A MALDIÇÃO DA TELA

Por alguns instantes April não conseguiu tirar os olhos da tela, não seria possível estar enganada. A sensação inicial havia se transformado em uma certeza absoluta. Mas, o que poderia fazer? Questionar com alguém? Não, de certo seria tomada como uma louca, e isso ela não poderia admitir. A mulher retratada na tela continuava a encará-la, os profundos e enigmáticos olhos azuis demonstravam uma vontade muda, um desejo insano por comunicação, mas as palavras seladas em lábios de óleo rubro não poderiam ser ouvidas, o rosto de expressão bela e sofrida certamente escondia algo perdido, uma história esquecida numa era remota.

Um torpor percorreu o corpo da menina, movimento involuntários apoderaram-se de seu braço, gestos rápidos e preciso manuseavam o lápis que trazia na mão, riscos desconexos começaram a tomar forma, uma sucessão de cenas surgiam no bloco de papel. A mente de April voava, vagava por uma terra distante, um lugar que não fazia o menor sentido para ela, mas que ainda assim soava familiar e transmitia uma sensação boa.

April via a si mesma correndo por uma trilha que cortava um campo verdejante, uma área com aroma agradável e margeada por imensos girassóis, a pressa parecia tomar conta do seu corpo. Conforme se distanciava, um sentimento amargo invadia-lhe o peito, uma tristeza que substituía gradativamente a percepção agradável que até então se fizera presente.

Após esconder-se no interior de um velho moinho, era inegável a convicção de que algo de muito grave havia acontecido, alguma coisa a perturbava de tal maneira que conter o choro mostrara-se uma tarefa impossível de ser realizada. Um conflito de emoções instalara-se em seu peito, sem que houvesse o menor indício de que pudesse ser dissipado.

A porta de madeira abre-se com um estrondo, a escuridão do cômodo recebe a luz forte do sol, pelo vão surge alguém que de imediato ela reconhece, pois por ele abriria mão de tudo, se preciso fosse. O rapaz, embora aprendiz de um grande mestre, não contava com a aprovação da família da amada, e por conta disso decidira recorrer a medidas inusitadas, amparado por seus sentimentos. O pintor trazia consigo, amarrada e inconsciente, uma jovem, a qual seria de fundamental importância para suas pretensões.

Trazia, também, uma tela, a qual havia sido pintada dias antes. Nela, a garota era retratada de maneira formidável, com as realçadas curvas encobertas por uma singela manta. O pintor teve o cuidado de mostrar a si mesmo, através de sua silhueta posicionada em um canto da pintura, quase como um coadjuvante na obra de arte.

Como se fosse invadida por uma luz, April percebe as intenções do rapaz, e nesse instante a sensação desagradável se confirma em súbita repulsa, não por ele, mas pelo plano que rondava em sua mente. Ela sabia que havia concordado, entretanto o arrependimento se revelara intenso e avassalador. Indiferente aos apelos intempestivos, o pintor não se desfaz do desejo de completar o ritual, que segundo a antiga crença, poderia eternizar o amor que lhe consumia. Para isso, bastava que o líquido vital e inocente fosse roubado e utilizado como revestimento para a imagem dos amantes.

A garota se recusava a participar, para ela, o amor não poderia ser maculado com um ato vil e mesquinho, porém de nada adiantava seus argumentos, e por isso era repelida duramente, enquanto ouvia que seria o melhor para os dois. O pintor, munido de uma lâmina afiada e virgem, atentava contra o corpo entregue da vítima, o chão de pedra rapidamente é inundado pelo vermelho vivo. Pinceladas rubras cobrem a superfície da tela, o líquido é absorvido sem que nenhum sinal visível fosse evidenciado, a impressão era de que o sangue simplesmente desaparecia.

A garota não agüenta a cena, a vergonha a consome, ela sabe que o amor não poderia ser pago com a morte, e por isso se sente impulsionada a equilibrar a dívida. Assim, alcança o punhal largado no chão e com um só golpe silencia para sempre sua dor. O rapaz grita ao perceber o ato da amada, mas já era tarde, não havia mais vida naquele corpo. Tomado pelo desespero, ele percebe que filetes escarlates começam a escorrer pela tela, ao mesmo tempo em que uma dor lancinante se apodera do seu corpo. Ele não sabia que, uma vez efetuado o pacto, o vínculo entre eles deveria ser eterno, e com a morte de uma das partes, a outra não poderia existir.

O pintor cai, amaldiçoado por uma convulsão irresistível, uma fumaça esbranquiçada escapa de seus poros, lentamente seu corpo se desfaz e mescla-se ao sangue derramado de sua vítima. Na tela, o rosto da garota ganha contornos quase palpáveis, um piscar de olhos confirma que, ali, lacrada por tinta óleo e sangue, permaneceria por toda a eternidade, a não ser que...

April sai do transe, inúmeras figuras preenchem todo o bloco de papel, mas são os riscos do último desenho que chamam sua atenção. Nele é possível ver a imagem de uma jovem envolta por uma manta, e seu rosto é familiar, terrivelmente familiar. A garota se reconhece naqueles traços, e só então se dá conta de que a caneta de prata legítima, lembrança da formatura, estava inacreditavelmente cravada em seu peito. O sangue escorre livremente, formando uma pequena poça no reluzente piso do museu. Ela se ajoelha e sente a vida deixar seu corpo, mas antes de desfalecer por completo, ainda pôde perceber que as linhas do rosto da mulher na obra de arte, suavemente ganham novos contornos, o azul de seus olhos convertem-se em castanho, os lábios finos e delineados tornam-se mais espessos e vistosos, os cabelos que ela vê retratados assemelham-se, agora, aos que costumava pentear todas as manhãs...

*Este texto é o complemento do conto "A Obra de Arte" do meu amigo Xande Ribeiro

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1865484

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 16/10/2009
Reeditado em 16/10/2009
Código do texto: T1870100
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