Despertar

Escuro, terra, noite - Não necessariamente nessa ordem. Tudo está embaralhado.

Madeira podre quebrada, corpo cansado. Mãos que se levantam, sujas da terra sagrada. Unhas... ar... ainda gosto de ar? Não preciso de ar! Tanto melhor...

Tecido rasgado, roupas rotas, onde estou? Cruzes e urzes, diviso o campo santo à minha frente. Um grito gutural na noite quente - desespero.

Passos vacilantes em direção ao gigantesco portão. Sou como uma criança, aprendendo a deambular.

Eu me lembro, eu... morri! - Quanto tempo? O tempo é tão relativo, tão efêmero...

Eu me lembro, eu morri. - Toco o corte na região da minha carótida - e eu, que nem imaginava que pudesse sangrar tanto até aquele fatídico dia...

Eu me lembro, eu morri. Mas estou de volta. E devo procurar Alice, a mulher que amo. Ficará tão feliz, sim, deve ter ficado tão preocupada!

Retiro com cuidado os vermes que passeiam pela minha carne, outrora pura - penso em Alice.

Saio do cemitério e atravesso as ruas conhecidas, procurando chegar ao refúgio do lar. Cidade pequena, ninguém a essa hora da noite nas ruas.

Não sou tão veloz como costumava ser quando vivo, mas finalmente chego à residência de janelas azuis onde fui tão feliz. Aproximo-me da vidraça: vejo Alice passar - ainda está acordada! Tão linda como eu me lembro, aquele robe branco...

Com meu rosto colado à vidraça, vejo-a abrir o robe e passar creme no corpo. Ela desliza também a mão pelos longos cabelos louros... Tenciono chamá-la...

Nesse momento aparece um homem, que a abraça e beija seu pescoço imaculado.

Cego de fúria, quebro a vidraça e os dois se assustam ao me ver: coberto de terra, ossos expostos, carne putrefata, olhar sanguinolento.

Enfureço-me ainda mais ao perceber que o homem que acariciava Alice é Alberto, o meu melhor amigo, quando eu ainda era vivo.

Com um salto, alcanço Alberto. Ele grita. Arranco-lhe os olhos e as mãos - merecido castigo, por tocar em minha amada. Sorrio, com os dentes amarelados. Tudo é muito rápido e o meu ex- melhor amigo fica caído no chão, sem vida.

Alice grita e chora, atirando objetos em mim. Não é a recepção que eu esperava.

Caminho lentamente em direção a ela, que continua a amaldiçoar-me.

Finalmente a alcanço: atiro-a no nosso leito profanado, os seios palpitantes - como é linda. Mordisco-lhe as maçãs do rosto perfeitas e os lábios rubros. Ela grita de pavor - ou de dor?

Prossigo percorrendo seu corpo de curvas sinuosas e quando percebo, Alice está morta nos meus braços rotos, seu sangue espalhado pelo meu rosto, meus lábios, meus dentes!

Que Deus me perdoe, mas esse prazer é tão intenso!

O que fazer quando se desperta e se descobre que o sabor da carne da mulher amada é ainda melhor que o gosto da sua afeição?

Fecho os olhos e abocanho a coxa alabastrina dela.

Renata Xavier
Enviado por Renata Xavier em 25/11/2009
Código do texto: T1942721
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