DILEMA

O suor que vertia de seus poros era gelado, extremamente gelado, mesmo com a proximidade da chama azulada do maçarico. Ele tinha pressa, sua atenção era dividida entre o recipiente metálico, postado sobre as brasas de um fogão industrial, e o balançar das nuvens carregadas no céu fechado. O movimento constante de seus olhos acompanhava o batimento acelerado do coração.

Um antigo castiçal, um cordão adornado por um crucifixo, uma caneta comemorativa, objetos subjugados pelo poder do fogo e que formavam, agora, uma massa disforme e desejada. Uma longa pinça prendia um broche, um jato incandescente tocava sua superfície, gotas prateadas juntavam-se ao conteúdo da panela.

Era difícil, só ele sabia como era difícil, manter a sanidade depois do que havia presenciado. Ele viu a morte, não de uma maneira natural e aceitável, o que seus olhos viram estava além da compreensão e da lógica. Ainda que soubesse que algo daquela magnitude, talvez, pudesse ser possível, havia uma diferença enorme entre o imaginar e o presenciar. E ao testemunhar aquele ato hediondo, tudo tornara-se diferente, sobretudo no que se referia a sua vida.

Aquelas imagens ainda estavam vivas em sua memória. Uma seqüência de diferentes emoções ficou evidenciada pela sucessão de expressões estampadas no rosto da garota. Surpresa, espanto, pavor, dor, tudo muito rápido. A carne da jovem era dilacerada e devorada, seu sangue manchava o gramado do parque. A fera arfava e urrava, quebrava os ossos com a força incalculável da poderosa mandíbula, demonstrava ânsia em terminara a refeição, pois sabia que o ato vil que cometia estava sendo observado, discretamente, a bem da verdade, mas ainda assim, claramente perceptível.

Essa certeza também fora detectada por seu observador oculto, e por conta disso, ele, a testemunha, sabia que precisava tomar uma decisão. Uma escolha difícil, a qual significaria a vida ou a morte. Fugir e viver sob a constante ameaça de um mal que espalha a morte ou ficar e lutar em busca de paz? Não era fácil, não, não era, mas ele já havia tomado a decisão.

Derretia com urgência todos os objetos confeccionados com o nobre metal. Num de seus olhares temerosos percebeu o brilho da lua irromper as trevas do céu carregado, não demoraria muito agora, logo se encontraria com o monstro sanguinário.

Suas mãos tremiam enquanto mergulhava a ponta do arpão de pesca na mistura prateada, a gosma escorria pelo aço inoxidável do utensílio. Um espasmo involuntário o levou ao chão, estava desesperado, com muita força de vontade conseguiu agarrar novamente o objeto e banhá-lo, mais uma vez, na massa derretida, não poderia perder tempo.

Emitiu um grito, precisava extravasar a tensão do momento. Apertou firmemente o corpo cilíndrico do objeto, olhou fixamente para a ponta afiada e benzida pelo misticismo da prata. Sentia que a fera se aproximava. Posicionou a arma, fechou os olhos para buscar a lembrança que lhe dava forças. Até aquela noite fatídica sempre fora privado de acompanhar as barbaridades que sua maldição o levava a cometer. Mas, algo diferente aconteceu, um filete de lucidez surgira em sua mente perturbada. Embora nada pudesse fazer no intuito de controlar a máquina assassina na qual seu corpo se tornara, seus olhos puderam testemunhar a dor e o sofrimento que causara naquela jovem enquanto a devorava.

Não, ele não poderia mais viver com aquela lembrança, o fantasma daquela menina o atormentaria para todo o sempre.

Ele sentia que a mutação começava, o ardor familiar já se espalhava por cada parte de seu corpo. Sua mente o forçava a posicionar a seta perfurante contra o peito, porém os músculos não obedeciam e teimavam em repelir tal vontade. O magnetismo da lua atuava de maneira agressiva, ele travava uma luta interna, a lâmina riscava a pele de seu tórax, um filete escarlate escorria pelo peito, ao passo que cada osso do esqueleto emitia um estalido seco.

Gritos pavorosos escapavam da garganta dilatada, o demônio interno ansiava por liberdade. O rapaz tentava a todo custo manter a humanidade e com ela o desejo pela morte e, conseqüentemente, pelo fim das insanidades que cometia.

O arpão novamente foi ao chão, mas dessa vez as mãos deformadas enlaçaram o objeto de maneira decidida, erguendo-o do solo e elevando-o sobre a cabeça. Fazendo uso de toda força disponível em seus músculos, o rapaz cravou a arma no tecido macio...

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A jovem que passava despreocupada pela rua do subúrbio, uma rua comum como tantas outras, não poderia imaginar que a residência de muros altos, do seu lado direito, ostentava uma janela com os vidros estilhaçados. No interior da casa, um arpão com a ponta revestida pela mais pura prata permanecia imóvel, atravessado no estofamento de um sofá.

Muito menos, poderia passar pela cabeça da menina, que não muito longe dali, o odor de sua pele era percebido pelo olfato apurado de uma criatura peculiar. Ela não sabia que nunca mais veria a luz do sol, pois o demônio, mais uma vez, caminhava livre sob a luz do luar.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 12/12/2009
Código do texto: T1974419
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