A igrejinha
Essa pequena história começa com um grande clichê. Um carro quebrado na estrada, um temporal, nenhuma iluminação na estrada e um motorista perdido no meio do nada. Nada mais propício para começar a contar essa história. Sem guarda-chuva, ele sai do carro. Vai em busca de algum telefone para chamar o reboque, o seu celular não pega sinal.
Encharcado ele anda sempre em frente, a luz da lanterna do carro ilumina a estrada. Fica com preguiça e resolve voltar para ver se consegue alguma coisa. Levanta o capô e olha o motor do carro em busca de algum defeito visível, mas ele não entende muito de mecânica. Abriu o porta-malas e retirou o triângulo de sinalização e armou atrás do carro. Ele não acha que seja necessário, vinha um bom tempo dirigindo e nem uma única alma, seja de carro ou a pé ele avistou, fora o tempo em que ficou parado tentando fazer o carro funcionar. Deu um chute no pneu dianteiro, obviamente o carro não funcionou.
Trancou o carro, aproveitou que a chuva deu uma estiada e resolveu ir em busca do telefone, dessa vez para valer. No princípio a lanterna do carro ainda iluminava a estrada, depois teve que se guiar com a parca luz do luar, que se escondia atrás de muitas nuvens. Ia caminhando lentamente, olhando para o chão. Com muito medo de pisar em algum buraco ou algo que o valha. Ao redor da estrada, uma grama muito alta, algumas plantações e alguns casebres, à primeira vista completamente abandonados. Nenhum sinal de vida.
Tinha tido um dia bastante complicado, voltava sozinho do velório da mulher e do filho recém-nascido, a família dela fez questão que fosse realizado no bairro em que ela tinha nascido, ele não tinha se oposto. Desgraça ou não, justamente o bairro mais afastado da cidade, uma zona rural, aonde a tecnologia era escassa e as plantações abundantes. Sua mulher tinha falecido no parto, a criança tinha morrido também, esse infortúnio fez com que ele pela primeira vez na vida duvidasse da existência de Deus, por dois momentos praguejou e o culpou por isso, prometendo nunca mais acreditar em sua justiça. Sempre se achou uma pessoa muito boa, não merecia um castigo daqueles, se Deus não existisse seria uma resposta simples, foi obra do acaso, uma má sorte que já aconteceu com milhares de pessoas e que ainda iria acontecer milhares mais.
Um vento gelado soprou em sua nuca e ele estremeceu, em meio aos pensamentos pisou em um buraco, torcendo levemente o pé, xingou, chutou longe uma laranja podre que tinha caído da árvore. Um sussurro e escutou algo para ele virar a esquerda, acreditou ser apenas coisa da imaginação, dessas que mudam o número vencedor no último instante.
Antes de chegar na bifurcação aonde certamente irá escolher o caminha da esquerda, tinha um posto de gasolina, inabitado e caindo aos pedaços, quando ele esticou o braço para pegar o fone do orelhão, fez isso torcendo para que estivesse funcionando, não estava. Bateu com muita força o fone no orelhão até que arrebentou ele abandonou os pedaços caídos no chão, não sem antes ter notado uma frase engraçada pichada no orelhão: “Mesmo no meio do nada, acontece algo para te fuder”, deu uma risada e se apressou a pegar o caminho da esquerda.
Não demorou muito e ouviu um barulho de carro, ficou na expectativa, o barulho aumentava indicando a aproximação, a chuva tinha parado completamente e a lua já não se escondia tanto, pressentia que a sorte estava mudando. Nem tanto, o motorista nem tomou conhecimento da sua existência e de seus apelos por ajuda, passou levantando poeira e molhando as calças dele. Rabugento e indignado tentou gritar e xingar o motorista do carro de todos os nomes que conseguia pensar em poucos segundos, o cardápio de insultos era extenso e variado. O motorista óbvio, curtia sua cerveja e nem tinha notado tão falastrão e indignado homem.
A todo instante confirmava se o celular pegava sinal, preocupado, via que em breve teria que desistir dessa idéia, no visor mostrada que faltava apenas uma barra para que a bateria fosse totalmente descarregada. Resolveu deixar desligado, só o religando em caso de ver se o sinal tinha voltado, teve que se segurar, segurar o ímpeto de não arremessar o aparelho longe, ainda indignado com o aquele motorista.
Acenderam uma fraca luz vermelha, mas foi o suficiente para que ele notasse isso e se agarrasse aquilo como sua salvação, correu o mais rápido que pôde em direção aquela casa, seu pé não o deixava correr muito, a torção ainda o fazia doer um pouco. A casa não estava muito longe, tinha alguns carros e aquele que o tinha ignorado também estava lá, coisa que o fez ranger os dentes de raiva, se tivesse oportunidade e soubesse quem era o dono, iria perguntar o motivo de não tê-lo ajudado.
Chegando mais perto viu que não era uma casa e sim uma igreja pequena, dessas de bairro. Pelo barulho ele percebia que estava lotada. As pessoas rezavam e falavam alto, mas falavam em uma língua que ele não entendia, a luz vermelha acesa dava ares demoníacos ao lugar, mas ele não estava se importando se o lugar era de Deus ou do Diabo, queria apenas um telefone para que pudesse chamar o reboque e ir embora para casa.
No velório demonstrou uma profunda tristeza, todos iam até ele com olhares de pesar, mostrando seus sentimentos, o quanto estavam abalados, fora os abraços carinhosos e as palavras de força para que ele consiga superar as dificuldades. Já no final, quando todos já tinha partido, ele ainda se encontrava lá, olhando o caixão da mulher e o caixão do pequeno, o agente funerário compreendia aquela tristeza e o deixou ficar um pouco mais. Quando já não podia esperar mais, entrou no carro e partiu, no dia seguinte teria um enterro pela frente.
Parou em frente a porta da igreja, bateu na porta, ninguém veio atender, ficou olhando os vitrais, estranhou a ausência de imagens sacras, ao invés disso, o que ele percebeu era diferente, desenhos que não se pareciam com nada, surreais, com traços tribais. Para seu espanto, o único desenho em que conseguia distinguir as formas era o tão famigerado bode, com seus chifres pontudos e reluzentes, sentado em um trono de ossos e um crânio na mão. Hesitou, não queria mais entrar. Começou a pensar que se afastando de Deus, talvez tenha dado chance a chegada do demônio, fazia menção em se virar e ir embora, quando um relâmpago rasgou o céu e trouxe com ele uma enorme tempestade.
Pessoas ajoelhadas no chão, comendo pedaços de carne, se lambuzando de sangue, uma pessoa decapitada pendurada pelos pés numa corda, pessoas que mais pareciam demônios olhavam fixamente para ele, assim que abriu a porta. Sem saber, o motorista que o tinha ignorado jazia no altar com a barriga aberta, parte do seu intestino ainda pendurado, marcas de mordidas no pescoço e braços, tinha entrado ali por engano, em busca de cigarros e mais bebida, estava muito bêbado para perceber que não era um bar e também não imaginava que fosse ter semelhante destino. Virou as costas para ir embora, a porta tinha fechado como que por mágica e ele não conseguia abrir, como que para se defender pegou um pedaço de madeira e juntou com outro pedaço, fazendo uma cruz, sabia que como um drink no inferno não iria conseguir durar até o amanhecer, queria era espantar as criaturas e fugir. Puro engano, as criaturas continuavam avançando e gritando:
“DÍZIMO, DÍZIMO, DÍZIMO, DÍZIMO...”
Acertou a cabeça da primeira criatura, enquanto a segunda o mordia na perna, a terceira pulou e com uma mira perfeita o mordeu no pescoço fazendo o sangue jorrar. Não tinha mais forças para lutar, morreu rapidamente e naquela noite serviu de alimento para vis criaturas.