A Sereia do Rio das Cruzes
Quando éramos crianças, nossas brincadeiras favoritas era correr na rua brincando de pega-pega ou pique-esconde. Eu era meio moleque e gostava dessas aventuras, subir em arvores, correr com o pé descalço no chão de terra, ir ao mato caçar gafanhotos e outros espécimes. Vivia com meus amigos Betinho, Pedro e Luizinho. De todos os nossos passatempos, o que mais gostávamos mesmo nos dias quentes era tomar banho de rio. Como éramos pequenos, ficávamos numa parte bem rasinha de um rio não muito longe de casa. Contudo, nosso maior desejo era desfrutar das caudalosas águas do rio que o povo do lugar batizou de Rio das Cruzes. Tinha esse nome devido ao grande número de mortes por afogamento que acontecia por ali. Queríamos dar um mergulho lá, mas nossos pais advertiam-nos, dizendo que era perigoso e que, se teimássemos em ir, apanharíamos. Então, ficávamos no nosso riozinho de sempre, desfrutando da paz e da tranqüilidade.
As lendas a respeito do rio das cruzes eram várias. Diziam que o rio era amaldiçoado, que era infestado por assombrações. Minha mãe me dizia que havia um monstrinho lá no fundo que se agarrava nas canelas dos infelizes que se aventuravam em suas águas e os puxavam para a morte. Assim, ficávamos com medo e desistíamos de adentrar aquela trilha no meio da mata que levava ao famigerado rio.
O fato que dolorosamente marcou para sempre a minha vida e a dos meus amigos ocorreu na minha adolescência, quando eu contava com meus dezesseis anos. Tornei-me uma adolescente rebelde e orgulhosa. Nunca me separava do meu “bando”. Era a única garota daquele grupo de quatro integrantes, mas nunca fora menosprezada ou desrespeitada.
Éramos aventureiros e cheios de energia por excelência. Betinho, o garoto loirinho e rechonchudo de outrora, agora era Beto, rapaz troncudo e robusto, uma força de touro. Com seus loiros cabelos cacheados e suas bochechas rosadas, passava-se por anjinho, mas na verdade era um encrenqueiro nato. Um glutão e desbocado com péssimos hábitos de asseio. Pedro era o nerd da turma. Tinha uns baratos muito loucos, vivia lendo aquelas coisas sobre espíritos e maldições. Era o crânio da turma e quebrava nosso galho nos dias de prova. Franzino, era meio caladão, misterioso, mas era um cara super legal. Meu primo Luizinho era meu herói. Um rapaz bonito, forte e corajoso, sempre disposto a me ajudar em tudo. Aborrecia-me com seu zelo excessivo. Como eu era filha única, o Luizinho estava ali de plantão, fazendo papel de irmão protetor. Era o mais velho da turma (um ano) e quem botava ordem quando as coisas saíam do controle.
Enfim, vivíamos a “vida louca”, nosso lema era o carpe diem. Não temíamos nada, não respeitávamos regras. Éramos politicamente corretos em algumas situações, mas nossa vida de arruaças e vadiagem era a nossa alma.
Então, naquele fatídico dia quente, nossas mentes vazias começaram a maquinar. Por fim, decidimos desbravar aquela trilha e aquele rio dos nossos sonhos mais íntimos. A nosso ver, aquelas historinhas de bicho-papão de fundo de rio não passavam de conversa mole pra menino mijão dormir. Estávamos em busca de aventura e emoção e aquele rio significava tudo isso. Estaríamos infringindo as regras, e isso nos excitava. Coisas de adolescente.
Depois de uma árdua caminhada, finalmente chegamos ao nosso destino. Diante de nós estava a imagem do paraíso: o Rio das Cruzes era a coisa mais linda que nossos olhos de adolescente de dezesseis anos haviam visto até então. A água era diferente, meio rosada, meio avermelhada... muitas árvores, uma calmaria só. Engraçado era que não ouvíamos um canto de pássaro sequer. Aliás, não vimos uma espécie viva sequer por ali...
A galera não pensou duas vezes e caiu na água. Estávamos eufóricos. Brincávamos, mergulhávamos, jogávamos água uns nos outros. Estávamos nos divertindo muito.
Mas nosso tormento começou quando, num dado momento, o Pedro foi se afastando da gente. Ele ia se afastando cada vez mais e já estava no meio do rio. Eu o chamava, mas ele não me ouvia. Só olhava lá pro meio do rio e ia se afastando. Logo, eu e os outros começamos a gritar por ele, mas ele nem nos dava bola. Então ele deu um mergulho... e desapareceu.
Ficamos aterrorizados. Luizinho correu pra acudir nosso amigo. Ele mergulhou uma, duas vezes, mas não conseguia encontrar o Pedro. Estava desesperado.
O Beto e eu não pensamos duas vezes e fomos procurar o Pedro. Nadamos até onde o Luizinho estava e mergulhamos.
Voltei à tona. Não consegui encontrar Pedro. Nesse momento, senti um calafrio. Senti algo nadando a minha volta. Percebi então que Beto e Luizinho já estavam longe, estavam lá na areia, e me gritavam. Agitavam os braços e pulavam eufóricos. Mandavam-me sair da água.
Dirigi-me em direção a eles, mas senti algo puxar-me a canela. Fui levada para o fundo do rio. Quando abri os olhos, vi a coisa mais assustadora da minha vida: uma mulher, muito pálida, de olhos completamente brancos, olhava para mim. Seus compridos cabelos avermelhados flutuavam e emolduravam a face sinistra. Assuste-me e nadei desesperadamente para a superfície. Quando eu já estava próxima de sair, senti a criatura me segurar pelas pernas. Tentava desvencilhar-me, mas a maldita me puxava, como se quisesse levar-me para o fundo do rio. Depois de muito esforço consegui colocar o braço do lado de fora.
Não me lembro bem, mas quando acordei, Luizinho e Beto me contaram tudo assustados. Disseram que assim que me pegaram, a criatura me largou.
Os pais de Pedro estavam desesperados. Não entendiam como seu filho se afogara, já que era um exímio nadador. Também não davam ouvidos a história que Luizinho e Beto contavam. Aliás, ninguém acreditava em nós. Dizíamos que devíamos ter tomado uns goles ou cheirado algum barato, e por isso aconteceu aquela tragédia, e o “monstro do lado Ness” que vimos não passava de alucinação, fruto de nossas “viagens”.
Nunca nos recuperamos daquele ocorrido. Também não voltamos mais àquele maldito rio. O corpo de nosso querido amigo Pedro nunca foi encontrado. O Beto ficou traumatizado, não entrava mais em nenhum rio ou praia, até de piscina ele tinha medo. Tornou-se mais responsável e calmo. Já não vivia de arruaças e brigas.
O Luizinho andava atordoado. Vivia centrado nos estudos. Estava sempre pesquisando algo, conversando com pessoas, como que procurando a resposta para suas aflições. Até que um dia me contou o motivo de sua inquietude:
- Lembra quando você estava na água e começamos a gritar pra que você saísse? Então... é que quando eu e o Beto estávamos na água, nós vimos... parecia uma mulher, tinha corpo de mulher... estava nua. Tinha uma pele estranha... os olhos esquisitos, sei lá, brancos...Ficava como se estivesse de pé, encarando agente. Parecia estar com muito ódio! Então ela saltou como peixe e mergulhou novamente. Depois sumiu. Mas vimos... seu corpo! A parte de baixo... não sei, era estranho... parecia feito de escamas...