes da sua vida particular com a sociedade, achava que era um direito seu evitar que o julgamento do mundo interferisse no que havia escolhido para si, afinal, o rapaz era muitos anos mais novo do que ela.

Decidiram viajar, casaram-se no exterior, numa cerimônia reservada, retornando para uma temporada na residência de campo. Dolores dispensara todos os empregados da casa, para que tivessem mais privacidade durante os dias vindouros.

Naquela tarde, tão logo chegaram, André foi surpreendido por uma sonolência inimaginável, mal recostou no sofá, sentiu-se abraçado pela maciez do estofado e adormeceu profundamente. Nunca tivera nenhum tipo de distúrbios do sono antes, mas fora acometido por terríveis pesadelos, tão reais que chagavam a causar dor, tanto no corpo, quanto na alma. Acordou com o som do próprio grito. Já era noite, uma tempestade incoerente desabava, no lado de fora apenas alguns pontos luminosos dos postes quebravam a escuridão do local.

Estava sozinho na imensidão daquela casa, não sabia explicar o porquê, mas sentia uma profunda melancolia no peito, semelhante ao que uma criança longe da mãe sente, um verdadeiro animal acuado e temeroso. Chamou pelo nome da esposa, obteve o silêncio como resposta. Sentia-se indefeso, como não estava acostumado a sentir, sempre fora senhor absoluto da situação.

Executou passos medidos, o ambiente era estranho para ele, cada contorno era uma novidade. Ainda mais às escuras do jeito que estava, um clarão iluminou o céu e ele achou ter visto algo se mover por entre as cortinas, o ar subitamente ficou mais gelado. Ao olhar para as vidraças das gigantescas janelas, notou marcas de vapor condensado, como se alguém tivesse respirado pesadamente ao longo de toda a parede envidraçada. O rastro de gotículas terminava numa porta entreaberta.

Não havia uma única palavra que pudesse expressar o turbilhão de apreensão, medo e fragilidade que tomava de assalto sua alma. Ele pensou em fugir, invadir a escuridão da noite, mas o sorriso macabro formado pela vegetação no lado de fora, e a incerteza sobre o paradeiro da amada não serviam de estímulo. Na companhia da mulher mergulharia no desconhecido sem hesitar, mas sem a convicção do seu bem-estar seria impossível. Nunca poderia imaginar o simples fato de colocar uma outra pessoa em prioridade com relação a si próprio, como fazia agora.

Caminhava em direção a porta quando ouviu um grito que o fez apressar o passo, irrompeu pelo vão utilizando um chute para escancarar a folha de madeira. O que seus olhos viram o fez tremer mais do que o frio congelante até então fizera.

Dolores estava fixada na parede, porém sem nada que a atrelasse à superfície lisa. Ela tentava se soltar, mas era puxada como se um poderoso imã a chamasse. Um olhar petrificado e frio estampava seu rosto, como se tivesse cruzado com algo incapaz de pertencer a esse mundo sem causar dano. Alguma coisa insensível e maléfica, como o que estava naquele momento atrás de André.

O rapaz mal teve tempo de se virar no intuito de encarar a criatura que exalava um hálito putrefato às suas costas, fora abocanhado pela parte de cima da cabeça e jogado ao chão. De nada adiantava se debater e gritar, ninguém poderia ajudá-lo ou ouvi-lo. A esposa, que assistia a tudo com lágrimas nos olhos, encontrava-se tão incapacitada quanto ele. O demônio de contornos indescritíveis devorava a carne do homem com urgência e sofreguidão, no final apenas um esqueleto completo e ensangüentado restava.

- Por que você tentou esconder esse? – Perguntava a criatura enquanto lambia alguns ossos, sem olhar para a mulher e com um tom sibilante na voz.

- Porque eu o amava – disse aos prantos.

- Amar? Você não tem direito a isso. Esqueceu quem você é? Do que fez? Do nosso trato?

- Não, não esqueci, mas eu pensei que...

- Cale-se, humana! Eu lhe dei tudo! Status, influência, beleza, longevidade, dinheiro, a única coisa que você deve fazer é trazer carne fresca para mim, não uma carne roubada, mas uma que se encante pelo que te dei, por isso você não tem direito a sentimentalismo, essa é a regra, você sabe muito bem disso.

A mulher despencou da parede, ferindo os joelhos na queda. Ficou ao lado dos restos mortais do marido. A criatura se aproximou com a língua gotejando um líquido avermelhado.

- Agora junte esse esqueleto aos demais, seus outros maridos desejam companhia – a criatura gargalhou, enquanto desaparecia nas trevas absolutas.

André nunca imaginou terminar dessa maneira, amontoado numa pilha de ossos esquecidos. A vida, de fato, precisava ser sorvida, e a dele fora drenada, em essência, até a última gota.

Longe dali, na sala vip de um aeroporto, uma requintada dama levava aos lábios a porcelana fina de uma xícara preenchida por um chá forte e aromático. Um senhor de cabelos grisalhos e porte imponente não resistiu ao magnetismo da mulher e se aproximou.

- Desculpe a ousadia – disse, já tomando assento numa confortável poltrona – meu nome é Alberto Torres.

- Muito prazer, Dolores Remy.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/12/2009
Reeditado em 20/12/2009
Código do texto: T1984702
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