Radioatividade

PARTE I

A nuvem radioativa que cobriu de vergonha aquele país, em busca de mais energia, tempos de crise, guerra futura iminente, o vazamento, as normas de segurança não respeitadas, profissionais sem capacitação, tudo contribuiu para o acidente. O acidente ocorreu exatamente vinte e cinco anos atrás, uma data que faz aniversário hoje, mas diferente de outros aniversários, essa não é comemorativa, nenhum ânimo para ser comemorada, muito pelo contrário, é para ser esquecida. E, como em muitas famílias, o país esconde uma vergonha, aquele velho esqueleto escondido no armário, essa cidade tem o seu, mas não se trata de apenas um esqueleto, se trata de centenas, o que é pior, centenas de vivos, obrigados a viverem escondidos, longe dos olhares do mundo, uma vergonha para permanecer embaixo do tapete, ninguém precisa saber.

Aquela usina foi concebida para gerar muita energia, era a primeira do país, dois reatores, uma benção da tecnologia. Muita tecnologia e dinheiro foram gastos para que o projeto saísse do papel, a localização foi escolhida a dedo, era praticamente no meio do nada, tinha apenas uma cidadezinha próxima, não que os líderes do país não se preocupassem com isso, mas enfim, a usina teria que ficar próxima a alguma cidade, não tinha jeito. Sua construção gerou manifestações contra em boa parte do país, protestavam em prol da vida, que uma usina nuclear era algo muito perigoso, que poderia produzir armas nucleares, o que iria gerar conflitos com outros países, podendo trazer guerras e destruição.

O governo usava suas armas para ludibriar a população, colocava celebridades na televisão, explicando os benefícios da usina e sobre a sua geração de energia. O governo não poupou esforços e, aos poucos a população foi se acalmando, foi se convencendo que essa era realmente uma boa causa, se o galã da novela disse isso, só pode ser por uma boa razão, ele não iria nos trair.

Ao longe soou o alarme, um avião sobrevoava aquela pequena cidade, um esperto garoto observava pela janela, como de costume, correu ao escritório do pai, sem muita cerimônia rompeu pela porta correndo:

- Pai, por quê sempre toca o alarme quando passa um avião?

- Já lhe falei várias vezes que isso é assunto proibido.

A velha pergunta e a velha resposta, mas o garoto tinha em mente continuar repetindo até que sua dúvida fosse respondida, criança nenhuma gosta desse tipo de mistério, ele não é diferente.

Nesse momento ele abre a porta para sair de casa, é um pré-adolescente com doze anos de idade, bastante ativo, não muito diferente dos meninos da sua idade. No lado de fora da casa, abriu o cadeado que prendia a sua bicicleta, embora fosse uma pequena cidade, os furtos existiam, ele não queria dar bobeira e perder sua bicicleta. A senha de seis dígitos o dificultava um pouco, mas era válida para a proteção. Começou a pedalar, uma brisa reconfortante mexia os seus cabelos rebeldes, ia descendo agora a alameda até a casa de seu melhor amigo, tinha planos de se divertirem a tarde inteira. Derrapou, fazendo um rastro de borracha no asfalto, tocou a campainha:

Um menino de olhos arregalados veio abrir.

- Jean! Espera um minutinho. – Disse afobado.

Correu para dentro de casa, calçou um tênis, recolheu a sua bola de futebol e colocou na mochila, foi se divertir. Durante o percurso foram fazendo planos para aquela tarde. Andar de bicicleta e futebol, mas isso andava se tornando rotina, eles precisavam de alguma coisa diferente, uma injeção de adrenalina, uma agitação a mais.

- Que tal entrarmos na grande casa dos Avelino e roubarmos frutas? – Disse Tadeu eufórico com a idéia.

Jean concordou com um aceno de cabeça, era essa a agitação a mais que desejava, a injeção de adrenalina.

Empinaram a bicicleta, derraparam, andaram em zigue-zague, se divertiram bastante até chegarem a grande casa. Era uma casa de dois andares com um vasto jardim, não tinha muros, apenas uma cerca baixa. Muitas árvores frutíferas carregadas: abacate, maçã, banana, goiaba, manga, figo, no centro do jardim tinha até mesmo um coqueiro, os garotos teriam uma grande variedade de frutas para escolher.

Deixaram as bicicletas encostadas na cerca, pularam. Jean andava lentamente, não queria fazer barulho, tinha medo que o dono da casa saísse com uma arma e o expulsasse a pontapés, Tadeu o tranqüilizou.

- Pode andar normal, os Avelino trabalham até bem tarde, se nenhum perigo de sermos pegos. – Falou isso tirando a bola da mochila e a chutando para o alto.

Acimar Avelino, médico conhecido, dermatologista, gostava de trabalhar de tarde, tinha uma preguiça enorme na parte da manhã, esse momento atendia uma senhora com micose na virilha. Darcy Avelino, sua esposa e secretária, no momento organiza papéis com o intuito de facilitar as consultas do marido.

Um rosto na janela da casa observa os dois meninos brincando. Sozinho, triste, tinha a mesma idade dos garotos, queria poder descer e brincar com eles, mas sempre respeitara a ordem de seu pai: “nunca seja visto e nunca saia de casa”. Esse isolamento o deixa muito infeliz, não consegue impedir que duas lágrimas caiam de seus olhos.

Jean sobe na goiabeira e apanha a fruta que se demonstra mais apetitosa, se senta no galho e mordisca um pedaço, que sorte! Nenhum bicho, convida Tadeu a se sentar ao lado, o amigo sobe, pega uma goiaba, mas não consegue comê-la, ele avista o menino na janela, deixa a fruta cair. O menino assustado se esconde. Tadeu intrigado, conta o curioso acontecimento para Jean.

- Estou dizendo, tinha um menino na janela, não foi imaginação.

- Acredito, vamos chamá-lo então. – Disse Jean coçando a cabeça.

Jean desceu da árvore, encheu os bolsos com pequenas pedras, tornou a subir na árvore e lançou a primeira pedrinha que acertou em cheio a janela, lançou a segunda e a terceira, começou a chamar o menino.

- Vamos, apareça! Somos amigos, queremos apenas brincar, não iremos fazer mal. – Falou cheio de energia.

Seus apelos começaram a ganhar coro quando Tadeu se juntou a ele. Não demorou muito e o triste garoto apareceu novamente na janela, mas com o receio e lembrando das palavras se seu pai, tornou a se esconder, o que deixou os dois frustrados.

- Venha, vamos jogar futebol, eu deixo você brincar com a bola. – Falou Tadeu.

Dez minutos de insistência e apelos, o menino reapareceu e se sentindo muito tímido fez um gesto amigável para os garotos. Os meninos tentavam conversar com ele, ele os entendia e fazia gestos com a cabeça, mas não emitia nenhum som. Pouco a pouco foi ganhando confiança e abriu a janela.

Do fundo do coração, ele gostaria de estar brincando com aqueles garotos, pensava que poderia desobedecer seu pai pelo menos uma vez na vida, depois disso iria guardar segredo eterno, além do mais, seus pais ainda iriam demorar algumas horas para chegar. Falou pela primeira vez:

- Vou descer, me esperem, tenho uma pequena dificuldade para andar. – Falou baixinho e pausadamente.

Os garotos se assustaram um pouco e desceram rapidamente da árvore, esperando que o menino abrisse a porta. Não demorou muito para a porta ser aberta, os dois meninos olhavam chocados para o garoto, algo em suas pernas, elas eram maiores que o normal, disforme, protuberâncias como se fossem pedaços de ossos davam uma visão grotesca, os meninos paralisados tentavam não olhar e se concentrar apenas no sorriso genuíno do garoto, que tinha andando lentamente, apoiado em uma muleta. Foi Jean quem tomou a iniciativa e perguntou o nome do menino.

- Qual o seu nome?

- Me chamo Thomas. – Disse o menino sorridente, ganhando confiança e se soltando cada vez mais.

Uma moto estacionou perto da casa, um homem ficou de longe observando os garotos, até que acelerou novamente e levantou poeira. Jean olhou pensativo, mas logo tratou de esquecer e introduzir Thomas na brincadeira.

Passaram a tarde inteira brincando, Thomas nunca tinha brincado com outras crianças, nunca tinha se divertido tanto, no começo olhava a todo instante para o relógio, preocupado com a hora em que seus pais chegassem, mas pouco a pouco, persuadido por Jean e Tadeu, deixou de se preocupar com isso. E assim, as brincadeiras foram se sucedendo, Jean notou o mesmo motoqueiro por mais duas ocasiões, era muito inteligente, percebia muitas coisas, sabia que tinha algo errado, só não conseguia ligar o motoqueiro a Thomas, não tinha motivos para esse tipo de desconfiança.

A porta do carro foi batida com violência, duas pessoas saíram correndo, uma freada, outro carro, mais portas batendo. Thomas olha assustado, os dois garotos também, todos assustados.

- Pai! Mãe!. – Disse engolindo as palavras.

- Thomas, por quê você saiu de casa? Perguntou o pai com a voz grave.

Tadeu e Jean não se moviam, o pai agarrou o braço do menino e ia o conduzindo até em casa, quando alguns homens saíram do carro, a patrulha chegou, o pai caiu de joelhos no chão, não acreditava que aquilo pudesse estar acontecendo.

- Nos entregue a criança imediatamente!

Os pais caíram no choro, o filho fora arrancado de suas mãos, colocado no carro sob olhares perplexos dos garotos.

O motoqueiro não era um curioso, era um agente do governo, andava por lugares inóspitos em busca de crianças ou pessoas como Thomas, era raro de encontrar uma, mas quando isso acontecia, era um troféu, hoje ele vai poder dormir feliz.

PARTE II

Urânio, grafite e chumbo voando na atmosfera. A tampa do reator explodiu, sinais de radiação detectado em outros países. O país nega que tenha acontecido algo com a usina. Centenas de bombeiros são mobilizados para o local do acidente, são as primeiras vítimas dessa guerra contra um inimigo invisível, uma guerra em que eles no primeiro momento venceram, salvaram não só o país como também os países vizinhos. Dias depois agonizavam na cama do hospital. Primeiro muita ânsia de vômito e sangramento pelo nariz, depois dias se sentindo bem até a segunda onda, grandes queimaduras surgiam no corpo inteiro, agonia que logo acabava com a morte do enfermo. Muitos mineiros usados, era preciso cavar um túnel até que chegassem ao reator e pudessem esfriá-lo, foram outras vítimas dessa guerra invisível. Essas vítimas, não reconhecidas pelo governo, foram jogadas embaixo do tapete, aposentados por invalidez, ganhando uma miséria por mês, ao invés de reajustar para ganharem mais, o reajuste foi para bem menos, outras vítimas jogadas atrás do grande muro, logo assim que foi criado. Para o governo, que morram logo, vamos sumir com tudo relacionado ao acidente, depressa.

Quem esteve perto na hora do acidente avistou um show de luz, o céu se iluminou com diversas cores: laranja, vermelho, azul, um verdadeiro arco-íris, uma paisagem linda se não fosse uma tragédia. Era uma fumaça fina e transparente que causa destruição pouco a pouco. A cidade mais próxima se localiza a apenas dez quilômetros da usina, a população dorme se saber do acidente, o prefeito, dona de casa, crianças e idosos, todos correndo risco de serem contaminados sem saber, dormindo como manda a norma da noite.

Os índices altíssimos de radiação, se a situação continuasse, toda a população morreria em apenas poucos dias, algo teria que ser feito. A vergonha e a revolta de todo o país com o desaparecimento de uma cidade inteira seria algo impossível de esconder do resto do mundo. Centenas de ônibus fizeram o que era previsto, recolheram a população, evacuaram a cidade. As pessoas sem entenderem muito o que estava acontecendo, saíram carregando apenas a roupa do corpo, no máximo uma bolsa com pertences, deixando uma vida pata traz. Essas pessoas foram acomodadas em outras cidades, iludidas, achando que tudo não passava de uma manobra de guerra, os jornais lançavam pequenas notas de rodapé sobre o acidente. Com o passar dos dias, a imprensa foi notificada a não dar notícias sobre nada referente ao acidente, corria o risco de perderem a concessão e serem fechadas, a censura que mandava agora, lei do silêncio vigorando.

Enquanto o resto do país vivia em plena ignorância, milhares de pessoas trabalhavam aos arredores da usina, limpando toda a bagunça deixada, arriscando as vidas, alguém tinha que fazer esse trabalho. As máquinas não agüentaram o trabalho, entravam em pane, se jogavam em buracos. No teto do outro reator da usina, as máquinas se jogavam do alto, pediam socorro. Coube aos homens essa árdua tarefa e, ao custo de muitas vidas e a saúde de todos, venceram. Quem esteve lá no teto do reator, relata o inferno que era, do gosto metálico na boca, de não conseguirem sentir os dentes, do suor abundante, da pressão horrível em todo o corpo, tudo isso com apenas poucos segundos de exposição. Caçadores que entravam em todos os lugares atrás de cães e gatos, pobre animais que tiveram que ser sacrificados.

Por baixo dos panos, o governo tratava de dar um jeito de acobertar toda a situação, começou a construção de uma cidade para acolher os desalojados, também a construção de uma nova usina, ainda maior e com quatro reatores. A idéia era sugerir que essa era muito pequena e que o país precisava de uma maior. Explicaram que mover a população era um ato caridoso com aqueles cidadãos que acolheram tão bem a usina. A grande parte da população, volúvel e de baixa instrução aplaudia o governo, acreditava em seus grandes projetos, a outra parte apenas ignorava, brigar pra que, não iria adiantar mesmo.

Sentado em seu gabinete, o presidente preocupado, esperava ansioso a chegada de seu assessor. Hoje o acidente estava fazendo vinte e cinco anos, o cerco anda se fechando, a grande vergonha do país corria o risco de ser exposta ao mundo inteiro, ele iria acabar sendo responsabilizado por isso, mesmo estando apenas três anos no poder. Ao mesmo tempo em que queria permanecer no poder, ser reeleito na grande eleição do ano que vem, não queria que essa batata explodisse em suas mãos. Alguns jornalistas faziam pressão internacional, querendo que o governo mostrasse o que estava escondendo, mas ele não iria ceder, iria conseguir dar um jeito na situação. O assessor acabou de chegar, era o dia de colocar um fim nessa situação.

Jean e Tadeu pedalavam desesperadamente. Fora idéia de Jean seguir o carro após “acordarem” do susto, resolveram ir atrás e descobrir para onde Thomas fora levado. Quando ainda andavam pela estrada de terra, o rastro era fácil de seguir, mas quando alcançaram o asfalto, tudo ficou mais difícil, perderam o rastro.

- O que vamos fazer agora? Perguntou Tadeu.

Jean estava distraído, perdido em seus pensamentos, não demorou muito e ele teve a convicção que Thomas tinha sido levado para o grande muro, local em que a população mantinha distância. As crianças especulavam e criavam histórias para si, mas algo em que todos concordavam, falar sobre o grande muro era assunto proibido, passível de punições severas. Dobraram a rua e se aproximaram do grande muro, eles viram o mesmo carro que tinha levado o menino, não existia mais dúvidas, ele fora levado para lá. Jean nunca soube o que acontece lá dentro, não faz a mínima idéia, mas sabe a quem perguntar, dessa vez a mesma resposta não será aceita, vai insistir até que sua pergunta tenha uma resposta satisfatória. Despediu-se de Tadeu e se dirigiu até sua casa..

Chegando, correu até o escritório do pai, era lá que sempre encontrava o pai quando este estava em casa. O pai notou a expressão de preocupação do menino, tinha a convicção de que alguma coisa muito grave tinha ocorrido. O menino foi direto na pergunta:

- Pai, o que tem atrás do grande muro?

O pai já esboçava a tradicional resposta de assunto proibido, mas dessa vez o olhar do garoto denunciava que não iria aceitar essa resposta tão facilmente, preferiu amenizar a situação:

- Conte-me tudo o que aconteceu, filho. Não estou entendendo essa revolta.

Jean detalhou tudo para seu pai, não deixou passar nenhum pormenor. Seu pai o olhou com compaixão, sabia muito bem aquele sentimento, viveu algo semelhante quando tinha sua idade, algo que tinha acontecido com alguém muito próximo, algo que tinha acontecido com seu irmão mais velho. Tudo estava relacionado com aquele maldito acidente. Não tinha mais como guardar segredo, cedo ou tarde seu filho iria acabar descobrindo mesmo, melhor contar antes que ele se meta em apuros. Trancou a porta do escritório, estava para ter a conversão mais séria de sua vida com o filho. Jean pressentia.

A noite começava a dar o ar da graça, o garoto assustado no banco de trás do carro, entre dois agentes do governo tentando o acalmar, falando palavras de incentivo. A luz dos holofotes se acende, começam a brilhar, uma luz muito forte iluminando toda a pequena cidade. O carro estaciona, rapidamente os agentes ajudam o garoto a entrar no grande muro. Lá dentro, usam o carro de patrulha para chegar no local desejado. Algumas pessoas saem a rua para ver o que está acontecendo, com certeza era mais um morador a caminho, já estavam acostumados. O carro freia, os agentes novamente ajudam o garoto a sair do carro, entregam a muleta e vão embora. A luz dos holofotes deixa o garoto com muita dificuldade de enxergar, passos, pessoas se aproximam, notam-se muitas sombras disformes se locomovendo, o garoto percebe e dá um grito desesperado, um segundo antes de uma mão o agarrar.

O assessor com ar de importância, sentou-se à frente do presidente, tirou um relatório da pasta e colocou na mesa. O presidente olhou maravilhado para os seus dizeres. Vinte minutos estudando o papel, começou a debater com seu assessor.

- Sem chance essa idéia de aviões, muito gasto, muito barulho, como fazer isso com repórteres e uma cidade inteira vendo, descartada a hipótese do plano A.

O assessor já esperava por isso, trançou os dedos e perguntou maliciosamente:

- E sobre o plano B?

- Já passou da hora, tenho que começar a agir o quanto antes, escolha as bandas mais barulhentas do país, vou adicionar um novo elemento, irei decretar dois dias de feriado após os acontecimentos.

Após a saída do assessor, ficou meditando sobre o relatório, o único ponto preocupante seriam as covas, uma grande movimentação é até normal em grandes eventos, mas as covas... Seja o que Deus quiser. Encerrou os pensamentos sobre isso, pegou seu casaco e foi embora. Um mês para organizarem tudo.

Jean olhava assustado para seu pai, custava acreditar em tudo que tinha ouvido. Ele tinha um tio morando atrás do grande muro. Tinha sido arrancado da casa de seus avós. Seu pai tinha sua idade e era mais novo cinco anos em relação ao irmão, presenciou chocado a toda cena. O irmão tinha desenvolvido uma doença em que fez brotar rugas em todo o seu corpo, foi algo que apareceu e se desenvolveu e, pouquíssimo tempo. Um belo dia, um agente do governo o viu, achando que era resquício da contaminação, o arrancou de seu lar, jogando atrás do recém construído muro. Seu pai disse que teriam uma vida muito melhor, teriam muito mais amparo, ainda explicou que o garoto está para um lugar melhor, iria conhecer muitas outras crianças e com o tempo iria se sentir acolhido, sem preocupações. Jean não acreditou muito nisso, ninguém pode se sentir melhor sendo arrancado de sua família e jogado no meio de estranhos. Nem queria imaginar se essa situação fosse com ele. Seu pai foi bastante enfático sobre guardar segredo, nunca contar para ninguém a história que acabou de ouvir. Mas o garoto achava que manter segredo era injusto com Tadeu, que também presenciou tudo, ele pelo menos precisava saber. Aproveitou para tomar uma ducha, jantar e se deitar, com tanta informação nova, custou a conseguir pegar no sono, quando conseguiu teve sonhos não muito agradáveis.

O garoto com olhos fechados, segue gritando descontroladamente, a mão que o agarrou não foi para castigar e sim para fazer um afago, não foi pela maldade e sim por carinho. O menino não tinha a mínima pretensão de abrir os olhos, mesmo com aquela voz suave o encorajando. Era uma voz feminina que falava palavras doces, esperava acalmar o garoto, dar a segurança necessária, mostrar que ali ele pode se sentir protegido. O menino abre os olhos, cara a cara com a mulher da voz doce, o encarando, não se contém, o susto é muito grande, cobre o rosto com as mãos, mas não a tempo de conter um grito. A doce mulher não tem uma aparência agradável, ela tem uma fenda aonde deveria ter o olho esquerdo, fora que o lado direito do rosto, abaixo do seu único olho, é um prolongamento de pele que vai até os seios. Ela não se sente ofendida, sabe que aquela reação é normal nas pessoas, segura a mão do menino e diz palavras reconfortantes:

- Não fique com medo de mim, aqui somos todos amigos, venha comigo, vou lhe ajudar, não podemos ficar muito tempo aqui do lado de fora, você confia em mim?

Sentindo um caloroso aperto de mão, ouvindo a suave voz, ele abre novamente os olhos, mas não tem ainda coragem de encarar a mulher de frente, muito menos as outras pessoas que o cercam agora, olhando para os pés ele responde:

- Sim

- E qual o seu nome? Disse a doce mulher.

- Me chamo Thomas

- Então venha comigo Thomas, quero que more comigo, meu marido e meus filhos, quero que seja mais um filho.

A mulher o pegou na mão, o ajudando a caminhar, o povo em volta foi abrindo espaço para ambos. A sineta tocou, era o alerta para que todos entrassem logo nos prédios, teriam apenas poucos minutos para isso. A doce mulher apertou o passo, entraram em dos prédios, um morador do apartamento ao lado ajudou Thomas a subir as escadas. Chegando, ele abriu a porta, os filhos olhavam para o garoto. Thomas estava começando a se acostumar com as deformidades de quase todos os moradores. Um dos filhos não tinha as duas pernas e um braço, apenas tinha o outro para ajudar na locomoção, mas nada tirava o grande sorriso de seu rosto. O outro filho tinha uma aparência de sapo, uma pele repuxada no rosto, grande lábios bolhosos e dedos pequeninos. Os outros dois andavam sempre ligados, também puderam, eram siameses, ligados pela cintura. Faltava apenas conhecer o pai, o chefe da casa.

Ela foi mostrando e apresentando seu novo filho aos demais, todos o acolheram muito bem, um novo irmão para brincar, isso era sempre muito bem vindo. Ela foi conduzindo o garoto até o quarto do casal para conhecer o grande chefe, Abriu a porta, ele estava deitado na cama, se levantou assustado quando a luz baça invadiu o quarto, já estava acostumado com aquelas ações de boa vontade da mulher. Ela acendeu a luz do quarto, Thomas deu um sobressalto, não esperava tão grotesca figura. Um homem inteiro coberto com rugas o saldou, pegou ao lado da cama um cigarro e o acendeu, deu uma baforada e disse:

- Seja bem vindo, meu garoto.

PARTE III

Com operação de limpeza e blindagem do acidente, o governo gastou muito dinheiro. A crise se alojou de forma latente. Pessoas tiveram contas congeladas no banco, tiveram bens patrimoniais tomados pelo governo. Lado a lado com essa crise financeira, a indústria bélica era a única que crescia, para os jovens o futuro estava no exército, fora dele o futuro era incerto e sombrio. Uma guerra era iminente, uma guerra que se mantém velada a muitos anos, todos estão na expectativa de quando ela realmente irá começar.

Alguns atos do governo após o acidente, foram precisos sete meses para que tudo fosse limpo e um sarcófago construído. O sarcófago é uma grande estrutura metálica com o fim de conter a radiação. Mas mesmo com todos os esforços, a cidadezinha nunca pode voltar ao seu lugar de origem. Uma nova cidade foi construída em outro local do país menos de dois anos após o acidente, as pessoas da antiga cidade foram enviadas a essa nova, uma espécie de compensação pela perda do lar. A desculpa era sempre a mesma, o discurso nunca mudavam movimentação de guerra, proximidade da usina, entre outras desculpas mais. Com a construção da cidade, veio também a construção do grande muro.

O intuito era o de ajudar as vítimas da contaminação, pessoas que adquiriram câncer, era um grande hospital abrigando essas pessoas, alguns formadores de opinião fomentaram a dúvida, um hospital para câncer, muitos doentes = efeitos da radiação. O acidente sendo trazido à tona novamente, perigo para o governo. Em pouco tempo o governo tratou de cercar os arredores do hospital com um grande muro, com o tempo o muro foi ampliado, abrangendo uma área muito mais vasta, prédios foram construídos. Aos poucos os doentes quando tinham uma condição melhor, ao invés de voltarem para casa, foram condenados a permanecerem dentro do muro. Com o passar dos meses, toda e qualquer pessoa que indicasse contaminação, seja com aparecimento de câncer ou algum outro tipo de doença estranha, era logo levada para lá. No início muita revolta da população, mas seus brados eram logo rechaçados a pauladas, militares pululavam na cidade inteira. Por conta da contaminação, muitas crianças nasciam com má formação congênita, deformidade de todos os tipos. Mais essa preocupação para o governo, que com pulso forte e sangue frios, tratavam logo de mover as crianças do hospital da cidade para atrás do muro, condenadas a viverem para sempre escondidas. Os médicos mostravam um bebê normal que tivesse morrido no parto para os pais, enquanto o verdadeiro era enviado ao confinamento, alguma família lá dentro iria adotá-lo, os moradores eram misericordiosos.

Logo o muro se tornou uma histeria coletiva entre os governantes, o esqueleto no armário. Toque de recolher, alarmes, tudo para manter aquilo escondido. Na escola era proibido mencionar o muro, até nas ruas era proibido. Muitos repórteres tentavam se infiltrar sem sucesso. O governo impôs o alarme da proximidade de aviões, todo e qualquer que se aproximasse, o alarme tocava e ninguém atrás do muro poderia ficar nas ruas ou janelas, os poucos que tentavam, sumiam e nunca mais eram vistos. Agentes especiais treinados para localizar pessoas escondidas. Muitas famílias escondiam doentes com medo deles serem enviados para atrás do muro, a população viva com medo, aquela cidadezinha que tinha sofrido com o acidente, hoje sofre com o medo psicológico, talvez ainda pior que aquela ameaça invisível.

Um mês após ser enviado para atrás do muro, Thomas estava se adaptando muito bem no seu novo lar, no momento ajudava seu irmão sem pernas e almoçar, fazia isso com muito carinho e amor. Era a coisa que mais gostava de fazer, brincar e ajudar os irmãos. Pouco ia lá fora, mas esse pouco já era muito mais que fazia na época em que morava com os pais, crianças se adaptam facilmente, com ele não foi diferente. A única coisa de que sentia falta eram os pais que sempre foram muito afáveis e protetores. Mas em sua mente, a vida que segue. Enquanto alimenta seu irmão, bandeiras do país se espalham ao longo do país em janelas, vidros de carros, camisas e etc, demonstrando assim um grande patriotismo, as festividades estão para começar.

O país inteiro entra no ritmo das festas, bandas locais e até internacionais confirmaram participação. Estava marcado para as 12 horas o começo, a hora em que o hino seria tocado em todos os estados. Tomando um café, o presidente acompanha pela televisão o começo das festas, se levanta da cadeira, coloca a mão no peito, vai começar o hino:

“Vindo de muito longe, a perder de vista,

o bravo conquistador nos unificou,

uma tribo se formou.

Pegaremos em armas, defendendo a pátria.

A terra do conquistador é abençoada,

nossas florestas as mais verdes.

O ouro mais brilhante.

Buscando a glória eterna.

No trono, seu destino,

Sempre o mais importante da nação.

Nunca iremos nos entregar,

Não enquanto brilhar esse brasão.

Avante! Avante! Avante!”

Findo o hino, ele pede para que seu assessor entre no gabinete. O assessor entra afobado:

- Senhor presidente, tudo está armado.

Nem foi preciso dizer mais palavras, o presidente, o dispensou com um gesto, se acomodou novamente na cadeira, bebericou o final do café e sorriu. Se tudo desse certo, estaria livre, que todos celebrem esse grandioso dia, ele ficará na história, a maior jogada política, o golpe de gênio. Expectativa, não existe outra palavra para explicar o que o presidente está sentindo agora, só esperar.

Na cidadezinha, as bandas chegavam, seriam mais de vinte e quatro horas seguidas se música, o sistema de som estava caprichado, super potência, naquele dia ninguém iria dormir, até uma tentativa de isolar a acústica dos hospitais foi feita, mais tarde comprovaram que não adiantou muito, todos os pacientes ouviram música do começo ao fim. A cidade em peso compareceu, poucos foram os que ficaram em casa. Comida e bebida de graça, entrada liberada para todas as idades, doces, balas, até fones de ouvidos foram distribuídos para quem quisesse amenizar o impacto do som. Jean, Tadeu e os pais estavam presentes, mas Jean tinha uma outra coisa para fazer, Tadeu já sabia o que era, embora tivesse tentado tirar essa idéia da cabeça de Jean, foi em vão.

Ela terminou de lavar a louça, foi até o escritório do marido e perguntou se ele queria ir no festival, nem que fosse apenas por algumas horinhas. Ele se recusou, ainda estava de luto pela perda do único filho, ela se senta ao seu lado, afaga seu cabelo e ambos choram, o filho nunca mais vai voltar.

Os dois saíram da praça principal aonde eram realizados os shows, pegaram as bicicletas e foram em direção ao grande muro. Mas não conseguiram chegar muito perto, ao redor do muro estava cheio de viaturas militares: carro patrulha, pequenos carros e até caminhões cobertos com lona. Jean desceu da bicicleta e notou que alguns carros entravam no grande muro. Tadeu puxava seu braço:

- Vamos embora Jean, eles vão acabar vendo a gente.

Mas Jean não iria desistir da idéia de saber o que está acontecendo ali dentro, toda aquela movimentação não é normal. Ele passou todo o mês buscando uma forma de conseguir entrar, mas foi em vão, a segurança não dava a mínima brecha. Agora ele via a grande oportunidade, tinha um caminhão pertinho deles, ninguém ao redor. Jean foi a uma rua ao lado esconder as bicicletas, voltando levantou a lona e percebeu que não tinha nada dentro, confiante puxou pro lado uma abertura e já ia se enfiando quando sussurrou para Tadeu:

- Entra logo antes que apareça alguém aqui.

O pobre Tadeu hesitava, não queria, estava desesperado, ao mesmo tempo que não queria entrar, sabia que não podia deixar o amigo sozinho, ainda mais quando ele contou sobre o que o pai tinha contado, demonstrando confiar demasiado nele. Fazendo o gesto da cruz entrou pela mesma brecha que Jean. Seja o que Deus quiser, pensou.

- Agora fica quieto, em breve o caminhão deve entrar no grande muro. – Sussurrou Jean, transbordando otimismo.

Longe, muito longe daquela cidadezinha, o presidente acaba de dar o tão esperado aval para que a operação comece. Antes mesmo de terminar de desligar o telefone, o general avisa a todos os comandados, a ação está para começar.

Deitados e em silêncio, os dois meninos percebem que o caminhão começou a se movimentar, o motor roncava baixinho. Uma quantidade muito grande de máquinas fazia uma verdadeira sinfonia. O telefone já tinha tocado, nenhum soldado poderia refugar, a punição para traição a pátria é a morte. Todos os problemas já tinham sido resolvidos, cada detalhe pensado, se tudo corresse bem, seria uma ação limpa e solucionada em um dia. Os dois meninos se comunicavam por sussurros. Tadeu apavorado, Jean apavorado embora não queria demonstrar, se for pego, como contar isso ao pai? Seu pai tinha sido muito claro sobre manter distância do muro, agora ele estava entrando, uma peripécia muito além do esperado. Nesse momento os pais de Jean curtem o festival, com shows de rock pesado, sacudindo e não deixando ninguém dormir naquela pequena cidade. O caminhão freou, dias portas bateram, passos apressados, homens conversando, uma grande agitação. Esperaram alguns minutos:

- Vamos descer. – Falou Jean.

Quando Tadeu fez questão de recusar, já tinha visto que Jean se espreitava para fora do caminhão, estava começando acostumar com as loucuras dele, maldito Thom que fritou os neurônios do amigo, fez ele perder o juízo. Jean espiava o grande exército, eram aproximadamente cem homens, todos armados com lança-chamas. Tadeu agora se junta a ele, abismados olham o exército. Notam também bombeiros chegando ao local. O comandante pegou um megafone.

O pai adotivo daquelas crianças fumava um cigarro, quando a voz grossa em tom de ordem mandava todo mundo sair de casa sem muita demora. Apagou o cigarro, beijou e abraçou cada um dos filhos, pegou sua doce mulher nos braços, lhe deu um beijo. A mulher pegou o menino sem pernas nos braços, enquanto o marido falava com os filhos:

- Vamos descer, o fim se aproxima.

Já tinha pensado nisso inúmeras vezes, sabia que esse momento iria chegar cedo ou tarde, com essa agitação toda, essa movimentação intensa e barulho, não havia mais dúvidas. Com Deus em mente desceu as escadas.

Um pequeno agrupamento de moradores se formou, olhavam sem entender, alguns correram, alguns se arrastaram, a ordem dada, os gatilhos puxados, chamas voando para todos os lados, homens frios naquele momento, respeitavam ordens, queimavam pessoas. Rolavam no chão, sem propósito, morriam rápido. Militares invadindo prédio por prédio, apartamento por apartamento, deixaram a educação em casa, não batiam nas portas. Chutes para derrubar portas, dobradiças quebradas, alguns vidros quebrados, pessoas se jogando das janelas, algumas sobreviviam grandes quedas, mas um disparo de fogo acabava logo com isso, morriam embolados no chão. Desalmados soldados rangendo os dentes matavam a todos. Bombeiros apagavam o fogo, uma turma que foi deixada de fora da matança recolhia os corpos e jogava nos caminhões, em um deles, chocados, dois garotos se escondiam e rezavam em silêncio, as duas testemunhas do genocídio, não chegaram a presenciar a morte de Thom, o menino abria os braços e uma lágrima caía quando o fogo o carbonizou, os dois ainda perderam a discussão, na verdade uma pequena discussão entre dois soldados:

- Ei, aquela ali não parece uma mulher normal?

- Está contaminada na mesma.

- Mas não quero ter a consciência pesada.

- Então deixa que eu mato.

Com uma pistolada e a divergência foi sanada, a mulher morta e os dois voltando a chacina. Uma pequena demonstração de compaixão em meio a tanta sede de sangue e mortes. A cidade no momento nem desconfiava, curtia o s_m no máximo v_\ume, bebida e comida de graça, fora a grande queima de foros de artifício, coloridos, vários desenhos, a cidade e o país em festa, vamos celebrar.

O presidente acabava de receber a notícia do fim da primeira etapa, executada com êxito, a segunda etapa preocupou um pouco o presidente no começo, a questão do enterro dos corpos, as melhores soluções são sempre as mais simples, se lembrou da lâmina de Ockham. Um deserto próximo, não era bem um deserto e sim um cânion, serviria de lugar para as covas, grandes foram cavadas e um grande toldo cobrindo elas, seria uma espécie de parque de obras ou de grandes escavações. O único problema é que as máquinas que iriam finalizar o enterro só chegariam pela manhã.

Ele olhava para a grade, ao lado dele dezenas de companheiros, dez anos se passaram desde que ele e Jean se arrastaram para fora da cova, em meio a muitos corpos carbonizados. Poucos anos após o genocídio, o país entrou em guerra, sucumbiu aos invasores, que descobriram a barbárie feita e o acidente nuclear escondido. A luz mostrada a todo mundo, que em prol da vida exigiam punições severas. Os líderes todos punidos, alguns ainda sendo julgados.

A grade se abre, os bravos soldados derrotados voltando para casa, um país destruído pela guerra, era tempo de recomeçar e reconstruir. Tadeu ainda carrega as lembranças de Jean, seu amigo morto na guerra. Agora ele volta, espera que para um país sem mentiras e sem nenhum esqueleto escondido no armário.