LEMBRANÇAS DA FERA
Algumas coisas ficam para sempre guardadas em nossa memória. Lembranças boas, como uma música, um evento, um encontro, etapas que por mais que o tempo passe, são praticamente impossíveis de serem apagadas. Evidentemente, não só de flores é feita a vida, e por isso mesmo, em alguns momentos, nos flagramos assombrados por alguns fantasmas que insistem em nos visitar de forma recorrente. Por mais que tentemos exorcizá-los, e às vezes nos pegamos iludidos por um falso sucesso, na calada da noite, quando a proteção do astro rei não nos faz mais companhia, quando cerramos as pálpebras em busca de descanso, somos surpreendidos pela presença indesejada que revira nossos pensamentos como um turbilhão, arrancando um suor gelado dos poros, produzindo um tremor dos pés à cabeça.
Dizem que para que um medo seja vencido é necessário que seja enfrentado, não sei se isso está correto, mas confesso que me peguei por diversas vezes questionando sobre tal afirmação. É muito difícil, é importante que se diga, a simples hipótese de tornar palpável, através de um enfrentamento, algo que é capaz de proporcionar tamanho incômodo. Entretanto, é igualmente difícil passar ano após ano sofrendo com um pesadelo que lhe rouba a paz e o sono.
Talvez por conta disso eu esteja aqui, atravessando a baía nessa barca, algo que não faço há mais de trinta anos, e que jurei para mim mesmo jamais voltar a fazer. Trago como alento a certeza de que a quebra de uma promessa efetuada sob tais condições só pode vir a me prejudicar, e a mais ninguém.
O sol reflete um brilho cativante sob o espelho d’água, a brisa marinha sopra suavemente, ao mesmo tempo em que me proporciona uma sensação agradável, trás também aquela velha melancolia que me aperta o coração. Fecho os olhos, é inevitável a lembrança daquele dia, o último daquelas férias. Como um período de quinze incomparáveis dias pôde ter sido reduzido a um único e maldito episódio? Se eu tivesse ido embora um dia antes, tudo teria sido tão diferente para mim...
Naquela época, com apenas doze anos, obviamente eu tinha uma visão de mundo completamente diferente. E por conta disso, era muito complicado entender e assimilar algumas recomendações e ordens, tudo se misturava; a realidade e a ficção, o que era sério e o que era entretenimento contado ao redor de uma fogueira nas areias da praia. A ilha, para a qual me dirijo nesse momento, é um reduto de tranqüilidade incrustada no meio da baía, e conserva até os dias de hoje aquele ar de cidade do interior, embora localize-se em plena metrópole.
A casa dos meus parentes era uma das maiores do local, e curiosamente ostentava em sua parte posterior uma grande área verde, com um vasto gramado e muitas árvores frutíferas, que se mesclava com o terreno do antigo cemitério local, hoje desativado, mas que ainda exibe algumas marcas nas dependências da residência.
O estranho é que um cenário tão peculiar como esse poderia servir para intimidar ou amedrontar um bando de pirralhos como o que era formado por meus primos e eu. No entanto, as histórias que nos eram contadas só funcionavam como um estímulo à nossa curiosidade infantil, e é justamente nessas horas que ocorre a já citada falta de limites.
Nossa tia-avó fazia inúmeros relatos de coisas estranhas e situações absurdas que aconteciam na ilha, e jurava que todas eram verdadeiras, que fora testemunha ocular em muitas. A que mais mexia com o nosso imaginário era, sem dúvidas, a da velha que cozinhava partes humanas em panelas de barro. Segundo o relato, a velha se escondia além dos domínios do cemitério, próximo da mata de flamboyants, quem ousasse pisar nos arredores de seu casebre, teria assinado a própria sentença de morte. Já na última semana das férias, arquitetávamos um plano para investigar o casebre da velha amaldiçoada a fim de checar a veracidade dos fatos, era uma prova de valentia, ou algo do tipo, foi aí que todo o problema teve início.
Minha tia-avó estava muito inquieta naquela noite, aliás todos na casa estavam, com exceção das crianças. Nossa intenção era a de escapar no meio da noite, para dar um clima sombrio à nossa empreitada. Mas havia algo de diferente no ar, algo que até então não havíamos experimentado, e que eu só viria a entender bem depois.
Todas as portas e janelas estavam trancadas, percebemos que havia um rastro de sal em cada possível saída da casa. Questionávamos os adultos à respeito de tão estranha providência, mas ninguém demonstrava o menor interesse em querer explicar nada. Foi montado um verdadeiro acampamento na ampla sala de estar, vários colchonetes foram dispostos no chão, sugerindo que todos passariam a noite ali, juntos.
Tudo ficava muito mais estranho, a noite estava excessivamente quente, uma grande lua amarela iluminava fartamente o quintal, então, por que diabos todos davam a entender que um confinamento se fazia necessário? Por que a tia-avó e as primas adultas rezavam de maneira tão fervorosa?
Estávamos todos dormindo, não sabia exatamente que horas tudo havia começado, mas o silêncio da madrugada fora subitamente quebrando por um estardalhaço que parecia vir do telhado da casa. Era como se um exército marchasse sobre as telhas. Todos estavam posicionados numa espécie de círculo, abraçados, alguns dos meus primos choravam e gritavam a cada novo ruído. A matriarca da casa mantinha-se em pé, de frente para a porta principal da casa, olhava fixamente para a folha de madeira enquanto segurava um terço e mexia os lábios sem emitir nenhum som.
Eu não estava com medo, juro que não estava, naquela época me achava muito corajoso, ou estúpido, dependendo da situação. Levantei-me sob o olhar repreensivo de uma das minha primas mais velhas, pouco liguei para o sinal de desaprovação e segui em direção à minha tia, que não se virou para me encarar. Continuei até a porta, fui impedido por um grito e uma mão enrugada no ombro. Ela me disse para não continuar com o que eu pretendia, então parei, mas, ainda assim, uma força maior me fez olhar pela fresta da porta, e o que vi me fez esquecer de todos os contos que havia ouvido, aquilo era diferente, terrivelmente diferente.
Não ouso reproduzir em palavras os contornos da figura que vi, basta dizer que seus olhos eram perturbadores, exalavam uma maldade que não poderia existir em um ser originário desse plano. Eram rubros, queimavam como o fogo, e se esgueiravam pela penumbra das árvores, o céu já não estava tão claro, naquela altura o quintal estava envolto em trevas. Eu ouvia a respiração do bicho, podia sentir o cheiro nauseante que era expelido do seu corpo, ele rondava na frente da casa, eu sentia que ele era capaz de nos perceber, mesmo sob a proteção das paredes da casa.
Dei um passo para trás quando tive a impressão de que nossos olhares se cruzaram. Ameacei dizer algo, mas o dedo da minha tia selou meus lábios, entendi que deveria permanecer em silêncio. Quase sussurrando ela me disse: “Essa é a primeira noite do ciclo, a pior de todas, devemos guardar as palavras, a fera tem fome, e vai se fartar essa noite. A lua comanda seu passos e a insanidade domina sua mente”. Ela fez o sinal da cruz e me indicou, com o dedo esticado, o lugar onde deveria permanecer. Confesso que nunca havia visto a tia-avó com aquela expressão, e de fato, nunca mais voltaria a contemplá-la.
Na manhã seguinte, quando o sol voltou a tocar nossas vidas, corri para o quintal no intuito de buscar algum indício da criatura que nos visitara e atormentara durante toda a madrugada. Não precisei procurar muito, logo no assoalho da varanda pude perceber a marca da fera. Profundos sulcos riscavam o verniz deixando exposta a parte crua da madeira. Coloquei-me de joelhos e examinei o piso com mais cuidado, notei que existiam muitos outros riscos, antigos, recobertos por uma nova camada de verniz.
Minha tia, de posse de uma mangueira de jardim, despejava jatos d’água no gramado. Levantei-me e corri ao redor da residência. Notei que marcas de barro manchavam as paredes externas, jarros de plantas haviam sido quebrados, arbustos jaziam no chão com as raízes expostas, mas o que mais me chamou a atenção foi o rastro escarlate que seguia na direção do pequeno criadouro localizado atrás da casa.
Quando lá cheguei fui surpreendido por uma cena absurda, parecia que a área compreendida entre a casa e o cemitério havia sido lavada com sangue. Percebi partes destroçadas de animais por toda parte, dentre o mar vermelho pude reconhecer porcos, galinhas, cabritos, até mesmo o viveiro de pássaros havia sido destruído. A voz de minha tia entrou em meus ouvidos trazendo-me novamente à realidade, antes que eu pudesse questioná-la sobre o que estava acontecendo, ela simplesmente se antecipou e disse que ninguém falava sobre isso, dando a entender que não haveria espaço para perguntas.
Antes de ser arrastado por ela, estiquei a visão ao longe, para além das cruzes fincadas no barro triste, uma fumaça acinzentada escapava do pequeno casebre, parecia que a velha moradora estava ocupada com seus afazeres. Imediatamente a figura da fera noturna me veio à mente.
O que mais me chamava a atenção para o que acontecia era o fato de que nenhum dos adultos havia contado nenhuma história, nenhum fato ocorrido, nada mesmo sobre aquela criatura. Era algo muito estranho, todos eles permaneceram calados durante todo o dia, as crianças estavam apavoradas, eu era uma exceção, assim como o pequeno Ricardo, um garoto local, filho dos ajudantes da casa, ele era uns três anos mais novo do que eu, e passara todo o período das férias conosco. Ele era bastante esperto e nos mostrara inúmeras coisas na ilha, proporcionara situações divertidas e ensinara traquinagens que nem imaginávamos.
Naquela noite, o mesmo cenário estava armado na sala, Ricardo fez sinal para mim, o acompanhei até a cozinha. Ele me disse que aquela criatura aterrorizava a ilha todo mês, a primeira noite do ciclo era a pior, ninguém ousava por os pés nas ruas após o cair da noite. Mas, mesmo com toda a cautela dos locais, a fera sempre dava um jeito de encontrar um imprudente solto pelas esquinas, e ela não perdoava, devorava até os ossos, não deixava vestígios. Ele disse, ainda, que após o ciclo sempre ocorria uma troca de acusações sobre o responsável pelas atrocidades, existiam muitos suspeitos, mas para ele, a fera morava no casebre do cemitério.
De acordo com suas palavras, ninguém ousava encarar a criatura, não existia viva uma só pessoa que teria feito isso, mas eu fiz, olhei direto nos seus olhos, até então o medo não me consumia, mas depois que ouvi isso, senti um calafrio tomar conta do meu corpo. O garoto não demonstrava receio, ele nunca havia ficado tão próximo da fera quanto na noite anterior, mas ainda assim esboçava aquele misto de coragem e estupidez que eu havia comentado. Senti que ele tramava algo, e ao notar a lanterna em sua mão, tive certeza.
Ricardo me disse que constataria que a velha do cemitério era a fera, ele se esconderia próximo do casebre e presenciaria a transformação, retornado antes que pudesse ser interceptado por ela. Eu tentei fazê-lo desistir de tal intenção, confesso que também estava envolvido pela curiosidade e fervor do momento, mas não a ponto de cometer tamanha insanidade, não depois de ter visto aquele brilho assassino nos olhos da criatura.
Não consegui retirar a idéia de sua cabeça, o garoto atravessou a porta dos fundos e desapareceu por entre as árvores que enfeitavam o caminho até o cemitério. Voltei para a sala onde o círculo estava formado, a tia-avó posicionava-se da mesma maneira, defronte a porta principal. O tempo passou e diferentemente do choro e da lamentação do grupo, Ricardo não havia retornado. Lá fora um som peculiar e perturbador era ouvido, a fera montava guarda em nosso quintal.
Meu pensamento estava fixado no paradeiro do garoto, eu não havia falado nada com ninguém sobre a tolice que cometera, todos deveriam ter imaginado que ele retornara para a segurança do próprio lar e companhia dos pais, embora ninguém tivesse comentado nada a respeito. Nesse momento, acho que cometi a maior besteira de minha vida, levantei e fui até a cozinha, sob a reprovação das mais velhas. Olhei pela fresta da porta dos fundos, um ponto luminoso se fazia presente no meio da escuridão, vinha do casebre da velha. Imaginei que a fera estaria concentrada na frente da casa, uma vez que não havia mais nenhum animal que ela pudesse devorar ali atrás, então, tomado pelo impulso, atravessei a proteção de sal e corri na direção do cemitério tendo em mente o resgate do colega. Levei um isqueiro que encontrei na cozinha, pois não havia mais nada que pudesse me ajudar a quebrar as trevas nas quais mergulhava naquele momento.
Procurei-o por alguns minutos, chamei seu nome, mas não de uma maneira escandalosa, eu não queria chamar a atenção errada. Ouvi um sinal de resposta, demorou um tempo para que eu percebesse que a voz do garoto vinha do alto, de cima de uma árvore. O garoto, esperto como era, buscara refúgio ali, pois alguma coisa no seu plano não deveria ter dado certo. Rapidamente ele desceu e me disse que a fera já rondava o local quando ele chegou, e só havia dado tempo de se esconder, se valendo do artifício de utilizar pó de café espalhado pelo corpo para confundir o olfato apurado da criatura.
Então, algo me deixou aterrorizado, ele me perguntou se eu havia feito o mesmo, o que era óbvio que não. Ouvimos estalos de galhos quebrando, desviamos o olhar para a mesma direção, um par de brasas rubras nos observava, gritamos e corremos às cegas. A lanterna e o isqueiro ficaram pelo caminho na tentativa de fuga, Ricardo disparava na minha frente, sentia que seríamos alcançados em instantes, foi quando aconteceu.
Caí numa espécie de buraco, era muito profundo, porém estreito, mal comportava meu corpo. Olhei para o alto e percebi uma sombra nublar por alguns instantes a presença da lua cheia, em seguida ouvi gritos medonhos, sofridos. Imaginei que meu amigo estava sendo destroçado, era possível perceber sua dor através do desespero contido naquela manifestação. O maldito demônio deveria ter seguido meu cheiro quando saí de casa, e agora, por conta disso, havia alcançado o garoto que tentei ajudar. Seguindo essa linha de raciocínio, logo ele me descobriria naquele buraco, que os céus me ajudassem.
Quando desejei isso, a ajuda dos céus, lembrei que a lua se exibe justamente ali, e ela, a lua, só dava auxílio a uma criatura, a mesma que se esgueirava na entrada do buraco. Olhei novamente para cima e vi aquele brilho maldito a me espreitar, sua respiração era pesada e ruidosa, causaria pânico até no mais valente, quem diria numa criança encurralada no meio da mata. A fera tentava me alcançar com uma das patas, mas eu estava longe demais para isso. De sua boca escorria uma farta gosma que caía sobre mim, era perturbador imaginar a carne de alguém sendo maculada por aquilo.
O bicho mostrava-se inquieto, saía e voltada, tentava encontrar uma solução que pudesse resolver a situação a seu favor. Ele urrava e rosnava, então, começou a revirar a terra fazendo uso das poderosas patas, era o que eu temia. Eu rezava, e de repente, ouvi meu nome, era uma voz familiar que me chamava, a fera também ouviu e abandonou o que estava fazendo. Alguns instantes se passaram até que novos gritos ecoaram, mais morte e dor, mas algo diferente aconteceu, ouvi também alguns disparos. O silêncio reinou. Esperei por algo novo, mas nada aconteceu, e depois de algum tempo, mesmo numa posição desconfortável, a quietude levou-me a uma sonolência quase hipnótica, então, acho que adormeci.
Um impacto na minha cabeça me fez despertar, olhei para o alto e percebi que a luminosidade de um novo dia começava a surgir, uma corda se oferecia para mim. Agarrei-a e fiz muita força para escapar daquela armadilha do solo. Quando finalmente consegui sair, percebi que a corda estava amarrada a uma árvore e vi uma senhora de idade avançada caminhar em minha direção. Não precisei pensar muito para entender quem seria ela, tentei correr mas tropecei e caí com as costas no chão. A velha agarrou-me pelos braços e me puxou, nesse instante uma turba surgia, as pessoas bradavam e apontavam para a mulher que me segurava, só aí percebi as manchas de sangue pelo chão, um terço de prata, e os restos do que um dia foi minha tia-avó, o demônio não conseguira devorá-la por completo, veio à minha mente a lembrança dos tiros.
A velha tentou escapar, mas foi alcançada pelos populares que julgaram-na ali mesmo, espancando-a até a morte. Uma das minhas primas estava no local, somente ela da minha família, mas não se juntava aos enfurecidos, estava ali só para me abraçar e tirar daquele inferno. Eu olhava para trás conforme andava, e visualizei no chão, ao lado da árvore onde estava amarrada a corda, um tipo de espingarda.
Na casa, o grupo continuava na sala, todos sem exceção choravam de maneira sofrida, notei um rastro de sangue no piso enquanto atravessava os corredores, desvencilhei-me da prima e segui as marcas até um dos quartos, então vi a coisa mais espantosa que alguém poderia imaginar. Deitado na cama estava o tio-avô, o irmão mais novo dos sete filhos de minha bisavó, o único agora vivo, já que a matriarca da casa, ou o que havia sobrado dela, estava agora em pedaços largados no solo barrento das cercanias do cemitério. Ele morava sozinho numa casa do outro lado da ilha, mas agora estava ali, dormindo de maneira pesada e envolto por um estranho fenômeno. Várias partículas de chumbo brotavam de sua pele, os ferimentos cicatrizavam instantaneamente conforme o metal era expelido, manchas de sangue ressequido se espalhavam por todo seu corpo, era uma visão infernal, algo que marcaria toda a minha vida.
Recuei lentamente e esbarrei na mesa de cabeceira derrubando um abajur, o barulho fez com que o velho despertasse e me encarasse. O que vi naqueles olhos foi exatamente o que percebi na fera, um ar sombrio e perverso, era estranho, porque até então nunca havia notado isso no semblante do meu tio. Sem levantar da cama, ele esticou a mão em minha direção e disse algo que nunca esqueci, ele me disse que a fera havia ficado atraída pela minha carne, e que não descansaria enquanto não a provasse. Saí do quarto deixando-o gargalhando sozinho.
Corri até a sala, minha prima, a mesma que me buscara no cemitério, posicionou o dedo indicador sobre os lábios num claro gesto de silêncio. Meus pais vieram me buscar, e então partimos de volta para casa, para nossa casa, meu estado emocional estava tão abalado que eles não puderam esperar nem pelo enterro da tia-avó. Naquele momento, enquanto atravessávamos a baía de volta à cidade, eu jurei que nunca mais retornaria, mas, agora estou eu aqui, prestes a atracar no cais da ilha.
Quando soube da morte do tio-avô tive a certeza de que só conseguiria dormir em paz se visse com meus próprio olhos a sepultura que enclausurava aquele demônio. Foram longos trinta anos, pelas minhas contas morrera com cento e três, ele era o caçula, mas já ostentava setenta e três naquela ocasião.
Assim que cheguei fui direto para o cemitério, não para o novo, mas para o antigo mesmo, aquele que tanto atormentava meu sono. Tantas lembranças me assaltavam enquanto caminhava por aquele terreno, flores de diversos tipos cresciam agora por ali. Não havia mais o casebre da velha que fora linchada pela ira do povo, mas ainda conseguia enxergar seus contornos se eu fechasse os olhos. Encontrei a lápide da tia-avó, não pude conter as lágrimas que correram livres pela superfície do meu rosto cansado. Lembrei de todos os momentos bons que passamos, das histórias ao redor da fogueira, dos passeios, dos bolos que ela fazia no final das tardes.
Logo ao lado visualizei o motivo do meu retorno ao passado. Ali, diante de mim, estava o bloco de mármore com as inscrições que tanto desejei ler. Respirei aliviado, de uma forma que não lembrava mais como era, um peso incalculável deixou minhas costas. Desci pelo caminho arborizado em direção à casa, me sentia livre, avistei ao longe algumas crianças correndo pela parte de trás do quintal, distingui, também, uma prima que não via desde a infância, sua expressão era tão viva em minha mente.
Muitas histórias e lembranças foram remexidas durante toda a tarde, mas nada que mencionasse o fatídico episódio. Eu estava tão leve que mal percebi o tempo passar, a tarde já caía e a noite se aproximava, uma tempestade se armava no céu cinzento. Pediram que eu ficasse para passar a noite, sob a alegação de que não seria prudente pegar a barca sob condições adversas. Aceitei, mas não por esse motivo, eu precisava fazer a prova definitiva de que os fantasmas haviam sido exorcizados, eu sentia a antiga confiança de volta, aquela coragem que eu nem lembrava mais que um dia já havia possuído.
Fiquei observando a chuva pela janela do quarto durante a madrugada. Um relâmpago acendeu o céu e pensei ter visto uma imagem que me causou um calafrio. Recuei alguns passos e esbarrei em alguém, era um primo, o mesmo que havia me ligado passando a informação do falecimento do maldito, ele não estava na casa quando cheguei.
Ele exibia uma expressão maligna, e antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, percebi seus braços se entrelaçarem no meu pescoço. O sujeito, embora velho, era bastante forte, eu estava preso de tal maneira que não conseguia me desvencilhar, ele me arrastava pelos corredores da casa. Eu não conseguia falar, quanto mais pedir ajuda, estava quase sufocando. Ele falava que a sepultura estava vazia, por enquanto, que não fora difícil conseguir armar tal chamariz, afinal de contas o seu pai seria enterrado ali mesmo, em breve, mas ele não poderia partir sem antes experimentar a carne que tanto desejara, após isso, poderia, enfim, morrer em paz e transmitir-lhe o legado maldito que há muito ansiava.
A porta dos fundos foi aberta com ímpeto, fui jogado no chão enlameado e com os açoites da chuva a me castigar. Olhei para o meu agressor que exibia um largo sorriso enquanto fechava a folha de madeira protegida pelo rastro de sal. Minhas lágrimas se mesclavam às águas dos céus, eu sabia o que aconteceria a seguir. Percebi uma presença às minhas costas, o que foi confirmado por um rosnar abafado, naquele momento, nada mais pude fazer. As lembranças da fera estavam de volta.