Balas de caramelo

- Tio, me dá uma bala de caramelo? – Falou a pequena garota com a mão estendida para Tobias enquanto ele abria a porta do seu carro para voltar do trabalho para casa.

Ele a fitou com um olhar misto de surpresa e revolta, não dava para identificar se isso se devia ao fato de aquela criança suja se atrever a chegar tão próximo a ele ou porque ela especificava exatamente aquilo que desejava. Não pediu um doce, ou uma moeda, queria uma bala de caramelo. Como se fosse comum a um homem ocupado andar com balas de caramelo nos bolsos.

- Não tenho isso. Vá estudar menina. – Foi a resposta automática que deu.

Se ele tivesse encarado a garota ao falar isso, certamente não teria partido tão tranquilo nela. Seu olhar instantaneamente se aguçou, uma expressão de revolta que dificilmente uma criança faria.

Entrou no carro e deu partida, sequer olhou para trás. Estava esquecido do ocorrido e pensando em como iria incluir nas contas do mês a nova jóia cara que havia comprado para sua amante sem que a esposa notasse. De repente, ao olhar pelo retrovisor para ver se podia fazer uma ultrapassagem tranqüila ele viu alguém sentado no banco de trás. A garota.

- Balas de caramelo. – Pediu ela com a mão estendida.

Quase bateu com o susto. Voltou-se para frente rapidamente para controlar o carro. Quando finalmente controlou voltou-se para trás novamente para gritar com a garota, como ela tinha entrando no seu carro?

Não havia nada, absolutamente nada. Fora uma ilusão. Sua mente logo tratou mascarar o ocorrido e ele dirigiu rapidamente para casa pensando que tudo que precisava era de um banho quente e uma boa noite de sono.

Sua esposa o recebeu com um sorriso. Seu filho havia ganhado o concurso de poesia da escolha. Ele achou isso uma droga. Não queria filho poeta. Queria um filho conquistador. Nem um filho decente sua esposa lhe dera. A cada dia que passava via como tinha sido um erro casar tão cedo. Aos 32 anos era um pai de família preso ao lar que precisava de relações extraconjugais constantes para não se sentir um completo derrotado na vida.

Estava divagando sobre isso quando entrou no banheiro e foi lavar o rosto. A torneiro jorrou água inutilmente porque ele não conseguiu lavar-se. Ficou paralisado com o que viu. Tinham escrito bala de caramelo no espelho do banheiro. E ele jurou que vira a garota de relance. Um rápido reflexo.

- Martaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa?! – Gritou para a mulher . – Que bosta é essa no espelho do banheiro?

Ela veio imediatamente. Não viu nada de errado. Ele também não viu mais nada. Achou novamente que era um delírio. Mas dessa vez não foi possível simplesmente esquecer o fato. Um medo nasceu dentro dele. Na forma de uma leve fagulha lançada pelo vento.

Sua esposa queria sexo antes de dormir. Não dava. O dia havia sido estressante demais para isso.

- Você entende não é meu amor? – Perguntou ele falsamente.

- Claro. – Respondeu Marta. – E virou-se para dormir.

Ele pegou no sono rápido. Porém não demorou muito. Acordou lentamente sentindo uma mão acariciando sua nuca. Parecia apenas um carinho. Mais foi ficando mais forte. Imaginou ser a esposa tentando acordá-lo para transarem. Que porre.

- Caralho Marta, já disse que não quero. – Respondeu asperamente.

- Mas eu quero – Respondeu uma voz infantil. – Quero balas de caramelo.

Sua coluna ficou gelada e nem gritar ele podia. Lutou bravamente contra o próprio corpo e conseguiu pular da cama. Novamente não havia sinal da garota. Apenas sua esposa estava dormindo pesadamente e nem se mexeu com seu movimento brusco.

Eu devo estar ficando louco, Pensou Tobias. Estava achando que não conseguiria dormir. Será que aquela menina havia entrado na casa dele? Seria ela alguma espécie de ser do outro mundo? Não, ele não acreditava nessas coisas.

Não deu tempo de chegar a uma conclusão a respeito. Viu a menina de pé no meio de seu jardim. Tinha no rosto uma expressão de revolta e segurava na mão uma folha de papel sujo onde dava para ler claramente as palavras “balas de caramelo”.

Ela era real, não podia negar mais. Sua janela tinha grades. Saiu do quarto rapidamente. E se dirigiu a porta. Antes de abrir pegou uma faca na cozinha para o caso de precisar usar alguma violência.

Estava frio lá fora. Saiu e olhou para o canto do jardim onde garota estava. Não havia ninguém. Já estava começando a achar que fora outro delírio quando ouviu ao seu lado as palavras inconfundíveis:

- Tio, me dá uma bala de caramelo.

Precisou de muita coragem para se voltar e encarar. A faca estava firme nas mãos. Mas caiu no chão quando finalmente encarou o rosto da criança. Suas roupas eram sujas e esfarrapadas. Seu rosto era branco e também coberto de sujeira. Seria um rosto comum não fossem os olhos. Foi ao encará-los que Tobias notou tarde demais que não era uma criança de verdade, pelo menos não desse mundo. Eram olhos de um vermelho intenso, vivo, parecia feito de sangue vivo. E o encaravam fixamente enquanto a mãozinha estendida pedia:

- Balas de caramelo.

Ele tentou gritar. Nem isso foi possível. Parecia que seus órgãos estavam se apertando uns contra os outros impedindo sua respiração. Seu coração parecia que inchava e queria sair pela boca.

- Balas de caramelo. – Falou a criança pela última vez, e suas palavras foram como uma sentença de morte. Um infarto fulminante ceifou a vida de Tobias.

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Como Ceifador, nunca fui de questionar os métodos dos colegas de trabalho. Mas confesso que os dessa garota simplesmente me surpreendiam. Era uma ceifadora, uma ceifadora com a aparência de uma menina de 8 anos. E com toda sua aparente inocência infantil, passava as almas para o outro lado aplicando sustos que pareciam completamente desprovidos de propósitos. Essa foi a primeira vez que a vi, e não pude deixar de me aproximar para falar-lhe.

- Boa noite.- Disse enquanto o corpo espiritual de Tobias revolvia-se no chão recuperando-se do trauma da morte.

- Boa noite, ela respondeu surpresa. Não era exatamente algo comum ceifadores se comunicarem entre si.

- Porque você os passa para o outro lado assim?

- Eu poderia te dar várias justificativas que te deixariam satisfeito. – Falou ela me olhando com uma expressão de quem se pergunta de onde eu tirei a idéia de que tinha autoridade para questioná-la. – Mas a verdade é que faço assim porque gosto. Ninguém pode ser censurado por procurar desempenhar seu trabalho de uma forma que ache agradável.

Não fiquei exatamente surpreso com a resposta. Virei-me para ir embora, antes disso fiz só mais uma pergunta:

- Se ele te desse o doce de caramelo. Você deixaria de levá-lo?

- Claro que não. - Respondeu com um sorriso de deboche. - E você deveria saber que não seria possível. Na verdade, o mais divertido de tudo é que não há saída alguma para ele. Não me ache cruel Ceifador. Eles fazem coisas muito piores uns com os outros do que sou capaz de fazer com eles.

Bem, pelo menos a última afirmação dela era verdade.

Ian Morais
Enviado por Ian Morais em 12/10/2009
Reeditado em 12/10/2009
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