Os Assassinos Sedutores
1932. Gabriel saiu do hotelzinho onde morava e mudou-se para um pequeno apartamento na Rua do Templo, quase esquina com a Jordan Road. A região controlada pelo poder paralelo, em Kowloon, não era o melhor lugar para se criar uma menina, e ele assumira o papel de guardião de Ling Ly, depois que a salvou dos capangas do senhor Wong. Sabia que ela não ficaria no orfanato, e se afeiçoara a ela, não queria que ela voltasse para as ruas. Deixou de freqüentar as casas de ópio, para passar desapercebido entre as pessoas, deixou de se esforçar em parecer invisível e passou a se misturar, inicialmente com os ocidentais, mas os britânicos que viviam em Hong Kong eram orgulhosos e mesquinhos, não se davam com os chineses. E não podia criar Ling Ly como se ela fosse uma garota inglesa, pois mesmo sendo cidadã britânica, a realidade lhe seria muito dura, e ela iria ser considerada estrangeira tanto pelos ocidentais quanto pelo seu próprio povo.
Gabriel matriculou Ling Ly no Colégio Diocesano de Moças, lhe ensinou xadrez e a tocar violino, o instrumento que sua mãe o tinha forçado a aprender, quando ele mesmo era garoto, e Ling Ly, por sua vez, lhe ensinou cantonês, majong, um jogo semelhante ao dominó, e nos finais de semana, após a missa da manhã, passavam o dia no parque de Kowloon, jogando críquete, ou fazendo tai shi.
Para ela a vida parecia ter começado há seis anos, para ele estava começando a haver vida depois da guerra, e de seu relacionamento conturbado. O verdadeiro motivo para Gabriel Youth ter aportado em Kowloon já tinha se perdido quando se tornara vampiro, agora que estava se sentindo quase humano novamente, tinha sido totalmente esquecido.
No começo do outono, Ling Ly veio da escola com um sorriso de orelha a orelha, os olhos brilhavam, pouco falou do seu dia, nada ouviu do que ele dizia e suspirava de um modo sonhador. Para Gabriel era novidade criar uma filha adolescente, mas ele mesmo deixara muitas garotas suspirando daquele mesmo jeito, ou assim acreditava ter feito, pelo menos. Ela pareceu despertar, quando o ouviu perguntar: “Conheceu alguém especial hoje, filha?” Era começo de semestre, logicamente Ling Ly teria conhecido alguém novo na escola, novas alunas, novos professores... a menina olhou rapidamente em seus olhos, com um ar de surpresa, baixou os olhos novamente, como se tentasse esconder alguma coisa, encabulada disse num fio de voz “Ninguém em especial...”
Mas Gabriel tinha visto um rosto, claramente ocidental, cabelos loiros, um queixo um pouco pronunciado, olhos castanhos avermelhados... a sua sombra ainda se encontrava na retina da filha. Um nome... “Quem é Dave?”, Gabriel perguntou, num tom despreocupado, enquanto limpava um peixe para o jantar. Não a fitou diretamente, mas ouviu a bolsa com os livros da escola caindo pesadamente, a viu esbarrar numa cadeira, atabalhoada, derrubando o móvel, ao levantar a pesada bolsa. “Co... como assim?” ouviu-a gaguejar. “É esse o 'ninguém em especial' que conheceu hoje?” insistiu ele. Ling Ly passou a mão pelos cabelos, os olhos iam nervosamente dele para o peixe, para o fogão, circulavam pela pequena cozinha. “É... quer dizer, não!... ai, quer dizer... não... não conheci ninguém, pai!” Sentiu os olhos de Gabriel esquadrinharem seu rosto, como feixes de raios-x. Ela sorriu nervosa e perguntou, mudando de assunto “Teremos peixe pro jantar?”
Mais tarde, à noite, Gabriel perambulava pelas ruas do bairro, o cenho fechado, o ar preocupado. Precisava pensar, e o esforço para fazer-se invisível não o atrapalhava nisso. Dave... aquele nome, aqueles olhos castanhos avermelhados... até entendia por que não assustavam Ling Ly, mas por que ele sentia que algo de muito mau poderia haver atrás daqueles olhos?
No outro dia Ling Ly percebeu o cenho fechado de Gabriel, tocou seu ombro carinhosamente, tirando-o de seus sombrios pensamentos. “Sei que você se preocupa comigo, pai... eu conheci alguém ontem, sim... você já sabe o nome dele” completou sorrindo. “Mas talvez eu devesse saber mais sobre esse garoto” retrucou Gabriel, com um sorriso ainda preocupado. Ling Ly baixou o olhar, mexeu no cabelo que cobria a orelha. “Pai... você confia em mim, não confia?” “Sim, confio em você, Ling Ly. O problema é esse tal Dave! O que você sabe sobre ele?” Ela sorriu com uma malícia fugidia. “Bom... sei que ele é inglês, como você...” Gabriel sorriu, retrucando “Por isso mesmo, minha filha, por isso mesmo que não confiarei nesse rapaz por enquanto!” A menina mexeu novamente no cabelo, o sorriso tornou-se um pouco apagado. “Ling Ly” ele falou, segurando a mão da menina entre as suas “eu não conheço o rapaz ainda. Talvez isso mude, mas não por agora. Não vou proibi-la de vê-lo, nem nada do tipo, fique tranqüila.” Ela levantou os olhos, fitando-os nos dele, seu sorriso iluminou-se novamente. Não disse mais nada, seus olhos já estavam lhe agradecendo. Mas quando ela voltou-se para pegar suas coisas e sair para a escola, o cenho dele estava novamente franzido. Não tinha como dizer-lhe da impressão que tivera, afinal era apenas a sombra de uma visão ainda fresca no olhar da filha. Poderia estar errado. Mas algo lhe dizia que não estava...
Duas semanas depois Ling Ly estava demorando mais que o habitual para voltar da escola. Já estava escuro, quando Gabriel pensou em sair atrás dela, ao mesmo tempo em que a jovem entrava em casa com ar culpado, passando reto pela entrada da cozinha, indo refugiar-se em seu quarto.
Mas Ling Ly não esperava a atitude do pai. Ele não a chamou, não foi até seu quarto, não bateu na porta, não lhe cobrou explicação nenhuma. Trocou o uniforme da escola pela calça e a túnica de seda que costumava usar em casa, exitou por meia hora, então voltou para a cozinha, onde o encontrou cozinhando o chop suey, com legumes e shoyu. Ela encaminhou-se lentamente até a mesa, sentou-se na cadeira que derrubou, outro dia. Gabriel não levantou os olhos do fogão, parecia concentrado na comida, mas Ling Ly sentia o silêncio gélido que parecia separá-los, como uma muralha de gelo posta bem no meio do cômodo. A voz dele soou tenebrosamente amistosa: “Está com fome, Ling Ly?” Ela mexeu no cabelo, mal disfarçando o nervosismo, levantou rapidamente os olhos, com um certo medo de encontrar os do pai sobre ela, percebeu que ele, no entanto, não desgrudara os olhos do macarrão fumegando, desviou em seguida o olhar, forçou-se a sorrir: “O cheiro está gostoso...” disse timidamente. “Espero que o sabor também” disse ele com um riso. “Sabe, nem sei qual o gosto certo disso!” O riso dela soou nervoso, mas Gabriel parecia não se importar. “Pai, me desculpa...” começou ela, mas foi interrompida: “Por quê? Imagino com quem você esteve até há pouco, e sim, me preocupei com sua demora. Mas está tudo bem!” Seu olhar penetrante transparecia alguma severidade, mas parecia também encerrar o assunto ali mesmo. “Só não quero que isso se torne um hábito, certo?” Ela acenou positivamente com a cabeça.
No fim de semana, Ling Ly levou Dave para Gabriel conhecer. Parecia um bom garoto, dos seus 17 anos, no máximo, sorriso branco e límpido, ar um pouco ingênuo, mas os olhos castanhos avermelhados eram definitivamente estranhos. Conversaram por uma meia-hora amenidades, Gabriel procedeu ao questionário, soube que Dave McCulling era de Liverpool, o pai, parecia, era militar, da marinha, tinha sido transferido há poucos meses para Hong Kong; o garoto tinha vivido na África, depois na Austrália, Nova Zelândia, Bombaim, e enfim Hong Kong; tinha três irmãos, Edmonton, “Jesse” James e Joseph. “'Jesse' James?” riu Gabriel. “Foram seus pais que deram esse nome?” “Na verdade” disse o rapaz, com um tom de voz encabulado que pareceu a Gabriel estudado “o Jesse que é um tanto fanático por história americana recente...”
Ling Ly os deixou na sala sozinhos por uns minutos, enquanto ia ao quarto arrumar-se. O olhar de Gabriel esquadrinhou com um brilho intrigado os olhos de Dave McCulling. “Eu sei o que você é, e sei que já percebeu o que sou também.” O rapaz deu um meio-sorriso, os olhos tornaram-se completamente vermelhos. “É verdade, senhor Youth, sou um vampiro também. Sei também que o senhor não confia em mim... talvez tenha razão em não confiar!” Um estranho brilho, como faísca elétrica, apareceu por trás do negror dos olhos de Gabriel, um estranho formigamento tomou conta de suas mãos e pés, a cabeça ficou subitamente quente. Antes que saltasse sobre o pescoço do rapaz, Ling Ly adentrou a sala, sorrindo sem perceber a tensão entre os dois. Dave sorriu para ela, com um olhar meigo e apaixonado de adolescente, voltando à coloração castanha avermelhada. Voltou-se para Gabriel, dizendo num tom provocativo: “Não se preocupe, senhor Youth... só levarei sua filha para jantar!”
Três outros rapazes, loiros e de olhos castanhos avermelhados, como os de Dave, apareceram, como se saíssem duma cortina de fumaça. O mais velho, antes que tentasse qualquer reação, lhe acertou a cabeça, um único golpe certeiro, deixando-o estirado no chão do apartamento, enquanto a garota se debatia, perguntava o que tinham feito com ele, chamava-o e esmurrava o rosto de Dave, fazendo-o rir. Gabriel não havia apagado, mas não conseguia se mover, assistia a tudo sem poder fazer nada. Os quatro rapazes despiram Ling Ly na sua frente, a espancaram, a seviciaram, Gabriel foi obrigado a ver Edmonton e Dave se aproveitando dela ao mesmo tempo. Após o estupro repetido, a menina em prantos, tentou chamar pelo pai, com a voz muito fraca. Dave pegou-a pelo pescoço, deu-lhe um beijo nos lábios e, voltou-se para Gabriel, impotente, jogado no chão, com um sorriso sádico, depois mordendo violentamente o pescoço de Ling Ly. Os outros três apenas assistiam e gargalhavam. Após, Dave jogou o corpo nu e sem vida da garota no chão, próximo de onde estava Gabriel. Seus movimentos voltaram, com um formigamento ainda maior atrás dos olhos e nas mãos e pés. Na verdade, parecia que ainda estava sob o efeito do golpe de Joe McCulling, Gabriel ouviu-se rosnar como um tigre ferido, desferindo golpes sem muita direção, mas que tinham endereço certo, pegando Dave McCulling de surpresa, não dando tempo nem dele cair, ou tentar qualquer reação, como fizeram com Gabriel. Quando o corpo de Dave McCulling caiu pesadamente no chão, Gabriel viu-se desferir uma pisada que explodiu a cabeça do rapaz, matando-o e furando o assoalho. Recuperando um pouco do controle, percorreu com um olhar cheio de ódio, faiscando como se raios vermelhos cruzassem as córneas enegrecidas, o apartamento à procura dos outros três irmãos, paralisados e estarrecidos com tamanha fúria.
Edmonton foi o que pareceu se recuperar primeiro, partindo para cima de Gabriel, numa velocidade que para o parasita parecia de tartaruga. Gabriel velozmente desferiu um direto com o punho esquerdo e um cruzado com o direito, viu-se mais rápido e cada golpe que acertava o inimigo era acompanhado de um estrondo e uma estranha luminosidade. Edmonton atravessou pesadamente a parede do prédio, pela abertura, Jesse James e Joe partiram para cima dele ao mesmo tempo, sendo repelidos com golpes certeiros de bastão, desferidos por um chinês, aparentando mais de 60 anos, de olhos negros e opacos, aparentemente sem pupilas. Gabriel reconheceu o ancião que vira quando descobriu-se vampiro, o mesmo homem que com um braço o bloqueava, impedindo-o de jogar-se sobre aqueles seres desprezíveis. “Deixe-me passar! Os McCulling...” começou a protestar, e o chinês o golpeou com o bastão na cabeça, tão forte que caiu estatelado no piso do apartamento. “Não seja idiota!” ouviu o ancião dizer. “Eles já se foram! Cuide da sua filha!”
Gabriel assim o fez. Deixou-se sentir a tristeza, levou Ling Ly para um cemitério, a sepultou e sobre seu túmulo prometeu vingar sua morte atroz, assim que encontrasse os McCulling novamente, sempre sob o olhar do ancião, que ficara ao seu lado desde a noite. O chinês pousou a mão em seu ombro quase paternalmente. “Deixe a fúria para depois, Gabriel Youth. Aqueles garotos já estão longe.” “E por que me impediu de ir atrás deles, então?” perguntou Gabriel com amargor. “Você viu o que fizeram com ela?” “Vi que eles o surpreenderam. Você iria ao encontro da própria morte.” “Já estou morto...” começou a protestar Gabriel. “Ling Ly... não era meu sangue, mas era minha filha, a motivação que eu tinha para viver...” “Eu sei, você quer vingança” falou o ancião, interrompendo. “Só que não conseguiria nada além de ser massacrado, como sua filha foi. Por agora, suporte a dor, Gabriel Youth, chore sua perda, se conseguir. Me procure daqui há um mês.” “Daqui há um mês...? E como vou procurá-lo, onde...? Qual seu nome?” Os olhos negros e opacos do ancião tiveram um brilho fugidio, ele respondeu com um sorriso sereno: “Você lembra como me encontrar. E se faz questão, meu nome é Ching Hong.” Dito isso, desapareceu com a penumbra, que dava espaço à claridade de mais uma manhã.