O anão sem braços

Aquele anão, aquele maldito anão, por quê raios ele decidiu abrir a boca para me pedir esmola? Ele nunca tinha feito isso antes, ficava lá sempre quietinho, imóvel e mudo no seu banquinho, contando com a boa ação das pessoas, talvez ele tenha cansado de esperar a minha e resolveu me pressionar. Confesso que isso tem funcionado, estou agora aqui, me movendo para lá e para cá na cama tentando dormir, procurando um jeito de afastar a insônia que me atacou. Antes que o sonho venha, vou contar um pouco sobre ele.

Estudo de tarde, me preparo para o vestibular. Como de costume almoço sempre com meus pais. Meu pai aproveita o horário de almoço para filar a comida deliciosa da minha mãe. Após a rica refeição, lavo meu rosto, pego a mochila e vou para a aula.Sempre antes de sair vem o meu com pai com aquele discurso da importância do vestibular, discurso que estou careca de ouvir. Para chegar no cursinho, tenho sempre que passar por uma rua de pedestres bastante popular, vive apinhada de gente o dia inteiro, as melhores lojas da cidade se localizam nessa rua. A movimentação intensa de pessoas, traz consigo uma gama de artistas. Tem o artista “estátua”, usa sempre uma maquiagem sensacional: homem pedra, homem prateado, o anjo. Enfim, sempre em destaque para arrecadar dinheiro. Tem os intitulado “índio”, que de índio tem apenas a aparência, sempre vendendo o seu chá milagroso, tem o tocador de harpa, o dançarino, o malabarista e é claro, o anão.

Sempre o vi sentado em um banquinho de madeira, usava o mesmo boné surrado e creio eu para lá de fedorento. Ele não tinha os dois braços, deve ter nascido sem, pois nem um cotoco se podia notar, tinha apenas os ombros e mais nada, se não bastasse essa deformidade grave, calçava sempre o mesmo chinelo, o que dava para ver que tinha apenas três dedos em cada pé, mas não era dedos normais, eram pequeninos e retorcidos, fora unhas imensas que fazem tempo que não encontram um alicate. Outra singularidade de tão destacada figura, nunca o tinha visto abrir a boca, as vezes algumas pessoas paravam ao seu lado e puxavam papo, ele nunca as respondia, apenas balançava e cabeça ou erguia as sobrancelhas. Além de não ter os dois braços, eu pensava que ele era também mudo. Nunca o vi de pé, mas consigo calcular sua altura em aproximados 1,20m, não mais do que isso. Talvez você me pergunte como sei tudo isso sobre o anão, é fácil, passo em frente a ele duas vezes por dia, as vezes paro um pouco distante e fico observando para ver se algo acontecesse, nunca aconteceu até hoje.

Uma pequena birra que eu nunca pude conter, é uma birra extremamente irracional, infantil até, eu diria. Na sua caixa de esmola, era uma caixinha de madeira, media uns 30cm de comprimento, em cima dela tinha colado um adesivo do flamengo, eu como bom torcedor do fluminense, nunca depositei um mísero centavo naquela caixa, se pelo menos ele tivesse colado adesivo dos quatro grandes ou simplesmente deixado sem, provavelmente teria já deixaria uma boa colaboração, levando em conta esse um ano passando na frente dele. Contribuo com uma esmola sempre que vejo alguém precisando, mas nunca com aquele anão.

Tinha acabado de passar o anão, preparava para dar mais um passo quando ouvi um: “psiu”, olhei para um lado, para trás e nada, retomei a caminhada, mas não consegui completar três passos quando ouvi novamente o “psiu”, me preparava para virar quando ele falou:

- Aqui embaixo.

Eu levei um susto, era o anão, olhei para ele.

- Me dá uma esmola?

Poderia até esperar a queda de um meteorito naquela cidade, menos o anão falando, ainda por cima falando comigo quase em tom de exigência, rapidamente enfio as mãos no bolso a procura de algumas moedas e nada, justo hoje não tinha uma única moeda sequer, estou sempre andando com um monte no bolso. O anão me olha de cara feia quando faço gesto de negação, lhe mostrando os bolsos vazios e dizendo não ter dinheiro. Sinto a fúria em seu olhar, admito que ficou com medo, mas logo passou quando comecei a raciocinar, o que um anão sem braços pode fazer? Esse pensamento me fez dar uma risada irônica, no exato momento em que entrava no cursinho.

Contei o que tinha acontecido ao meu amigo Itamar, ele assim como eu passa em frente ao anão todos os dias, me disse que tinha ouvido o anão falar e ainda especulou algo que eu nunca tinha pensado:

- Você já viu esse anão indo embora?

Parei para pensar naquilo, realmente nunca tinha visto aquele anão de pé, que dirá indo embora. Engraçado que em dias de chuva, não via o anão, mas se porventura estivesse voltando do cursinho e a chuva tivesse estiado, lá estava o anão de novo. Nenhum mistério sobre isso, via o anão apenas por um minuto, depois passava horas estudando para tornar a vê-lo por mais um minuto. Meu amigo deu a idéia de investigar o anão, coisa de espião. Descobrir como ele ia embora, aonde morava, curiosidade mórbida. Cheguei a pensar em fazer isso, mas fiquei com preguiça de esperar o anão, ainda mais que ele mantinha em cima de mim aquele olhar furioso, sanguinário, eu que não queria ficar ali perto esperando ele ir embora.

A insônia parece ter ido, vou aproveitar e dormir.

Cheguei em casa ofegante, corri feito um diabo, minhas pernas tremem até agora, fora os pêlos todos do corpo ouriçados. Vou contar tudo o que aconteceu hoje. Ontem contei um pouco o que sabia do anão, não esperava que as coisas tomariam essa proporção, vão pensar que sou louco, mas deixarei claro que estou sóbrio e de posse das minhas faculdades mentais, todo relato a seguir é verídico, não teria sentido mentir.

Durante a noite acordei diversas vezes, na última delas todo suado, tinha tido um pesadelo horrível, tudo por causa daquele maldito anão. Sonhei com diversos anões, todos com olhos recheados de ódio, alguns sem braços, outros com braços, unicamente para empunharem uma faca e enfiarem no meu peito. Lembro que sou jogado em uma piscina vazia, logo em seguida os anões começam a pular em cima de mim, me sufocando e me furando com afiadas facas, acordei desesperado. Depois disso não consegui mais dormir. Pela manhã, minha mãe comenta das minhas grandes olheiras, disse a ela que não conseguir dormir direito. Sentado na cadeira da sala assistindo a um bom filme de ação, resolvo saciar a curiosidade do meu amigo e a minha também, claro. Vou seguir o anão e descobrir como ele vai embora para casa.

Na hora do intervalo da aula, conto para Itamar a minha decisão, ele me apóia, mas quando pergunto se ele vai comigo, dá uma desculpa esfarrapada, disse que a irmã estava doente e tal. Tudo balela, aposto que estava com medo, gordo sem vergonha. Vale ressaltar que quando eu estava indo para o cursinho, notei o mesmo olhar maligno sendo dirigido para mim, podia até imaginar um braço fantasma do anão se levantando e apontando o dedo pra mim, me intimidando. Hoje tinha andado com muitas moedas no bolso, mas nenhuma iria para aquela caixinha de madeira, não iria deixá-lo me intimidar.

Saio do cursinho, fico de longe observando o anão, o dia começa a escurecer, é a hora de maior movimentação na rua, pessoas indo embora para casa, saindo do trabalho. Duvido que ele vá embora agora. Como previa, ele continuou lá sentadinho. As horas foram passando, o número de pessoas na ria diminuindo, um exercício enorme de paciência. Um garoto se aproxima do anão, parece que os dois estão conversando, o garoto se abaixa e pega a caixinha do dinheiro, o anão agora se levanta, o garoto pega o seu banquinho e começa a andar, o anão vai atrás, andando lentamente, seu jeito de andar lembra de um pingüim. Eles estão vindo na minha direção, tentei me esconder da melhor forma possível atrás de uma pilastra, acho que o anão me viu, mas se viu não disse nada e seguiu caminhando.

Seguir aqueles dois foi uma tarefa bastante fácil, caminhavam lentamente. O garoto parecia o guia, ia sempre na frente. Por quê mão entraram em um ônibus? Deficiente físico não paga passagem, talvez aquele garoto não pague também, mas mesmo que precisasse pagar, o dinheiro da esmola serviria. Quase uma hora de caminhada e percebi que estávamos em um lugar que nunca estive, era um bairro isolado, pobre, com vielas muito próximas uma das outras. Acompanhava os dois sempre de longe, ambos com essa lenta e progressiva caminhada. Imaginava se eles faziam esse trajeto todos os dias para ir e vir, o anão era um herói, o garoto também carregando a caixinha e o banquinho.

Mas foi em um beco que tudo aconteceu, percebi tudo através de sombras, o poste iluminava a parede realçando as sombras. O garoto e ele se enfiaram no beco, o anão parou e vi chocado! Do lugar aonde não existia nada brotarem dois braços, mas pela sombra não se parecia com braços normais, eram grandes e musculosos, protuberâncias como barbatanas de tubarão começavam no cotovelo e iam até os pulsos. No lugar de mãos, garras com unhas enormes. Seu tamanho dobrou, cheguei um pouco mais perto e também por sombras percebi que alguém dormia no chão, a criatura, que antes fora o anão lhe acordou e, antes que pudesse abafar o grito da pobre vítima, sua cabeça foi arrancada. A criatura pegou a cabeça do infeliz, seu queixo foi se alongando como se estivesse abrindo uma enorme boca, jogou a cabeça ali e a engoliu. Foi a gota d`água, virei as costas e corri desesperado, me enfiei no primeiro ônibus que passasse perto de casa. Descendo no ponto, corri até em casa. Meus pais dormiam, tinha avisado que iria chegar mais tarde hoje.

Talvez tenha sido ilusão, estava imaginando coisas, muito impressionado com olhar do anão, às vezes tinha visto algo normal e imaginado outra cena, tinha visto tudo através de sombras, às vezes elas mostram uma coisa quando na verdade ocorreu outra completamente diferente. Criaturas não existem, vou tentar dormir com esse pensamento em mente.

Acordei, tenho aula, mais um dia em que terei que encarar o anão, como seria esse confronto? Estou com muito medo, mesmo assim saio de casa. Lá está ele, sentadinho no banco como de costume. Um choque! Ele me olha com uma risadinha sarcástica, na sua caixinha de madeira, pasmem!! O escudo do fluminense, rapidamente despejo ali algumas moedas, com esse escudo esqueço a minha birra, fora que não quero ser a próxima vítima da horrenda criatura.