A sonsa sanguinária
Dissimulada. Sonsa. Quem vê aquela carinha sempre sorridente e amigável, jamais imaginaria o que se passa naquela mente fria e assassina.
Chega de mansinho, como quem não quer nada, distribuindo sorrisos e afagos, fazendo-se querida através da sedução da inocência e da candura. Mas o que ela quer, na verdade, é promover a mais torpe chacina sanguinária. E o pior -- sem demonstrar nenhuma piedade ou remorso. E sem controle algum sobre os seus baixos instintos.
Perto dali, três inocentes recém-nascidos, em tudo dependentes dos pais cuidadosos, enquanto esperam ser alimentados, acariciados, acalentados, nem mesmo têm parâmetros ou memória para imaginar o perigo terrível que os espreita.
Apesar da vigilância cerrada, a pequena e malvada criatura finge distrair-se com outros assuntos. Passeia vagamente pelos arredores, faz cara de paisagem. Ou, então, recolhe-se num recanto qualquer, propositalmente longe do seu alvo pretendido. Mas sempre tendo o cuidado de mantê-lo desimpedido na sua aguda linha de visão. Porque sabe que o momento do ataque está próximo.
Por mais que se desvelem em atenções e carinhos, os pais precisam ausentar-se do lar de tempos em tempos. De que outro modo poderiam providenciar alimentos e outros artigos de primeira necessidade? A vida exige sua própria manutenção. A sobrevivência e o desenvolvimento de seus três rebentos depende dos seus esforços infindáveis.
Ela sabe disso e conta com isso. Aliás, desde antes do nascimento de suas inocentes vítimas, já andava por ali planejando o cruel ataque. Fria e calculista, percebe que a ocasião se aproxima ligeira, inexorável. Fareja o ar, como quem aprecia um perfume.
Alheias aos perigos iminentes, as três ingênuas criaturinhas ensaiam as primeiras tenteantes saídas de seu confortável e seguro lar. No princípio, sob o olhar vigilante dos pais, nada têm a temer. Estão protegidas.
A sonsa não tem pressa. Espera paciente e dissimuladamente. Só falta olhar pros lados e assoviar uma antiga canção singela. E o faria se soubesse. O seu olhar jamais foi tão doce como agora.
Os pais saem uma vez mais para a lida cotidiana. Os infantes, cheios daquela natural curiosidade e infinita autoconfiança, atrevem-se a atirar-se de uma vez por todas no mundo. Lançam-se atabalhoadamente no primeiro voo rumo à liberdade.
Pérfida e certeira, ela salta como um raio fulminante sobre cada um daqueles pequeninos incautos seres.
Penas, bicos, ossos e entranhas misturam-se e emplastram-se com o seu próprio sangue. Três frágeis e incipientes vidas são assim interrompidas com brutal frieza e crueldade.
E ela, a sonsa, a torpe assassina, ainda com os trágicos vestígios do seu ato insano feito um macabro enfeite em seu focinho cínico, dispõe os três pequenos cadáveres dilacerados, lado a lado, sobre o capacho em frente à porta de sua ama e senhora. Que, horrorizada, recusa a fúnebre oferenda. Enquanto, chocada, procura entender como aquela biltre sanguinária consegue abanar alegremente o rabo, logo depois de ter ceifado com requintes de crueldade três inocentes vidas mal começadas...
* * *
Os fatos deste conto são reais. Aconteceram na casa de uma amiga.
Cachorros agem por instinto e a caça oferecida a ela na verdade foi um gesto de gratidão, uma retribuição pelos cuidados e carinhos que recebe da dona. Portanto, não devemos julgar a ação da cachorrinha sob os parâmetros dos nossos valores humanos.
Mas não pude me conter. Era um tema excelente pra exercitar um lado da literatura que nunca me atraiu, o terror. Aliás, não gosto nem de filme de terror. Só faria isso a título de brincadeira.
E me diverti de montão escrevendo essa bobageira!