Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 1

- Você fica aqui... até eu voltar - disse o demônio, rindo, lançando um último e perverso olhar para seu apavorado hóspede antes de fechar a porta e sumir.

O homem que agora estava trancafiado tinha ares de adolescência marcados nos traços leves de seu rosto. O cabelo escuro e comprido caía em seus ombros, misturando-se com os fios bem mais claros das grossas cordas que apertavam seus braços junto à cadeira onde havia sido amarrado. Uma mordaça ainda mais apertada tapava sua boca e suas narinas, fazendo-o sentir continuamente o gosto seco do tecido absorvente.

Não que necessitasse respirar...

Ele estava preso, atado a pés e mãos àquela cadeira grossa e pesada de madeira. Cabeça baixa, sentia-se humilhado tanto quanto amedrontado. Sabia não ser pessoa das mais fáceis de se lidar... Sabia não se tratar de uma pessoa comum, como as outras. Uma pessoa normal.

Não, de normal ele não tinha nada. Conhecia poderes e possuía capacidades capazes de pôr à prova os nervos do mais corajoso dos mortais. Capacidades sobrenaturais, por assim dizer. No entanto, suas fantásticas habilidades de nada valiam, e ele estava ali, atado, imprestável, com os nervos esfarrapados, a cabeça girando em devaneios improdutivos.

Lembrava das palavras que o recém saído havia dito.

“Sou como vocês”, dissera. “Preciso me alimentar... preciso de sangue... de um tipo especial de sangue.”

O homem, o demônio, ele vestia trajes antiquados. Uma espécie de capa preta, algo que lembrava uma cartola em sua cabeça, tudo cheirando a mofo. Partes visíveis do tecido estavam rasgadas ou descosidas, e a roupa daquele ente, de tão desbotada e manchada parecera-lhe não só estar representando um dos trajes típicos do início do século como também ter sido trazido com exclusividade de tal época.

Um triste ornamento, bastante adequado às características de quem o vestia, pois o demônio mais parecia ter sido materializado a partir de um pesadelo: suas carnes davam a impressão de estarem prestes a se descolar em torno dos ossos, tamanha a flacidez que aí se via. Pele não existia, a não ser uns restos de cartilagens escuras e mortas, penduradas aqui e ali em mãos de dedos que eram tão finos quanto possantes. Dedos que o tinham agarrado e imobilizado sem nenhuma dificuldade, momentos após ter se dado o encontro fatal.

O rosto do demônio, inesquecível como um trauma, erguia-se perante sua imaginação com abominável freqüência. Os olhos soltos, vazados, porém plenos de vida; o nariz destruído, sem sustentação - um punhado de carne escurecida e enrijecida, que deixava visíveis as cavidades nasais. Os nascedouros dos dentes claríssimos à mostra por debaixo da pele seca do queixo e da mandíbula. Os cabelos secos e quebradiços...

“Vocês são as aranhas”, havia dito o demônio, com sua voz tão seca quanto o seu corpo. “Os outros, os vivos, são as moscas, que vocês capturam... e eu sou a vespa da terra. Assim como vocês precisam das moscas... eu preciso de vocês...”

Enquanto falava, havia amarrado-o com surpreendente facilidade.

“Vocês... vocês são a doença dos outros. A doença das moscas... E eu sou a cura. Sou a doença de vocês!”

O demônio partira, envolto em seu manto esfarrapado de mendigo, deixando-o ali, neste lugar sombrio, com os ecos de suas últimas palavras, que tinham força suficiente para continuar reverberando pelas paredes de sua mente, ecoando talvez pelos séculos afora.

Era uma casa pequena. Tijolos não cozidos à vista, formando paredes toscas. Teto de tábuas. Chão batido, de terra úmida e barro pisado. Uma única porta, grande e dupla, constituída de tábuas grossas, como as do teto. Palha seca e capim espalhados pelo chão. Um cocho de madeira pendurado de alguma forma em uma das paredes, além da pequena e fraca lâmpada, suspensa pelo cabo elétrico que a alimentava no ponto mais central do teto, e que surgia através das divisas das grandes tábuas ao alto. Uma lâmpada que, mesmo estando desligada, não o impedia de vislumbrar com relativa facilidade todos os contornos deste estábulo onde fora deixado, imerso na escuridão da noite.

Enxergar ainda era tão fácil para ele. Ver luz onde só havia escuridão.

Mas de que isso lhe valia...

Não havia dúvida de que estava em um subúrbio qualquer, ou mesmo em uma distante zona rural. Sentia resquícios do hálito adocicado do leite; o cheiro forte, remanescente dos verdadeiros ocupantes deste lugar - vacas e bois, que deviam encontrar-se muito longe das imediações, afinal, mesmo concentrando ao máximo sua outrora privilegiada audição não os podia captar.

Sequer escutava as respirações destes animais. Nem mesmo os insetos da noite e o som da cidade ao longe podiam ser ouvidos.

Estava sozinho, em um fim-de-mundo qualquer, e por algum motivo não podia contar com a plenitude de suas habilidades de percepção. Ouvia como uma pessoa qualquer, o que, para ele, eqüivaleria a dizer que havia ficado surdo.

Como tinha vindo parar ali? De alguma forma, era certo. A inconsciência encarregara-se de nublar alguns pontos cruciais do passado, deixando umas poucas lembranças para serem examinadas, uns poucos detalhes a serem interligados pela mente dolorida do cativo, enquanto este buscava esclarecer os motivos que tinham originado sua agonia.

Conhecera o demônio por acaso, em uma de suas costumeiras andanças noturnas. Um homem da noite, como ele próprio, vestido a caráter. Um outro possível companheiro entre os poucos que conhecera no decorrer da noite eterna que estava fadado a viver? Via agora que não. Depois de uma conversa amena entre os dois, que não deixara margem para qualquer desconfiança, viera o pior. Após a despedida. “Ei, amigo, espere um pouco...” O cheiro diferente. O sangue sendo oferecido. A fome e o temor repentinos. E a inconsciência.

Depois disso mais nada.

Até mesmo o sabor inigualável, o cheiro atrativo do sangue vigoroso do demônio havia se dissipado de sua lembrança.

Agora estava ali. Longe da cidade grande e da agitação mundana da civilização. Longe da comida fácil. Seco e sem vida, vazio. E perto do dia... Perto demais do dia.

Pressentindo o perigo, o calor iminente do sol, ele começou a se debater, lutando contra as amarras que o mantinham naquela cadeira maldita. Sentiu a cólera crescendo dentro de seu corpo; o frio ardendo em seus músculos, tornando-os em fibras possantes como cordões de aço. Sua vista turvou-se, tornando as imagens antes brilhantes, claras como o dia, em chamas distorcidas de um vermelho vivo. Unhas pontiagudas, semelhantes a garras, desenvolveram-se nos dedos crispados. Dentes afiados como serras destruíram a mordaça, liberando um grito agudo que mais parecia o rosnado de uma besta do inferno.

Fora de controle, a fúria explodindo no peito, o homem ensandecido começou a balançar a cadeira de um lado para o outro, como um louco descontrolado faria em um manicômio. Gritava e gemia, os olhos rolando nas órbitas tal e qual os prêmios das máquinas caça-níqueis dos cassinos que abundavam no próspero lugar de onde viera. A doença da noite queimando sua alma. A agonia e o esgar gerando força e poder inumanos. As cordas rompendo-se aos poucos, influenciadas pelo ritmo frenético do balanço da cadeira, esmerilhadas pelo atrito com os músculos fortíssimos.

(continua em Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 2)