Num beco escuro da fria Rússia

No dia 23 de julho desembarcamos na plataforma da gigantesca estação de Moscou. Arno estava feliz de ter pegado uma folga por tempo indeterminado do serviço. Luxos que apenas os ‘sobrinhos’ do comandante Livi tinham.

No dia seguinte ao nosso encontro no bar, contatamos Livi e falamos para ele procurar o nome de Aulis Slava. Na sexta-feira ele apareceu com tudo que precisávamos: um endereço, com nome de rua e número da casa. Livi contou, empolgado, que Aulis Slava havia servido por mais de duas décadas a KGB. Como Arno esperava essa fora a isca infalível. Se fosse um cidadão comum, Livi nem se daria muito ao trabalho. Saímos de seu escritório com um sorriso de vitória estampado.

Livi conseguiu que fôssemos dispensados de nossos respectivos empregos a partir do dia 21 de julho. Nesse dia arrumamos nossas coisas e partimos. O bom dessa viagem que tudo estava sendo bancado pelo serviço secreto. Por isso dávamos ao luxo de ficar numa confortável suíte, ao invés duma espelunca suja. Comíamos comida boa e vinho de ótima qualidade.

Na terça-feira, após dormirmos no Leninstra Hotel, pegamos um táxi e fomos para o endereço escrito num cartão, Evgenya Curyslova 1566. Passamos pelo centro movimento e depois entramos na área residencial. Os prédios modernos e os monumentos antiquíssimos deram lugar a sobrados ligados um ao outro, todos da mesma cor e do mesmo formato.

Por fim, chegamos ao endereço. Pagamos a viagem e pedimos que o taxista esperasse.

O sobrado que se encontrava no endereço de Evgenya Curyslova tinha uma aparência conservada. Havia recebido uma pintura nova e as janelas da frente haviam sido trocadas por umas tipo vitral.

Bati na porta, mas não houve resposta.

Bati novamente e esperei. Ouvi passos pesados pela casa. Uma janelinha da porta foi aberta e dois olhos nos fulminaram.

-Olá, somos da polícia, queremos falar com Aulis Slava – disse com uma voz metálica.

A janelinha foi fechada com força. Quando pensava em arrombar a porta ela foi aberta. De dentro da casa saiu um homem de barba grande, olhos negros e cerca de um palmo mais alto que eu. Passou-me que ele daria um ótimo ala da seleção de basquete da União Soviética. Inconscientemente dei um passo para trás para conseguir fitar melhor o rosto do indivíduo. Pela sua aparência era difícil dizer a idade com certeza, poderia ter trinta ou quarenta anos.

-O que vocês querem, polícia?

-Viemos conversar com o senhor Aulis Slava.

-Acho que isso será impossível.

-Por quê?

-Aqui não mora nenhum Aulis Slava.

Sorri contrariado. O grandalhão estava fazendo jogo-duro com a gente. Tentei mais uma vez convence-o a falar por bem.

-Tem certeza que não conhece nenhuma pessoa nem com nome parecido.

Ele balançou a cabeça negativamente.

-Bem, se esse é o caso... – num lance rápido acertei um soco no meio do estômago do grandalhão fazendo ele se dobrar. Depois desferi um soco em sua boca fazendo ele cuspir sangue. Assim que caiu no chão ele tentou pegar uma pedra grande na base da varandinha, mas Arno foi mais rápido e chutou sua mão, fazendo ele desabar. Em sequência, Arno acertou-lhe outro chute no peito e nas costas. Saquei minha arma, segurei em seu colarinho e o ergui sua cabeça até estar de frente a minha. Dava pra sentir o hálito azedo lembrando a leite coalhado que subia da garganta do grandalhão.

-Agora dia, seu bundão metido a besta, onde está Aulis Slava?

-O que vocês querem com ele?

Fiz sinal para Arno que deu dois novos chutes na altura dos rins do homens fazendo ele perder o fôlego. Quando ele melhorou um pouco puxei seu cabelo com raiva para trás e repeti:

-Onde está Aulis Slava, ou eu juro que estouro seus miolinhos.

-Rua... rua... Strau... Straubelenov, número 4301.

-Onde fica essa rua?

-Perto da saída da cidade.

Fiz outro sinal para Arno que respondeu com um murro no lado esquerdo do homem.

-Seja mais preciso.

O homem não conseguia nem mais tremer de medo. Soluçava quase aos prantos.

-Saída para São Petersburgo. É um bairro industrial. Fica perto duma fábrica de inseticidas.

-Qual o nome da fábrica?

-Não sei – o homem falou quase sem voz.

-Lembre, agora.

-Acho que é Insoturea, mas não tenho certeza.

-Basta.

Soltei o grandalhão que caiu de lado no sujo chão. Guardei minha arma e começamos a caminhar para fora do gramado. Antes, virei-me e o alertei:

-Tomara que esteja certo do que disse.

-Se seu amigo aparecer digo que estamos atrás dele – completei.

Entramos no táxi e fomos para o endereço indicado. O bairro que ele falou era um enorme parque industrial, onde enormes fábricas faziam vizinhança para uma série de casas dum branco encardido da fumaça das fábricas. Das chaminés das empresas subia uma grossa fumaça preta que poluía todo o ar ao redor. A fumaça subia centenas de metros no ar escurecendo o dia. Contudo, nesse dia o céu estava negro dum aspecto sombrio e logo começou a chuviscar, o que provavelmente acarretaria uma tempestade.

O número 4301 da Straubelenov dava num prédio de quatro andares de aparência judiada. As janelas não eram lavadas há tempo. Grossas camadas de fuligem e poeira haviam se acumulado na fachada do lugar. Uma grande e profunda rachadura úmida subia dum lado do prédio indicando infiltração.

Bati na porta e entrei. O lugar era mal-iluminado. A luz entrava em feixes descontínuos obscurecendo o lugar. Uma velha de cabelos grisalhos, portadora dum olhar severo e dum nariz comprido e curvado na ponta para a baixo estava atrás do balcão.

Ergui o distintivo para ela que se encolheu em seu banquinho carcomido.

-Policiais? A que devo a honra?

-Estamos procurando um homem chamado Aulis Slava, sabemos que ele está hospedado aqui.

-Deixe eu ver.

A mulher procurou numa lista de capa de couro corroído e folhas amareladas o nome dos clientes. Ela passava os dedos finos e quebradiços nas folhas com velocidade. A letra era horrível lembrava a rabiscos feitos por uma criança cega e com paralisia cerebral. Contudo, para a velha os rabiscos tornavam-se nomes e pagamentos.

-Sim, parece que um rapaz chamado assim. Terceiro andar.

-Qual o quarto?

-Esqueci de marcar.

-Tudo bem – falei para a velha de aparência estranha. Subimos a escada procurando não fazer barulho, contudo as madeiras envelhecidas rangeram sob nossas botinas pesadas. Droga, maldisse. Bati na primeira porta. Depois dum curto tempo um tipo efeminado entreabriu a porta, deixando a mostra apenas seu rosto fino e repuxado e seu peito depilado com lâmina de barbear.

-Olá, seus guardas, o que os senhores querem?

-Queremos falar com Aulis Slava, ele está?

A bichinha pensou um segundo e respondeu com a voz embargada de tristeza:

-Não, que pena, não tem nenhum Aulis Slava aqui.

-Tudo bem então. Peguei a maçaneta e fechei a porta com um puxão. Escutamos o barulho do gay caindo de cara na parede velha da hospedaria. Senti certo prazer sádico de escutar o homossexual quase quebrando o rosto. Arno também sorriu de prazer e assim não me penalizei por meus sentimentos um tanto cruéis.

Na segunda porta havia apenas um apartamento fechado e cheio de poeira e teia de aranha. Pelo jeito, os negócios da hospedaria não eram dos melhores.

Chegamos à terceira porta. Nesta havia um olho-mágico. Toquei a companhia e fiz Arno ficar encostado na parede para que o morador não pudesse nos ver. Ouvi passos dentro do apartamento. Alguém foi até o banheiro e deu descarga. Andou sorrateiramente até a porta e abaixou-se para ver pelo olho mágico...

No segundo depois virei-me de frente da porta, dei um forte chute nela, abrindo ela num solavanco. Antes que o homem caído no carpete encardido do apartamento tivesse tempo de reagir minha arma mirava sua cabeça e eu dizia com a voz mais tranquila do mundo que o idiota não tentasse nenhuma gracinha senão eu estouraria seus miolos. Arno encostou a porta e deu a volta no homem.

Aulis Slava logo entendeu a situação, levantou-se de vagar tendo suas mãos sempre no alto. Não restava dúvidas que aquele era Aulis Slava, a cabeça um tanto quadrada, cabelos ralos, quase totalmente calmo na frente da cabeça, olhos esbugalhados e cansados.

-Vocês vieram a mando de Payliuchenko?

-Não. Fique tranquilo – disse Arno – somos da polícia. Ele mostrou o distintivo para Aulis.

-Sabe, Aulis Slava – adiantei-me – há um bom tempo queríamos ter uma conversa com você, mas infelizmente estava difícil encontrá-lo.

-Como vocês souberam que eu estava aqui?

-Primeiro de tudo, sente na poltrona e abaixe essas mãos.

Aulis obedeceu. Tudo seguido de perto pela mira da minha pistola.

-Vou guardar minha arma, assim você fica mais calmo – guardei a minha arma no coldre, contudo Arno estava com a sua pronta caso houvesse necessidade.

-Qual o nome de vocês?

-Isso não tem importância. Não faz diferença alguma.

-Como vocês me encontraram? – os olhos esbugalhados do homem corriam de um para o outro.

-Cumprimente seu amiguinho que está cuidando da sua casa – respondeu Arno – agora, nós que faremos algumas perguntinhas para você e você dará a resposta, para seu próprio bem.

-Aulis Slava, sabemos que serviu a corporação por mais de vinte anos. Depois que a deixou, esteve metido com tráfico de drogas e de mercadorias. Porém, não queremos prendê-lo.

O homem, que suava empapando sua camisa regata relaxou ao saber que não iria à cadeia.

-Quando você era da corporação, você trabalhou um tempo em Tomsk, não foi?

Peguei uma cadeira, a única ali, virei-me e sentei nela.

-Não lembro disso.

-Talvez meu amigo ajude-o a lembrar-se.

Arno pegou a pistola e acertou uma forte coronhada na testa de Aulis. Ele xingou, colocando a mão sobre o local da concussão. Sua careta de dor transformou-se logo numa carranca de ódio e desprezo.

-Lembrou?

-Espere, espere um pouquinho – ele esticou as mãos rogando um pouco de tempo. Espere com calmo, como ele nada falava, fiz sinal que mandaria Arno acertar-lhe novamente, o que causaria um corte e sangue.

-Eu estive uma vez em Tomsk.

-Sim, em 1962. Vinte e dois anos atrás. Cinco anos antes de abandonar a KGB. O que você fez lá?

-Bem, sua patente é muito baixa para saber disso.

Sorri com sarcasmo para Arno. Levantei da cadeira, cheguei próximo ao homem e golpeei-lhe com um fortíssimo golpe no estômago. Ele se dobrou todo e cuspiu no chão encardido.

-Sabe agora minha patente? – acompanhou com os olhos a lenta recuperação de Aulis – eu sei que você foi diretor dum orfanato lá. Da mesma forma que se tornou, desconhecida, sem que ninguém houvesse falado de você, você se foi. Ficou apenas quatro meses lá, explique isso.

-Fui mandado para ser o diretor do orfanato.

-Quem mandou?

-Meu superior.

-Por que ele fez isso?

Silêncio do homem. A raiva começou a se apossar de mim. Mandei que Arno acertasse o cara e foi isso que fez, durante uns dois minutos Arno derrubou Aulis no chão e encheu de pontapés e sopapos. No fim, ele pegou o homem pelo colarinho e o jogou na grotesca poltrona.

-Mais disposto a contar? Sabe duma coisa: eu juro que você não fará nossa viagem mal-sucedida. Ou você fala ou eu te mato, entendeu?

Arno, percebendo meu descontrole, assumiu a conversa.

-Por que você foi enviado para Tomsk?

Aulis, com a boca toda estourado, ainda se recusava a falar.

-Aulis, temos poder de limpar sua barra ou de ferrá-lo de vez, o que você decidir. Pela última vez, o que fazia em Tomsk?

Quando eu já acreditava que ele não soltaria nada, ele decidiu cooperar.

-Eu fui enviado para lá para fazer com que uma criança fosse adotada.

-E por que não poderia ser outro diretor? – perguntei.

-Por que não deveria constar que a criança foi adotado.

-Quem era essa crinaça?

-Eu não sei – sua boca repuxou num gesto que lhe devia ser um vício – faz tanto tempo.

-Por que o seu superior tinha esse interesse? – falou Arno.

-Não tenho certeza. Parece que era para os pais da criança não saberem onde o pirralho estava.

-Por quê? – apenas isso saiu da minha garganta.

-Como vou saber, só sei o que fiz. Fui lá e fiz a criança ser adotada.

-Com certeza isso vai de encontro com todas as leis de adoção de nosso país?

-Mas o que eu posso fazer, recebi ordens.

-Qual o nome de seu superior?

Aulis travou. Seus lábios tremulantes denunciavam o medo que o perpassava.

-Fique tranquilo – aconselhou Arno – seu nome não vai ser vinculado a nada.

-Afinal de contas, o que vocês estão fazendo aqui?

-Estamos apenas fazendo uma limpeza interna.

-Por isso que deixei toda essa merda. Será que posso acender um cigarro? – Arno concordou. Aulis acendeu-o, tragando a fumaça tóxica para dentro de seu peito – vi muita sujeira lá dentro.

-Qual o nome do seu superior?

Aulis puxou a fumaça, soltando-a de uma vez.

-Comandante Roman Savin.

Dieggo Oliveira
Enviado por Dieggo Oliveira em 11/10/2009
Reeditado em 13/03/2010
Código do texto: T1859585
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