Acirrada disputa

Parte I

Remexendo em uma cabaça imensa, procurando uma cabeça específica. Ele tinha sido alvo de uma injustiça, um pequeno erro que o levou a ser decapitado em homenagem aos deuses. A busca foi bastante difícil, a fisionomia das cabeças eram semelhantes: cor morena, todos eram adoradores do sol, brincos, um prendedor feito de ossos para os cabelos abundantes. Agora eles acharam a cabeça, todos concordam que era ele, até o adversário balança a cabeça em tom de afirmação. O corpo também tinha sido achado, mas o corpo não foi muito difícil, mesmo em meio a uma pilha deles. Cada família tinha o seu próprio desenho, o seu brasão tatuado na barriga, o da família dele era a coruja dos olhos brilhantes. Cabeça e corpo encontrados

O líder sentado em seu trono se levanta, mostra a prova escrita, a fraude, a prova do crime. Ele sabia que as provas estavam se estendendo em demasia, mas não podia permitir que terminasse com esse duro golpe a competição, as provas devem continuar até que seja finalizada de uma maneira justa e limpa. Ele passa perto dos sacerdotes, que também são os escribas e juízes das provas. Para mostrar repúdio, cospe no chão. Aponta o dedo para o chefe guerreiro e em tom imperioso lhe ordena:

- Traga Kehlbawni aqui, imediatamente!

O chefe espiritual, o rei da natureza, o manipulador dos elementos, o curandeiro, o guia, o abençoado pelos deuses. A multidão se agita, batem com os pés no chão, fazem coro, a expectativa reina entre todos na tribo. È raro Kehlbawni ser visto fora de sua tenda, muito raro. Vem andando com passos lentos e cadenciados, arrastando os pés no chão, vem marcando o chão, como se na caminhada já estivesse fazendo uma espécie de ritual. Seu corpo é todo coberto de tatuagens, no seu imenso cabelo abundam ossos de animais, sua barba lisa chegava abaixo da cintura, servia também para esconder seu órgão sexual. Ele nunca foi casado e não foi por falta de pretendentes, mesmo com sua já avançada idade, ele é o homem mais cobiçado pelas mulheres da tribo. Preso em seu ombro uma pequena bolsa aonde vem carregando seus utensílios. Chegando a grande pirâmide dos sacrifícios, ele toca o ombro do líder que retribui o gesto cordial, líderes se entendendo. O corpo do jovem é mostrado e a multidão seguia fazendo barulho, Kehlbawni com um gesto silenciou a todos.

Sabia já o que tinha que ser feito, para fazer uma espécie de suspense e manter a população com a respiração presa, ele pergunta:

- Ressuscitar esse jovem?

Todos apreensivos. Até o chefe esperava ansioso por mais um milagre daquele misterioso velho, nada vindo dele o surpreendia mais, embora trazer alguém de volta a vida seja algo que nunca tinha visto antes, algo um pouco além da sua compreensão.

Tirou a pequena bolsa do ombro, de dentro retirou um pequeno rato de um punhal, com um movimento preciso arrancou a sua cabeça. Com a ponta encharcada de sangue, fez alguns desenhos tribais naquela cabeça que descansava sem vida. Retirou agora da bolsa linha e agulha. Sentou em um banquinho de pedra, apoiou o corpo do jovem nas pernas, meticulosamente juntou a cabeça no corpo e começou a costurar. Foram longos quarentas minutos costurando a cabeça no corpo, fez isso com uma grande precisão cirúrgica, a cabeça bem presa. Enquanto costurava, ia dizendo palavras em uma língua que só ele entendia, alguns poderiam pensar que era um pequeno teatro, mas ninguém dessa tribo ousava esse tipo de pensamento, todos conheciam Kehlbawni muito bem, o velho realmente tinha poderes.

Finalizada a costura, ele colorou o corpo do jovem no chão, andou circundando o corpo dizendo preces agressivas. Tomou o corpo do jovem em mãos. Enfiou uma mão em sua boca, a outra em seu ânus e ergueu o corpo. Os olhos do velho reviraram, uma ventania sacudiu seus cabelos e sua barba. Uma espécie de aura azul brilhou os dois corpos, todos olhavam assustados e alguns ameaçavam correr, quando o velho gritou em uma língua que todos entendiam para aquele corpo voltar a vida.

Abriu os olhos, engasgou por causa da mão em sua boca, todos estavam abismados com a cena, o velho largou o jovem no chão. Se sentindo muito cansado, anunciou que o trabalho já estava feito, pegou sua pequena bolsa e foi embora. O jovem ressuscitado começava a se mexer, levantou do chão e ensaiou alguns passos. O líder da tribo tomou a palavra e anunciou que a disputa recomeçaria, o jovem que tinha vencido engoliu em seco, teria que participar novamente da disputa, mas dessa vez contra o mesmo adversário, só que ressuscitado.

Parte II

Amanhecia, era o primeiro dia do equinócio. Dias e noites iguais, doze horas para cada lado, não se pode reclamar. O começo do equinócio marca o início da competição. O líder saiu da tenda, respirou o ar puro, sentiu o sol queimando sua cabeleira, o palco já estava armado, do alto da sua pirâmide viu os jovens o reverenciando. Com um aceno de cabeça os liberou para se alongarem, seria um dia longo como em todos os anos. Os competidores se esforçavam ao máximo, davam o máximo, não se importando em viver ou morrer, o intuito era a seleção e agradar os deuses.

Desceu degrau por degrau, cumprimentou seu chefe militar, cada sacerdote que seriam os juízes e fez questão de falar com cada um daqueles jovens, nenhum parecia preocupado, desde pequenos são preparados para essa ocasião. No ano que completam 14 anos, todos são chamados para a disputa, é um sistema bem simples, aleatoriamente são escolhidos dois jovens e esses disputam provas de força, resistência e inteligência, o perdedor tem a cabeça cortada em oferenda aos deuses, o vencedor se junta ao exército e passa a ter prestígio. Todos são obrigados a participar, a única exceção que se tem notícia foi Kehlbawni, mas ele é um caso à parte, vivia na floresta conversando com os animais, fora que sempre ajudava a todos com seus medicamentos milagrosos. Com um corpo frágil, teria perdido facilmente e a tribo perderia muito com isso, na época dos seus 14 anos foi sabiamente deixado de fora.

Um casal vem trazendo uma jovem menina, segurando sua mão, ela é a única usando uma roupa, um longo vestido feito de pele de jacaré. Todos param para olhar. Escoltada por dois membros do exército e o chefe da tribo, ela solta a mão dos pais e começa a subir na pirâmide que leva ao altar dos sacrifícios. É sempre uma escolha difícil, todas as famílias oferecem as filhas para o sacrifício, mas apenas uma pode ser a escolhida. Uma reunião dos sacerdotes escolhe a menina que será morta aos deuses, marcando assim o início das disputas. Ela sabe que vai morrer, mantém no semblante uma serena tranqüilidade, é uma honra estar servindo a esse desígnio, mas por dentro está bastante apreensiva, quer que tudo termine logo.

Tocou com o pé direito, ultrapassou o último degrau, os executores a deitar no altar, ajeitam o cabelo da menina, correntes prendendo mãos e pés, a faca muito afiada, ela fecha os olhos, a faca desce e milimetricamente acerta o coração, ela cospe sangue e jaz morta. Seu corpo é erguido, o povo saúda, o chefe da tribo anuncia o começo das disputas, a garota será levada para a pira armada especialmente para essa ocasião.

O sorteio é realizado com a figura que representa cada uma das famílias, simples assim. Não demorou muito e o sorteio foi finalizado, chamando atenção para o embate entre tigre e a coruja, os dois jovens mais talentosos da tribo, isso às vezes acontecia, uma lástima. A pira começou a arder, o corpo da jovem sendo consumido pelo fogo e os jovens começando as disputas.

As provas de força eram as seguintes: Queda de braço, corrida com barris pesado nas costas, arremesso de dardo, uma luta em que o objetivo é empurrar o oponente para fora do círculo e cabo de guerra. As provas de resistência: Quem conseguia ficar a maior quantidade de tempo pisando em brasas, maior tempo com a respiração presa embaixo da água e andar de bananeira. As provas de inteligência eram escritas, eram provas elaboradas pelos sacerdotes, elas envolviam: Conhecimento de ervas, agricultura, história da tribo e matemática aplicada a astronomia. As provas iam contando pontos, qual dos dois pontuasse mais era declarado o vencedor, o outro tinha a cabeça cortada e seu corpo jogado na pilha, para após o término da competição serem enterrados em uma vala coletiva.

Três dias de competição, as cabeças já pararam de rolar as escadas a um bom tempo, o cheiro dos corpos esperando o enterro começa a ficar insuportável, os dois jovens seguem empatados, até alguém declarar o tigre como o vencedor. A alegação foi que ele errou na prova de astronomia. Tinha colocado um tracinho a mais, algo como em nossa língua se a resposta fosse “P” e ele tivesse escrito “R”, um tracinho a mais. O garoto é levado a força em meio a gritos de calúnia, ele parece desesperado, não aceitando a derrota, sua cabeça agora é decepada, rolando escada abaixo em direção a imensa cabaça. Finalmente aquela disputa teria chegado ao fim.

Apenas teria chegado ao fim, todos os perdedores aceitam a derrota, o chefe da tribo ficou pensativo e resolveu examinar as provas escritas, foram algumas horas examinando para conseguir comprovar a fraude, um sacerdote maliciosamente acrescentou um traço a mais na prova do pobre jovem. “Aqueles malditos e preguiçosos velhos”, pensou o líder.

- Quem foi que fez isso? Ele pergunta.

Nenhum sacerdote se denunciou.

Parte III

O jovem que tinha acordado novamente para a vida, apenas mantinha uma consciência pré-morte, não conseguia ter novos pensamentos. Não sentia fome, sede, sono ou cansaço. Sua consciência pré-morte e censo de obediência iriam o guiar através daquela disputa. Ele foi ordenado a descer para que as provas pudessem ter o seu reinício. Desceu e foi de encontro ao jovem que já o esperava, sabia o que tinha que fazer.

Força, resistência e inteligência, todos os dois tinha de sobra, se um marcava um pouco mais de pontos em uma prova, o outro recuperava na seguinte. O povo não comparecia mais tanto nas provas, muitas das vezes preferia ficar em sua tenda. Era uma disputa interminável, vinha sendo disputada a quase uma semana. Ninguém pode dizer que a disputa é injusta, está certo que o jovem tigre quando chega a noite, cai quase desmaiado de cansaço, enquanto o outro não precisa dormir, fica sentado em uma pedra esperando o nascimento do sol para a disputa recomeçar. Por outro lado, o morto vivo começa a perder resistência, seu corpo duro começa a ser comido pelos vermes, nesse momento seu corpo está infestado de vermes famintos. Fora o cheiro que se torna insuportável, tanto das covas quando do jovem ressuscitado. Tantos fatores negativos e que podem desequilibrar a disputa fizeram com que o líder anunciasse uma prova especial para o desempate, os sacerdotes logo deram o aval, ao amanhecer ela irá começar.

De manhã, o anúncio sobre a prova que iria decidir o vencedor atraiu toda a tribo, até Kehlbawni resolveu aparecer, olhava orgulhoso para seu último feito e nutria uma torcida por ele. Um círculo foi desenhado no chão, os competidores chamados para o centro, o jovem tigre torceu o nariz, o cheiro que emanava do oponente era algo inimaginável. As regras foram explicadas. Dentro do círculo, em sistema de turnos, eles trocariam socos, o primeiro que caísse fora do círculo perderia a disputa,d essa vez não teria mais volta, fraudes ou qualquer coisa do tipo. O vencedor será descoberto em pouco tempo.

Início do confronto final, o ressuscitado foi sorteado para começar, logo no primeiro soco arrancou um pouco de sangue do adversário, que se manteve firme de pé. Com uma estratégia estranha e arriscada, para estranheza de todos, o jovem da família tigre golpeava o cotovelo de fora para dentro, ninguém no começo entendeu, mas pouco mais de uma hora de disputa, a intenção ficou bem clara, com o osso quebrado, a pele junto com os músculos já deteriorados pelos vermes, se rasgou facilmente, arrancando o braço, justo o braço bom do jovem ressuscitado. Ele manteve a estratégia, arrancando assim o outro braço. Diante da insistência do jovem de se manter em pé mesmo sem os braços, teve um pouco mais de trabalho para fazer isso com as pernas, golpeando os joelhos. Incansavelmente conseguiu repetir a façanha. Quando o adversário já não tinha mais membros, caprichou no golpe de misericórdia e com um soco no peito, lançou o adversário longe e fira do círculo. Todos aclamavam o grande vencedor.

O chefe da tribo cumprimentou o vencedor e ordenou que a o ressuscitado fosse decapitado. A cabeça fora entregue para que Kehlbawni empalhasse, enquanto o corpo fosse para a pira, honra que mais nenhum jovem teve até hoje.

Vinte e um anos mais tarde, saiu da sua tenda, olhou para aquela cabeça empalhada, símbolo da competição. Se lembrou de como saiu vencedor, pediu proteção a ela para sua primeira competição como líder da trino. Esperava que tudo desse certo, enquanto a menina era trazida para o sacrifício.