BELEZA DIVIDIDA

Suor no rosto, lama escorrendo pelos braços, joelhos esfolados, areia e sangue mesclados. Ela tentava se levantar para continuar a fugir, era uma busca incansável e urgente pela sobrevivência. A tempestade que havia iniciado sem um prévio aviso piorara ,e muito, nos últimos minutos. A garota tinha a impressão de ser um mero brinquedo num jogo extremamente doentio.

A água da chuva se mostrava quente, ou talvez fosse apenas uma impressão causada pela temperatura elevada do corpo, era difícil determinar com certeza. Ela respirava de maneira acelerada, ainda assim encontrava dificuldades para aliviar a ansiedade dos pulmões, o ar teimava em negar-lhe ajuda. Estava só, indefesa e sem saber para onde ir. O parque, de dimensões vastas e desconhecidas, ocultava segredos e prováveis ameaças atrás de cada tronco de árvore. A sinfonia resultante do contato das gotas, que caíam furiosas contra o solo, somadas aos uivos aterradores do vento, provocavam um ingrediente a mais a atormentar sua já desolada alma.

Um momento de hesitação se instalou em sua mente ao vislumbrar uma luminosidade presente no final de uma trilha. Ela não sabia se seria ali a saída que tanto buscava, na verdade, não sabia definir nem o que seria o brilho. Entretanto, com a mesma facilidade com que a dúvida havia se instalado, esta desaparecera, pois o farfalhar da vegetação, demasiadamente próximo de onde estava, não permitia que perdesse tempo em tentativas infrutíferas de encontrar soluções instantâneas.

Imediatamente suas pernas puseram-se em insano movimento, a fadiga, que até então lhe consumia, resolvera ausentar-se por alguns instantes, em certas ocasiões o medo opera verdadeiros milagres. Correndo pela vida, ela tinha a plena certeza de que estava sendo perseguida, não precisava, e nem ousaria, olhar para trás em busca de confirmação.

Logo a luz visualizada desvendou os mistérios acerca de seu natureza, e a visão captada pelos olhos aflitos da garota trouxe um fio de esperança ao seu coração. O farol alto ocultava a fisionomia do ocupante do veículo, mas, para ela, pouco importava, nada poderia ser pior do que aquilo em seu encalço. Perdeu o controle do próprio corpo e mais uma vez foi ao chão, deslizando sobre a enorme poça que ladeava as portas do luxuosos automóvel.

Talvez fosse pela sensação de segurança, ou quem sabe pela exaustão extrema do corpo, mas o fato era que desfalecera vencida por uma escuridão irresistível, pouco se lembrava do que ocorrera depois. Uma sucessão de flashes roubava-lhe a lucidez e a lógica, ela se recordava de ter sido elevada, do odor agradável do couro que revestia o estofamento do carro, da seqüência de imagens borradas que desfilavam pela janela, de nada mais.

Quando recobrou a consciência, estava recostada em uma confortável poltrona. Alguns feixes de madeira, que exalavam um aroma peculiar, ardiam nas labaredas de uma reconfortante fogueira. Ao olhar pelo vão de uma janela aberta percebeu que já era dia, mas a tempestade ainda desabava com toda sua força, seria imprudente sair sob tais condições, sobretudo pelo fato de que as pesadas e negras nuvens tratavam de trazer as trevas mesmo durante o reinado do astro rei.

Não havia mais ninguém na ampla sala de pedras cruas, apenas ela e um convidativo cálice preenchido com um líquido de coloração indefinida, estrategicamente posicionado sobre uma pequena mesa de madeira escura e envernizada. Ainda que ela não soubesse nada sobre a natureza da bebida, não conseguiu resistir a tentação de prová-la. Dominada pelo impulso, sorveu o líquido, que ao deslizar pela garganta a fez experimentar diferentes sensações, as quais culminaram em um torpor intenso. Com um peso insuportável na cabeça, começou a perceber o ambiente girar, mal pôde distinguir os contornos do estranho que se aproximava, mais uma vez desfaleceu.

Quando voltou a erguer as pálpebras, conseguiu notar, rapidamente, um homem de baixa estatura e expressão deformada, que se afastou imediatamente ao vê-la despertar. Não estava mais na suntuosa e bem decorada sala, encontrava-se, agora, em um cômodo que se assemelhava a um fétido e empoeirado porão, com os punhos e tornozelos atados por um grossa corda. Havia uma abertura, uma espécie de portal de mármore, lacrado por uma pesada porta, mas que deixava o ar da madrugada entrar através de algumas frestas, um longo corredor se estendia além de seus domínios. O vão era suficiente para que uns três homens pudessem passar, um ao lado do outro.

A situação era desesperadora, porém ela sofria muito mais por algo que estava além do que seus olhos podiam notar, uma angustiante sensação invadia-lhe o peito, pois sabia que alguma coisa muito ruim a aguardava, era essa indefinição que a perturbava, ela não conseguia administrar.

Um rangido longo e irritante a trouxe de volta à realidade. O som originava-se de um local tomado pela penumbra, ela precisou forçar a vista para identificar algo naquelas trevas. Como se pudessem ouvir suas necessidades, tochas posicionadas nas paredes envelhecidas fizeram surgir chamas de maneira espontânea, o que a assustou, mas serviu para quebrar a escuridão quase absoluta que dominava o local.

Seus olhos lavados em lágrimas perceberam uma enorme caixa de madeira escura posicionada sobre uma plataforma de granito e mármore. Um rastro de terra escorria pelas frestas da caixa, conforme os grãos caíam no chão, faziam subir uma névoa com odor nauseante e que remetia à morte. Uma tampa com um forro de coloração arroxeada se mostrava aberta num dos lados da estrutura de madeira. Como em um pesadelo maldito, um homem erguia-se ereto, com os braços cruzados no peito, uma visão aterradora.

Como se flutuasse, a figura vestida de negro e envolta por uma longa capa de forro encarnado, se aproximou da garota estirada no chão. Não havia na mente da jovem uma memória que pudesse identificar o tom de cor que estampava a pele do estranho, mas não era isso que a preocupava. Seus receios voltavam-se para a maneira com a qual ele a olhava. Era desejo, mas não por algo que ela pudesse ceder de bom grado, aqueles olhos injetados em escarlate vivo transmitiam uma ferocidade primitiva, nada de bom poderia existir num ser revestido por semelhante aparência, era impossível encará-lo.

A garota se arrastava sobre o chão imundo numa tentativa desesperada de afastar-se daquele ser inominável. O atrito entre os desníveis ásperos do solo e a pele sensível da menina produzia ferimentos terrivelmente doloridos, proporcionando que um rastro vermelho vivo ficasse incrustado nas pedras, ativando ainda mais os instintos do estranho, filetes de saliva escorriam pelo queixo pálido enquanto acompanhava a cena.

Um estrondo chamou a atenção de ambos, a folha de madeira secular que lacrava o portal de mármore vinha ao chão. Um novo peão entrava no macabro jogo que se desenrolava, e pela expressão da criatura, ele não estava ali apenas para participar, desejava a conquista do prêmio, um troféu que se debulhava em lágrimas entre os dois demônios.

O invasor apresentava o corpo inteiramente negro, como a noite, e como deve ser o abraço gélido da morte. Setas alvas, afiadas e unidas escancaravam seu sorriso perturbador. Um representante do inferno, sem dúvidas. A garota sentiu que era aquela a criatura que a perseguira na noite anterior através das sombras do parque, não que a houvesse visto antes, mas nem precisava, sua simples presença confirmava a suspeita. Um turbilhão de emoções se espalhava de maneira avassaladora pelo debilitado corpo da jovem, era gelo o que corria em suas veias.

A prisioneira preparava-se para testemunhar um duelo pelo direito de tê-la. O homem de vestes negras e olhar bestial urrou, tal qual fazia seu oponente. Inacreditavelmente começou a manipular as próprias feições, o rosto marcante e de coloração morta expandia-se em protuberâncias ósseas que rasgavam-lhe a pele, deixando exposta uma subcamada negra e lustrosa, o restante do corpo sofria manifestação semelhante. Os pulsos e a cintura se uniam por uma membrana maleável, do agora focinho da criatura projetaram-se longos incisivos, que igualavam-se, naquele instante, aos já protuberantes caninos. Os olhos maléficos ganharam um brilho sobrenatural, não havia mais nenhum vestígio de humanidade no ser.

Lobo e morcego. Os demônios rodeavam a garota caída, rosnavam e ameaçavam-se mutuamente, ela sabia que não importava o vencedor, não estaria em melhores condições em nenhuma das hipóteses. A única coisa que poderia fazer seria tentar escapar utilizando uma das afiadas lanças de pedra, que enfeitavam o lugar, para cortar as cordas, possibilitando que escapasse pelo vão escancarado, enquanto os dois se matavam.

Por um instante ela pensou que pudesse ser bem sucedida nessa investida, porém o que veio a seguir frustou-lhe completamente. O demônio alado saltou sobre seu corpo, cravando as presas na maciez de seu pescoço, mas não o fez de modo delicado ou poético, simplesmente rasgou pele, músculos e vasos sangüíneos de um jeito brutal, como uma fera, que era, costuma fazer. Sorvia os jatos vivos e rubros usando a língua áspera para abrir caminho entre a carne. Simultaneamente o filho da lua dilacerava as pernas da vítima, quebrava ossos, mastigava os pedaços ensangüentados, filetes de uma gosma mesclada de sangue e saliva escorriam de seu focinho, onde os pêlos escuros manchavam-se de vermelho.

A menina, bela em nome e contornos, servia de alimento para duas feras que não se sensibilizaram com seus encantos externos, para elas, nada mais importava além da refeição que o corpo jovem poderia proporcionar. E para isso, pouco importava se teriam de dividi-lo, desejavam aquele coração, o músculo que costumava pulsar no peito da garota, não o idealizado em sentimentos.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 16/12/2009
Reeditado em 16/12/2009
Código do texto: T1981446
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