Os Fantasmas Da Salesiana

Na década de 90 as Escolas Profissionais Salesianas tinha a fama, isto por seus funcionários, de ser assombrada, pois havia falecido um padre nas dependências de uma das alcovas, fora as lendas macabras que muitos funcionários contavam e acreditavam. Havia dois dias que o Padre Figueiredo tinha desaparecido, quando sentiram sua ausência. Procuraram por todos os lugares e cantos e não o encontraram. O seu quarto estava fechado. Por bem alguém arrombou a porta, e por fatalidade, viu o santo homem de Deus ajoelhado, a cabeça pendida para um lado, na mão um terço – talvez estivesse rezando –, os olhos fechados, o corpo duro, morto. Como alguém morria e ficava de joelhos somente os profissionais no assunto poderiam dizer. Ele tinha 86 anos quando faleceu.

Depois desse incidente as Escolas Profissionais Salesianas, que era uma união de escola que proporcionava cursos profissionalizantes para jovens e adolescentes, também era editora e gráfica, tornara-se numa espécie de abrigo para almas do outro mundo e nunca mais fora a mesma. Diziam que elas vinham ali se confessar para o Padre Figueiredo, porque ele era um homem de Deus e até em sua morte estava falando com o Todo Poderoso.

Simão era um dos funcionários que trabalhavam na portaria. Supersticioso. À noite, dizia ele, aqui é muito sinistro; as almas fazem a ronda e podem levar alguém à loucura se esta pessoa for fraca. Como ele ficava perto da rua, ou seja, na primeira porta ou portão de entrada, a sua visão se baseava em: o enorme corredor, onde se passava os caminhões, automóveis e caminhonetes, ao lado o corredor de pedestres. Os grandes pilares de sustentação faziam sombras enormes, ainda mais em noites de lua cheia, e qualquer deslocamento de ar era percebido por seus tímpanos aguçados ante a escuridão soturna. A uns sete metros da portaria, do lado esquerdo, havia um portão de ferro no estilo barroco que dava entrada para os funcionários que trabalhavam no PCP, no RH e em outros escritórios da editora. Em cima da porta havia uma estátua da cabeça de São João Dom Bosco, o fundador da magnífica obra salesiana.

Simão era dominado pelo medo quando a noite não era mais noite , quando a noite se transformava em madrugada silente, pois como um homem religioso e tipicamente do interior, acreditava em assombrações do Além. Porque as luzes eram escassas e os fantasmas de sua mente criavam vida própria e vinham visitá-lo no mundo real. Ele via coisas. Os lábios ficavam lívidos, os olhos esbugalhados, os neuros tremiam e chacoalhavam seus ossos de tal maneira que parecia que iria convulsionar a qualquer momento. Mas fazer o quê? Tinha que resistir. Ele era o vigia. Ele que tinha de fazer a ronda. E quando Simão passava por debaixo da estátua de Dom Bosco, parecia que esta olhava para baixo com olhos fixos em todos os transeuntes – no caso ele – seu coração batia mais acelerado, pois poderia jurar que ela se mexia, acompanhando seus passos vagarosos.

- Você é um tremendo cagão! João, um funcionário da empresa do setor de capas e que tinha certa intimidade com ele, dizia fazendo pilhéria do porteiro medroso. – Onde já se viu estátua de Dom Bosco se mexer? E ria, ria como criança quando o pai tenta ser engraçado.

Simão não podia fazer nada. Como pôr na cabeça do amigo que Dom Bosco estava vivo e se mexia? Era impossível! Pois o santo padre havia falecido no final do século XVIII.

- Qualquer dia desses aí, você verá uma alma penada do outro mundo. Aí eu quero ver se você irá ficar rindo como agora.

Como toda empresa, a Salesiana era dividida por setores. O setor do acabamento gráfico ficava no térreo, encostado com o setor de off 7, onde se fazia a impressão de agendas e livros. Do outro lado do grande corredor era o setor de estoque de papel off 7 de todos os tamanhos, cores e gramaturas. À frente dele era a expedição. O setor de capas ficava mais para os fundos: havia uma pequena porta no setor de off 7 que dava para o lugar onde se montava as capas de agendas. Já o setor de estoque de capas ficava no segundo andar. Para chegar nele somente pelas escadas ou pelo elevador de carga, este muito antigo por sinal, porque ainda era daqueles modelos de 1950 que se abre primeiramente a porta de madeira e logo após tem que abrir a porta corrediça de ferro.

Ali no setor de estoque de capas à noite era muito escuro. O som dos automóveis que passavam pela Avenida do Estado, que era de um lado ou pela Rua da Mooca, que era do outro lado, não chegava de maneira alguma de modo que, se caísse uma agulha no chão qualquer deficiente auditivo poderia escutá-lo perfeitamente. O cenário era tenebroso e fúnebre. Ainda mais por que o padre havia falecido somente há um andar acima e a lenda do seu fantasma era mais viva do que uma criança recém-nascida.

Um dia Simão contara para Alemiro que vira um vulto negro do tamanho de um homem de dois metros de altura passar ao lado, quando estava fazendo a sua ronda noturna, no segundo andar. Seu coração disparara de tal maneira que quase tivera um infarto. Alemiro, que era chamado de Alê pelos seus amigos, ouvira a história compenetrado, dando toda atenção possível, mas logo dissera para o amigo:

- Quando nós estamos com muito medo a nossa mente nos prega cada peça...

Essas palavras, mesmo que Simão não percebesse, expressavam completamente a incredulidade que Alemiro tinha pelo fato, mas ele não ficava debochando de Simão como João fazia sempre. Joãozinho – chamavam-no assim por causa de sua estatura, era meio calvo mesmo tendo 30 anos e um nariz adunco, coisa que era a sua marca registrada – gostava de brincar com este tipo de coisa. Até hoje não dá para se entender o porquê Alê contou este episódio para ele. Talvez pelo fato de eles trabalharem um ao lado do outro; um operando a máquina PJ 90 e o outro operando as máquinas PJ 10 e PJ 6, todas essas máquinas que faziam o hot stamping nas capas de agendas e livros, porem mais agendas do que livros, pois somente os livros de direito da Editora Saraiva que eram fabricados ali, pelo fato de o gerente da Salesiana dar mais prioridade para agendas do que para os livros e cartões. Este tipo de serviço só começou a ser feito de verdade quando aquele gerente foi despedido por roubar a gráfica – pelo menos este foi o comentário que os funcionários faziam – e veio o outro gerente, que pelos funcionários, fez com que a empresa caísse de nível em relação às gráficas concorrentes, diminuindo e, muito, os serviços que outrora eram assaz, colocando em perigo a empresa de tal maneira que não só abriu falência pelo fato de ela ser uma empresa filantrópica.

- Ai gente. Socorro! Eu vi um vulto lá no setor de capas agora. Era um vulto gigante. Deumira correndo para o acabamento gráfico bradava.

Joãozinho ouviu meio que de relance o comentário, mas por alguma razão aquelas palavras entraram em seus ouvidos e lá dentro do cérebro permaneceram. Não era possível que Simão estivesse mentindo, porque Deumira também vira. Aquilo começava a martelar em sua cabeça. Certo dia, quando ele estava com Alê no setor do almoxarifado, eles ouviram um pállet de capas caindo. Com certeza alguém havia empurrado o tal pállet e as agendas estariam todas esparramadas pelo chão rústico. Mas quando eles chegaram ao local onde deveria estar a verdadeira bagunça não havia nada; nada, nada de bagunça. Os pállets estavam no lugar que sempre estiveram.

Joãozinho ficou cabreiro e apreensivo com aquilo, porque nunca tinha visto algo parecido. Alemiro não ligou tanto, pois ele era mais sensato.

- Caramba, meu. Você ouviu a mesma coisa que eu ouvi, né? Ele perguntou já tremendo de medo.

- Sim. Ouvi. Mas isso não é caso de entrar em choque.

- Não é o quê! Isso é coisa do demo, só pode. Como um pállet cai no chão e em menos de um minuto já está arrumado? Nem que se fosse a máquina mais tecnológica da Alemanha, iria conseguir fazer isso em tão pouco tempo. Estou errado? Já perguntou em seguida para tentar provar que estava com a razão, que aquilo não era uma coisa normal e sim sobrenatural.

Alemiro nada respondeu, mas daquele dia em diante João mudou completamente.

- Eu que não venho mais sozinho por aqui, disse finalmente expressando por inteiro o seu temor.

- E se você visse o Padre Figueiredo agora? Alemiro perguntou para provocar o amigo.

- Você só pode estar brincando comigo. Eu sairia correndo e nunca mais pisaria meus pés aqui.

- Mas acontece que o Padre Figueiredo era um homem de Deus. Com certeza ele iria te ajudar e te iluminar.

- Eu prefiro conviver e falar com os vivos e deixar que uma luz elétrica me ilumine mesmo. Deixe os mortos quietinhos em seu lugar. Eu não vou lá e eles não precisam vir aqui, não.

Naquele ano a gráfica estava lotada de serviço de modo que os dois amigos não estavam dando conta de tantos que eram os pedidos. Por esta ocasião, eles muitas vezes tinham que ficar até mais tarde para fazer horas-extras e às vezes, como não conseguiam acompanhar o ritmo acelerado, tinham que pegar capas no estoque, pois os ajudantes que montavam as capas ainda não tinham tanta agilidade para agilizar o processo de gravação e produção. Então, Alemiro e João iam ao estoque, pegavam algumas capas no estoque que já estavam prontas para gravarem, enquanto os ajudantes montavam outras capas, de outros pedidos mais recentes.

- João – Vladimir o encarregado do setor de capas chamou – vai até ao estoque, pegue quinhentas capas de classic, PL azul, porque eu preciso entregar este pedido – ele mostrou a OS's – até amanhã. Não precisa ser agora não, pois eu tenho mais urgência neste pedido aqui – ele mostrou outra OS. Está vendo? São três mil agendas. Eu preciso delas até às 17 horas de hoje.

Vladimir gostava que o serviço saísse. Ele era do tipo de pessoa egoísta que só pensava nele. Se sua equipe trabalhasse, ele iria ganhar os méritos, por isso fazia com que seus funcionários trabalhassem com mais ligeireza do que de costume, quando chegava o tempo de safra, que era no fim do ano, exatamente por causa das agendas que a empresa vendia. E quando Vladimir pediu para que Joãozinho terminasse o pedido de três mil capas já passavam das 15h30, ou seja, ele teria que ficar trabalhando até mais tarde naquela sexta-feira 13.

Joãozinho não era supersticioso até o dia que vira o enorme vulto e quando o pállet caiu, fez um grande estardalhaço, mas não derrubou nenhuma capa ao chão. E era sexta-feira 13. Droga! Pensou consigo. A porcaria do pedido são duas gravações. Isso quer dizer que são seis mil que terei que fazer. E este meu ajudante que é muito lerdo... Não vai dar tempo. O jeito era correr para ver se conseguia economizar tempo. Talvez saísse da empresa às 22 horas. Para quem entrara às 7h30 minutos seriam 14 horas e meio trabalhadas já tirando a hora do almoço.

Quando deram 21 horas o ajudante de Joãozinho saiu para ir ao banheiro. Só tinha ele ali, por isso que tinha de fazer o serviço só. Apertou o botão do elevador de carga, ele chegou a ouvir o rangido do velho elevador descendo, mas naquele instante desistiu de usá-lo, porque seus pensamentos voaram longe. Não parava de pensar no dia que o ar da PJ 90 parou sozinho. Ele ficara muito assustado, pois para fechar o ar teria que pôr certo tipo de força de modo que, era impossível ter fechado sozinho. Ficou pensando naquilo enquanto o elevador descia... Não fora somente aquela vez que o ar fora desligado... O medo começava a anuviar sua lucidez. Afinal, ele não sabia que das outras vezes após a primeira vez que o ar da máquina parara fora justamente Alemiro que, com seu jeito sagaz, desligara o ar sem que ele percebesse.

- Ah, não! Vou subir pelas escadas mesmo. Disse em voz alta para si mesmo. – Vai que esse treco resolve parar comigo aí no meio do caminho e eu fique preso no escuro.

Joãozinho subiu pelas escadas com duas caixas de papelão na mão. Quando chegou ao segundo andar, onde era o setor de estoque de capas, ele olhou para o lado direito do corredor. Nenhuma alma viva. Nenhum som. Ele se virou e olhou para a porta de madeira. Em cima havia um aviso: Setor Estoque de Capas. Ele pegou a chave, colou na fechadura e girou. O único ruído que ouviu foi este. Ele empurrou a porta, que rangeu. Dento havia um monte de pállets espalhados pelo galpão. Uma verdadeira bagunça. Seu coração estava acelerado por causa do silêncio e do medo que tomava conta de seu coração.

Quando Joãozinho deu o primeiro passo para entrar no galpão as luzes do corredor foram apagadas. Ele se desesperou, jogou as caixas de papelão de qualquer jeito no chão e saiu correndo feito um louco para tentar acender as luzes do galpão no interruptor que era do outro lado o mais rápido possível. No segundo passo caiu e saiu rolando no chão empoeirado. No momento pensou: só pode ser uma alma do outro mundo! Então, voltou correndo no sentido do corredor o mais rápido que suas pernas conseguiram, depois de ter levado um golpe da alma do outro mundo. Mas caiu novamente, dando umas três ou quatro cambalhotas pelo chão, devido a velocidade quês estava. Desceu as escadarias correndo, tropeçando em um degrau e quase caindo novamente. Foi quando chegou novamente ao setor de capas e se deu de Cara com o amigo.

- O que foi que aconteceu? Alemiro perguntou para ele, pois este estava branco como a neve e totalmente sem fôlego, a mão tremendo em cima do peito indicava o cansaço e o pavor em que se encontrava.

- Lá, lá em, em ci-cima – Joãozinho apontava. – Lá, lá em, em ci-cima...

- O que foi que aconteceu? Alemiro perguntou, porque o amigo estava gaguejando muito.

- Lá em cima... Eu fui pegar umas capas. Quando abri a porta do estoque, as luzes do corredor se apagaram sozinhas.

- Luzes não se apagam sozinhas, Joãozinho. Cê só pode estar louco mesmo. Disse num tom mais ameno para tentar acalmá-lo.

- É? Mas me explica, então: eu saí correndo para tentar acender as luzes do estoque no interruptor que fica do outro lado e uma alma do outro mundo me deu um rodo. Eu caí no chão, cara. Você tinha que ver o meu pavor. Quando eu me levantei para voltar correndo, ela tentou me segurar pelo pé novamente e eu caí de novo. Você não tem noção como eu estou abalado.

Alemiro estava vendo o desespero de Joãzinho, quis rir, mas se controlou para não constrangê-lo.

No outro dia de manhã, Alê subiu no setor de estoque e viu que a porta ainda estava aberta. Bem rente a porta, um pállet que algum infeliz tinha deixado de propósito.

- O medo nos causa cada peça... Alemiro disse em voz alta balançando a cabeça pendida para baixo negativamente.

Nem precisa se dizer o quanto Joãzinho foi zoado por ter medo do escuro e ser um verdadeiro cagão.

16/12/2009 17h57

Cairo Pereira

Cairo Pereira
Enviado por Cairo Pereira em 16/12/2009
Reeditado em 24/12/2009
Código do texto: T1981676
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