LUA MÁ

O gosto presente em sua boca era amargo, terrivelmente amargo, como um lembrete cruel e duradouro, trazendo-lhe a certeza de que o pecado estivera ali. Era um sofrimento, uma tortura, uma dor indescritível, mas incomparável com os danos causados pela permanência de uma fagulha de consciência, algo que tornava o lado físico um coadjuvante quando o que estava em jogo era a degeneração da alma. Como era perversa aquela luz, uma coloração diferenciada que só ele era capaz de perceber. Ela nunca falhava, era certeira e impiedosa, um toque devastador e único, consumia sua sanidade enquanto se espalhava farta sobre seu corpo.

A ardência era insuportável, mil lâminas não estariam aptas a dilacerar sua pele com tamanha eficiência. Os fluídos do corpo convulsivo permaneciam indomáveis, incompreensíveis como uma maré em fúria, uma sinfonia maléfica orquestrada invariavelmente a cada mês. Ele queria morrer, implorava para que ela tivesse piedade e ceifasse de uma vez por todas a sua vida. Os gritos que escapavam da garganta dilatada poderiam espalhar o horror, mas não traduziam uma ostentação de poder, significavam um declaração penosa do estado anômalo de seu organismo, mesclados com um ininteligível pedido de ajuda.

Maldita! Maldita! Vociferava em pensamento, pois já não reconhecia a voz que ecoava. Lentamente perdia o controle de seus atos, o domínio do próprio corpo. Que corpo? Aquele corpo não era o dele, aquela vontade não lhe pertencia, aquele ímpeto era por demais cruel...

Maldição! Nessa ocasiões uma simples palavra recebia contornos tão peculiares...

O açoite do vento em seu rosto traz o rastro que lhe apetece, os limites da mandíbula se mostram incapazes de conter a produção exagerada da saliva, insano clamor a lhe comandar. O juízo ínfimo que ainda lhe convém condena a si mesmo e aquela que do alto sorri, insensível tirana que escraviza sem remorso. O ruído claro que percebe fácil, indica que o sustento para aplacar a cólera se aproxima rápido. Logo o amargor estará presente uma vez mais. Galopes furiosos irrompem pelo manto escuro formado pela barreira espessa de arbustos. Galhos são destruídos, folhas são esmagadas, um cortina de poeira é formada como resultado do duelo entre o terreno barrento e as ferraduras, pedras são atiradas em todas as direções.

Sua respiração é ruidosa, está ofegante, o movimento em seu peito aumenta consideravelmente, jatos de vapor escapam das enormes narinas. Do alto da árvore observa o alimento que segue em montaria, ele sabe que será incapaz de reprimir as ordens que lhe embaralham a razão, a dor é grande, queima em seu interior, rasga qual lâmina afiada. Sina ingrata que é obrigado a seguir, missão fisiológica que não pode negar.

O corpo salta convicto, a mente deseja um precipício, as mãos se agarram em frágeis corpos, os movimentos precisos roubam mais do que gritos, possibilitam que jatos impetuosos e rubros dominem o ambiente. Cavaleiros combalidos, animais em fuga, instinto de sobrevivência, a autopreservação fala mais alto. Ele enxerga a si mesmo como se fosse outra pessoa, e esse que ele vê de fora não demonstra o menor respeito pela vida; encurrala, abate e consome sem pudor ou compaixão. Prazer e dor, conflito interno a reinar.

O desejo ávido ainda se faz presente, nuances em lilás revelam um contorno límpido, seus olhos percebem a oportunidade iminente. Ele não entende a reação encontrada, o alimento não demonstra receio ou repulsa perante as fileiras alvas de pontas aguçadas, o sorriso traiçoeiro que precede a dor. O odor adocicado e característico que lhe invade os sentidos apresenta uma lembrança vaga impossível de rastrear, o conflito aumenta em meio à confusão, mas a fome é legítima, e é maior do que tudo.

Avança convicto, um ato repetido inúmeras vezes em ciclos anteriores, um salto grandioso que escurece a noite clara e trás as trevas para quem o assiste. A ação é rápida e o dano mínimo, porém o estampido seco que anunciou o vôo do projétil prateado fora produzido sob a mais completa certeza de que seria suficiente. O gigante cai, enquanto a mágica começa a fazer efeito em suas veias, ele percebe o que o odor familiar queria lhe dizer, então o desespero torna-se maior e mais urgente.

A dor é insuportável, infinitamente maior do que a proporcionada pela vontade de sua senhora, era algo que jamais sonhara poder existir. Mas, ele precisava resistir, era necessário avisar antes que o misticismo da prata se fizesse completo. O cavaleiro caminha com passos decididos, engatilha mais uma vez o objeto maldito, não tardaria muito agora. Ele tenta ganhar tempo, rasteja o pesado corpo manchando de negro a relva rasteira, percebe que há hesitação em seu algoz, talvez ele saiba o que pode acontecer. Sua voz não existe, apenas grunhidos e urros escapam de sua garganta, não, não há jeito, o cavaleiro faz mira enquanto aponta a arma, ele continua a rastejar, amaldiçoa a incapacidade de fazê-lo entender, ele deseja a morte, mas não assim, não desse jeito. Um disparo se fez ouvir, a prata se aloja na caixa craniana, sua força se espalha rapidamente, ele estava morto.

- Desculpe-me, pai – diz o cavaleiro, enquanto lágrimas escapam de seus olhos e escorrem pelo rosto ferido.

A consciência ínfima, aquele pontinho de luz que se mantinha na cabeça da criatura, havia reconhecido o homem que tramava a sua morte, e por conta disso desejou, como nunca desejara outra coisa na vida, que ele soubesse que a escravidão não cessaria com a sua morte, o legado maldito, a dor, a fome, tudo seria transferido para seu primogênito, mas, infelizmente, isso ele não fora capaz de dizer, assim, a próxima lua perversa seria a responsável por informar ao cavaleiro a sua nova condição. Certamente a notícia seria dada com satisfação, entretanto, seria recebida com muito, muito sofrimento.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 14/10/2009
Reeditado em 22/10/2009
Código do texto: T1865965
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