A sessão
Anika tentou limpar a mente. A fumaça do incenso a sua frente era branca e densa. Ela tentou ignorá-la e relaxar. O homem sentado na cadeira do outro lado da mesa olhava impacientemente.
- Como é o nome dela? – ela perguntou.
- Janice.
- Bonito nome.
- Ela era mais.
Anika fechou os olhos e deixou-se envolver pelas ondas carregadas de perfume. Esticou as mãos e tocou a superfície gelada da bola de cristal. Abriu a boca e engoliu uma massa de ar quente. Por um instante achou que fosse engasgar. Conteve a tosse. Poderia estragar tudo.
O homem ia pagar bem se ela conseguisse entrar em contato com a falecida. E isso bastava para fazê-la se empenhar na tarefa de tapeá-lo.
O cara parecia rico. Depois que ela aplicasse o golpe e ele pagasse o combinado, assim que ele fosse sair ela bateria a carteira. Ele usava um terno e no bolso de trás ela havia notado um volume que podia ser a carteira. Não faria diferença, quando ele fosse pegar o dinheiro ela saberia.
Nos fundos da tenda, num quartinho com um abajur colorido o filho da cigana descansava depois de ter tomado sua mamadeira.
- E então? – perguntou ele.
Anika sorriu. Quanto mais ansioso ele ficasse melhor.
- Tenha paciência, por favor. Existem muitos mortos vagando ao nosso redor e a maioria daria qualquer coisa para poder trocar uma palavra com um vivo.
- Faça o favor de ser mais rápida, madame.
Teatralmente ela suspirou e soltou o ar devagar, emitindo um silvo baixo. Quase todos os clientes ficavam tensos nesse momento.
- Ela está vindo.
- Tem certeza de que é ela?
- É Janice, não é? O nome dela?
- Sim é.
Anika conteve um sorriso. Esse estava caindo rápido.
Ela abriu a boca para continuar quando sentiu o toque em seu ombro. Frio e enchendo-a de calafrios. Dedos apertando o tecido e pressionando a carne.
- Senhor?
- O que foi? Não é ela?
A voz continuava vindo do mesmo lugar. Ele continuava sentado. Do outro lado da mesa, à espera.
Anika engoliu em seco. Sentiu outra mão sobre o outro ombro. Talvez ela devesse parar de brincar com aquilo. Ou...
Lembrou-se de ter bebido um pouco aquela tarde. Era isso. Era efeito do álcool.
- Muito bem. O senhor me desculpe.
- O que há com você? Está pálida, está suando.
- É só uma gripe. Vamos continuar, por favor.
- Claro que vamos.
Agora o show ia começar.
- Janice – ela sussurrou e esperava ouvir o homem engolir em seco, mas não ouviu.- Janice seu marido deseja falar-lhe.
Anika sentiu o sangue evaporar das veias quando, junto ao ouvido, uma voz respondeu:
- Eu sei... também quero falar-lhe... depois...
- E então, madame? O que ela está dizendo? Eu não consigo ouvir.
O toque em sua bochecha não podia ser produto da bebida, muito menos da imaginação. Aquilo era real, ela podia sentir até o cheiro de terra misturado a um outro cheiro muito parecido com o de lavanda.
Só pode ser o incenso, Anika pensou, o incenso queimando ao lado da bola de vidro.
- Madame?
Anika molhou os lábios, sentiu a língua áspera como sola de sapato.
- O que ela está dizendo? Eu não consigo ouvir daqui.
Anika abriu os olhos e esperou encontrar a solidez do interior da sua tenda. E esperou que com isso o toque em seu rosto desaparecesse.
Mas não desapareceu. A mão se instalou no pescoço, desagradável como a pele de uma serpente.
- Como o senhor se sente? – perguntou ao homem – Sente-se... bem?
O homem sorriu.
- Claro. Minha esposa está aqui.
- Co-como o senhor sabe?
- Ela está atrás de você.
Anika virou-se para encarar a mulher descarnada. Gritou enquanto ela sorria.
O homem ergueu-se rapidamente e tirou o pequeno estojo do bolso da calça, contendo o bisturi. Esticou o braço e cortou a garganta da cigana, esbarrando na bola de cristal falsa, fazendo-a rolar e finalmente estilhaçar-se no chão acidentado.
Em meio à fumaça do pedaço de incenso que restava, Anika viu o rosto do cadáver contorcer-se enquanto os vermes caíam, expulsos de casa.
- Você está linda como sempre, querida.