Alcatéia

Em cem metros vire à esquerda!

Ele disse!

Luiz Poleto, o LP, meu navegador.

Quinze anos de parceria agraciada com dezenas de troféus me ensinaram a admirar e confiar cegamente em seu talento nato com mapas e bússolas e em seu infalível senso de direção. Um pirata do mundo moderno. Atravessaria o deserto do Atacama, a pé, auxiliado apenas por meia dúzia de estrelas e uma agulha imantada.

Em cem metros vire à esquerda!

Foi o que ele disse!

Era o quarto dia de prova e estávamos havia três horas naquele deserto. A exaustão era evidente na face maltratada de LP.

Os Rallys testam todos os limites do ser humano. Desafiam nosso autocontrole. Tudo é precário. Alimentamos-nos mal. Dormimos mal. Redes improvisadas sob o frio do deserto. É quase no limiar do dia que a madrugada se torna mais fria. É quando aproveitamos para dormir.

O deserto é um lugar de climas extremos. Frio cortante com a lua, calor escaldante com o sol. Dentro do jeep, com o sol à pino, a temperatura mantinha-se entre 45º e 50º graus Celsius. Grandes pilotos encerraram suas carreiras trafegando pelos trajetos oníricos da insanidade.

Em cem metros vire à esquerda!

Foi exatamente o que ele disse!

Ansiedade e tensão. Calor excessivo ao dia e frio aterrador à noite. Má alimentação e pouco repouso. Quinze anos disso poderiam enlouquecer um homem... Eu não posso culpá-lo.

Em cem metros vire à esquerda!

Seu primeiro erro em quinze anos...

Seu último erro!

Estávamos à cerca de uma hora, uma hora e meia, da próxima parada. Liderávamos a prova com uma larga vantagem sobre a segunda equipe. Não tínhamos com o que nos preocupar, então, mesmo com aquela voz sussurrando em meu ouvido de que havia algo de errado na orientação de LP, que aquela hesitação incerta não condizia com sua vasta experiência... Eu virei à esquerda.

Longos minutos se seguiram sem que eu ouvisse a voz de meu amigo outra vez ou qualquer outro tipo de som além dos ruídos do motor e de uivos de coyotes vindo de algum lugar longínquo.

Os minutos tornaram-se horas. Àquela altura já deveria ter avistado o acampamento onde pararíamos para repousar e reabastecer o veículo. Estávamos ilhados pela escuridão de um deserto árido e sem vida. Havia um certo tempo que eu não ouvia nenhum som do lado de fora, nem mesmo os uivos dos animais que me acompanharam por boa parte do trajeto. Tudo que eu enxergava à frente e aos lados era o infindo deserto de rochas e areia. Não avistava nem mesmo algum tipo de vegetação, algum cactos, que é tão comum nesses desertos, ou qualquer outro tipo de vida, vegetal ou animal.

Alguma coisa estava errada. Essa era minha única certeza.

Quebro o silêncio sepulcral inquirindo LP sobre nossa localização. Pedi que consultasse novamente o mapa.

Obtive mais silêncio como resposta.

Desviei a atenção da estrada por um breve instante, apenas para certificar-me ainda estar desperto o meu amigo, mas freei bruscamente o jeep no meio do nada ao notar apavorado a aparência mórbida de LP.

Seus olhos arregalados com os globos quase saltando para fora das orbitas não se moviam. Fitavam à frente. Fitavam o vazio, o nada. Sua tez pálida e lábios trincados, secos e semi-abertos corroboravam com sua lúgubre aparência.

Com a freada repentina e brusca, o corpo inerte de LP fora arremessado para frente e graças ao cinto de segurança sua cabeça não se chocou contra o painel do veículo. O próprio cinto retesou e desentesou jogando LP para trás, estacando-se na mesma posição cadavérica d’antes.

Instintivamente coloquei a mão em sua testa a fim de verificar sua temperatura. Congelei! Sua tez estava gélida e seca como se tocasse em defunto. O frio de sua pele correu por meu braço e o calafrio percorreu minha espinha. Medo e angústia decaíram sobre meu corpo ao me certificar que estava na companhia de um cadáver. Meu parceiro e amigo de quinze anos estava morto ao meu lado. Eu cri!

E agradeci a todos os deuses quando olhando mais atentamente, notei que seu peito inflava. Ele estava respirando. LP estava vivo.

Catatonia! Pensei.

Antes que pudesse refletir e entender o que exatamente o deixara naquele estado morto-vivo minha atenção fora atraída para o lado de fora do veículo. Os uivos voltaram e desta vez vinham de mais perto... Muito mais perto! Vários e subseqüentes uivos soavam de todos os lados. Na penumbra surgiram figuras ferozes. Coyotes surgiam de todas as direções e caminhavam para um ponto único. Para nós! Passos lentos e cadenciados, olhos vivazes e pontiagudos dentes à mostra. Uma alcatéia faminta e furiosa cercava nosso jeep.

Silêncio e tensão. Meu suor escorria pela testa. Eles rosnavam. Ostentavam seus dentes prontos para destroçarem um bom pedaço de carne vermelha. Eles não se moviam, apenas rosnavam. Eu não me movia, suava e tremia. O pavor me congelara corpo e mente. Estudavam-me. Aguardavam algum sinal.

Um deles, o maior, o líder, pulou para cima do capô exibindo uma postura majestosa. Estufou o peito soltando seu uivo para a lua. Seria belo se não fosse assustador. Aquele longo uivo ecoou pela madrugada, se espalhou por todo o deserto como se ele me dissesse que aquele era o “seu” habitat. Ali era ele quem mandava.

Seu uivo era o sinal!

O coyote-mór chegou o focinho próximo ao pára-brisa, rosnava e babava de fúria sinistra. Fitando-me a face exibia suas armas, seus dentes.

De forma ensandecida seus seguidores começaram a se atirar de encontro ao veículo. Chocavam-se contra os vidros e lataria com tamanha força que eu a via afundar com os solavancos. Respingos de sangue manchavam os vidros a cada baque mouco. Foi algo aterrorizante. Eles se jogavam contra o veículo... recuavam... e voltavam a se atirar contra onde estávamos.

O terror me despertou! Pisei fundo no acelerador e arranquei atropelando vários deles. Arrancando-lhes grunhidos de dor. O líder resistiu sobre o capô por mais alguns metros, até eu frear bruscamente mais uma vez atirando-o na estrada à frente do jeep. Voltei a enfiar o pé no acelerador em seguida partindo em disparada na direção do maldito animal. O atropelei. Passei por cima do desgraçado e confesso que senti um mórbido prazer ao ouvir seu grunhido final ao forte solavanco do jeep passando por sobre seu corpo. Continuei em frente sem desacelerar. Meus olhos buscaram o retrovisor. Queria certificar-me que haveria um grande pedaço de carne esmagada no deserto. Ele estava lá... Em pé... Inteiro... Olhava para mim. O maldito estava vivo, rodeado por seus famintos seguidores. Em segundos o grupo se dissipou. Espalharam-se e desapareceram na escuridão.

LP continuava em seu estado de catatonia profunda. Acelerei o máximo que eu pude. Precisava correr com meu amigo a um médico e deixar aquele deserto infernal apenas em meus pesadelos. Aquela maldita esquerda em cem metros seria uma história para ser esquecida.

- Eles estão me chamando! – ele disse. – Não adianta correr!

Meu coração quase saiu por minha boca. Já não esperava ouvir tão cedo a voz de meu amigo.

- Eles estão me chamando! – Ele repetiu. – Não adianta correr!

- Eles quem? De que diabos você está falando, porra? Eles quem estão te chamando? Fala, porra!

Novamente o silêncio como resposta. A catatonia estava de volta.

Não insisti com o interrogatório. Sabia que não obteria respostas. Tratei de me concentrar no caminho em direção à civilização o mais rápido possível.

Uma chuva de lanças despencou do céu. Surgiram do nada e caíram aos arredores do veículo. Uma delas atingiu o pneu dianteiro. Perdi o controle com o estouro sendo forçado a parar o jeep atravessado na estrada. Antes que eu me recompusesse e acelerasse novamente mesmo com o pneu vazio, vi-nos cercados novamente, mas por uma figura humana. Surgia... desaparecia... e ressurgia em outro ponto. Não soube distinguir se era um ou se eram vários. Não materializava duas imagens ao mesmo tempo, mas estava por todos os lados. Indígenas armados com lanças. Surgiam e desapareciam. Surgiam do outro lado e desapareciam.

A porta do lado do carona fora aberta de forma súbita e, diante de meus olhos incrédulos, LP fora arrancado para fora do veículo com tamanha brutalidade por alguma força invisível que pude ouvir sua clavícula se quebrando quando desprendeu do cinto.

Saltei do jeep e corri em desespero ao auxilio de meu amigo. Persegui seu corpo sendo arrastado pelo chão pedregoso do deserto, chocando-se contra as rochas. Ouvia seus ossos se quebrarem, a cabeça batendo forte contra as pedras. Suas roupas foram se rasgando e sangue escorria por sua testa. Nada o segurava. LP estava sendo arrastado por algo invisível aos meus olhos. Eu não tinha tempo para raciocinar sobre o ilogismo dos fatos. Corria atrás dele por centenas de metros me distanciando e muito do jeep, corri até não possuir mais fôlego para continuar. Faltou-me pulmão. Caí de joelhos e em prantos. Tudo que pude fazer foi ver meu grande amigo ser tragado pela escuridão.

Permaneci ajoelhado, recompondo as forças e o fôlego. Lágrimas escorriam de meus olhos, pelo destino incerto, mas macabro de meu amigo, pela minha impotência e incapacidade de salvá-lo. Lágrimas vertiam. Chorava por tristeza. Chorava por medo.

Não poderia seguir em frente. Simplesmente chegar à civilização sozinho e explicar o desaparecimento de meu parceiro ao restante da equipe, aos repórteres e... à sua esposa e filhos. Não. Precisava encontrá-lo. Decidi retornar ao veículo e seguir com ele na mesma direção onde o corpo desaparecera. O caminho era péssimo para trafegar mesmo com um jeep tração nas quatro rodas e, ainda tinha um pneu estourado para prejudicar a viagem, mas não poderia perder tempo trocando o furado pelo sobressalente. Existia uma mínima esperança de encontrar LP com vida.

Ainda recuperava as forças. Cabeça recaída. Uma respiração ofegante se aproximou. Meu sangue correu gélido por minhas veias. Os coyotes estavam de volta e eu não estava mais na proteção do jeep. Eles se aproximavam por todos os lados. Ofegantes, me cercavam. Presas e garras exibidas como armas mortais. Eles vociferavam, farejavam. Sentiam o cheiro que exalava de meu corpo. Sentiam o cheiro de meu medo.

O medo deu-me um resquício de forças para ensaiar uma fuga. Três passos e presas afiadas cravaram em meu calcanhar me jogando ao solo. Eles avançaram. Enfim saciariam sua fome e eu seria o banquete.

O grupo todo me atacava. Mordiam e puxavam espedaçando as minhas roupas. Eu tentei lutar. Pensei em lutar. Eles eram muitos. Rápidos e ferozes. Entreguei-me sem luta ao meu destino. Em minutos estaria morto. Eu sabia disso.

Quando a altivez de um novo uivo vindo de algum lugar da escuridão os fez pararem. Reconheci aquele som. Aquele uivo imponente ecoando pelo deserto. Era o líder.

A alcatéia me ignorou. Deixaram-me estirado e partiram em direção ao chamado. Rumaram para o mesmo ponto onde LP desaparecera. Busquei enxergar a imagem do enorme coyote. Aquele a que todos obedeciam. A luz do luar iluminava suficiente para eu não desacreditar de meus olhos. O que eu vi parado na direção de onde partiu o uivo não era a figura de um animal. A figura que eu vi estava ereta em clara demonstração de soberba. O que eu vi com suficiente nitidez foi figura de um homem empunhando uma lança em uma das mãos como quem segura um cetro.

Assim que a alcatéia se juntou a ele. Seguiram em direção por onde meu amigo desaparecera e, tal houve com LP, eles foram encobertos pela escuridão.

O que se seguiu foi horrendo. Os sons se repetem dentro de minha cabeça e é horrível. Apavorantes gritos de desespero e dor soavam daquele ponto escuro. LP gritava, urrava, berrava. Seu sofrimento era imensurável.

Os gritos desenharam em minha cabeça as cenas do que estava ocorrendo. O visualizei sendo destroçado, despedaçado, sendo devorado ainda vivo por aqueles malditos animais.

Envergonhei-me por estar deixando meu amigo de anos abandonado à morte, mas o pavor que senti era incontrolável. Entrei em pânico e, como um covarde, eu fugi.

Só conseguia pensar em sair daquele lugar. Em entrar no jeep antes do coyotes acabassem com meu amigo e ainda com fome viessem atrás de mim.

Com muito esforço eu rastejei na direção do veículo. Tremia e chorava, mas não parava. Os gritos não cessavam. As imagens me aterrorizavam. LP estava sendo desmembrado. Via sua face de dor, suas lágrimas encharcando sua face enquanto os animais se alimentavam de sua frágil carne. Imaginei meu amigo pedindo para a vida deixar seu corpo e assim cessasse seu sofrimento.

Eu rastejava chorando de angústia e medo.

Restando cerca de 20 metros para alcançar o jeep, imperou o silêncio no deserto novamente. LP estava morto. Eu chorei a perda de meu amigo. Ignorei o risco que ainda corria e sem me mover, apenas chorei.

Ouvi um baque contra a lataria do jeep. Algo fora arremessado contra mim. Olhei para trás e dessa vez não vi um homem e muito menos os animais, eu vi vários homens caminhando lentamente em minha direção. Rastejei mais rápido. Senti que já tinha forças para me levantar, mas antes que o fizesse, a imagem que eu vi está gravada em minha retina, em minha mente, eu fecho os olhos e ainda vejo, a cabeça de meu amigo estava à minha frente. Seus olhos arregalados me fitavam. Sua boca escancarada demonstrava que morreu gritando de imensurável dor. Ainda vejo aqueles olhos me reprovando, me acusando por tê-lo abandonado. Sentenciando-me.

Devo ter entrando em estado de choque, pois não me recordo o que veio a seguir. Não sei como entrei no jeep e o botei para andar. Deduzo que por ter deixado o veículo atravessado inconscientemente eu retornei pelo trajeto que me levara até aquele lugar, pois quando recobrei os sentidos, estava saindo do deserto e entrando na mesma cidade de onde partira na noite anterior.

Uma viatura policial me abordou e cá estou, senhor delegado. Preso desde então.

- Você está bem encrencado, meu amigo! - Disse o delegado ao fim de meu relato. – Você terá que bolar outra história, menos fantasiosa talvez, se quiser escapar da pena de morte. – ele continuou – Todas as evidências estão contra você.

- Eu juro que é verdad...

- Silêncio! Eu ouvi calado toda essa história sobre coyotes famintos e aparições inumanas. Agora é a minha vez de falar e a sua de ouvir... Não posso deixar de notar a similaridade de sua história com uma lenda local. Os mais antigos dizem que há séculos atrás existia na região uma tribo chamada “Alcatéia”. Por serem seguidores de uma doutrina não entendível pelos poderosos da época, eram vistos como praticantes de magia negra. Mas eles apenas dançavam por toda a noite em ritos para seus deuses. Viviam sem perturbar os moradores da cidade, e assim sendo, mesmo não concordando com as escolhas religiosas da Alcatéia, os moradores da cidade também não os perturbavam. Até que um grupo de rapazes desapareceu. Um após o outro, eles foram desaparecendo. Cinco rapazes sumiram sem deixar sinal. Acusaram a tribo pelo desaparecimento dos meninos. Foram expulsos dos arredores da cidade, migraram para o deserto e nunca mais foram vistos... Alcatéia. Estranho você usar essa palavra, mas como eu disse, é só uma lenda. Meu trabalho é baseado em provas e evidências. Ainda não possuo provas suficientes, nem para acusá-lo, nem para absolvê-lo, mas as evidências estão contra você. – O delegado seguiu numerando as tais evidências, andando de um lado a outro da sala enquanto me demonstrava os dedos seguindo sua contagem. – Primeiro; apesar da lenda local se referir a uma tribo chamada “Alcatéia”, não há lobos, coyotes ou qualquer outro animal similar nessa região e em nenhuma outra região n’um raio de três mil kilometros daqui... Segundo; sua equipe já tinha nos falado sobre você ter entrado no deserto acompanhando por outro homem, o Sr. Poleto, mas você retornou sozinho e sua explicação para tal fato é deveras fictícia... Terceiro; seu jeep, assim como suas roupas estão inteiramente lambuzados de sangue, e não é o seu sangue, pois, além desse ferimento em seu calcanhar que pode muito bem ter sido causado por um cão raivoso, não há qualquer outro ferimento em seu corpo... Deus do céu, se todo aquele sangue for de seu amigo, creio que há em minha frente um monstro e não um ser humano. Infelizmente ou, felizmente para você, os meus homens vasculharam cada grão de areia e cada rocha daquele deserto e não encontraram o Sr. Poleto, nem seu corpo, e sem corpo não há assassinato. Mas pode apostar que irei mantê-lo trancafiado aqui até que esse corpo seja encontrado. Por amor aos meus filhos, eu não posso deixar alguém como você andando por aí, mesmo que não haja provas para acusá-lo, você vai ficar preso.

- Deixe-me levá-lo até lá. – Eu o interrompi. – Eu sei o caminho exato. Eu te levo até lá.

O delegado refletiu por alguns instantes.

- Eu não tenho nenhum homem disponível no momento para acompanhá-lo e mesmo se tivesse, a noite já caiu, é mais prudente irem amanhã bem cedo.

- Não! Precisamos ir agora. A cabeça ainda está lá. Eu sei. Amanhã pode ser tarde demais. O senhor não pode me privar de talvez uma mínima chance de comprovar minha inocência. Eu não sou esse monstro que está julgando. Deixe-me provar isso antes que carregue com você a morte de um inocente.

Ele refletiu novamente.

- Tudo bem! Iremos. Mas você vai algemado nos pulsos e tornozelos.

Concordei. Não havia outra opção.

Entramos na viatura e seguimos rumo ao deserto.

O delegado me fitou pela última vez quando ultrapassamos o limiar da civilização e adentramos naquele terreno solitário.

Percorremos três horas na escuridão e silêncio sepulcral. Quando lhe orientei sobre o caminho a tomar.

Em cem metros vire à esquerda!

Eu lhe disse...