Hora Morta
- Isso é impossível. – Retrucou o homem do outro lado da mesa. Era alto e tinha os ombros largos. Apesar disso, seu corpo não era, em hipótese alguma, uma massa definida de musculatura. Muito pelo contrario. Era extremamente magro e seu rosto cansado, repleto de rugas, dava-lhe um ar misterioso e maduro. Tinha 37 anos e pensava que já tinha ouvido de tudo em sua carreira como psiquiatra Florence. Estava enganado.
- Receio que não seja. – Disse o outro homem, sentado na cadeira a sua frente, do outro lado da mesa. Este era baixo e tinha os braços curtos. Seu rosto excessivamente magro fazia com que seu queixo pontudo se projetasse rudemente para baixo, feito uma estalactite no topo de uma caverna. Seus olhos extremamente azuis estavam rodeados por duas grandes e profundas orbitas avermelhadas, denunciando as noites que passara em claro. Bocejou antes de dar a ultima palavra. Não queria que o amigo tirasse conclusões precipitadas sobre seu bem estar mental, mas sabia que não poderia mais guardar para si os segredos que envolviam os estranhos acontecimentos ocorridos nas três ultimas semanas.
- Olha... – Continuou ele, hesitante. – Sei que pode parecer loucura...
- Ah, você sabe? – Interrompeu o outro. Seu bigode pequeno e bem aparado moveu-se em seu rosto incrédulo, como se tivesse vida própria. – Que bom! Ao menos nisso nos concordamos. É ótimo saber que ainda podemos pensar racionalmente e chegarmos a uma opinião em comum sobre esse assunto. Chamam isso de bom senso. Sabe do que se trata?
O homem baixo fitou o outro, serio. Buscou no fundo de sua mente pelas palavras certas. Não gostava do tom de voz irônico do amigo, mas o compreendia. Sabia que se estivesse em seu lugar, vendo-se obrigado a se deparar com uma situação inusitada como aquela, a primeira vista incompreensível, também agiria feito um perfeito idiota.
- Não seja irônico, por favor.
- Não fui. É esse o problema. Geralmente uso a ironia como uma barreira. Um sistema natural de defesa contra o perigo iminente. O que, é claro, não é o seu caso. A propósito, você tem tomado sua medicação?
O homem baixo sorriu. Não de um jeito que parecesse simpático, não senhor... E não porque quisesse. Passara a vida inteira usufruindo dos resultados gratificantes e das inúmeras portas que se abrem a um simples e simpático sorriso. Conseguira seu primeiro emprego assim, antes de entrar para a faculdade. Sem nenhuma experiência registrada em sua carteira de trabalho, mas com um sorriso encantadoramente verdadeiro nos lábios, de uma ponta da orelha a outra. Entretanto, assim como tudo na vida, o homem baixo sabia que a simpatia seguira seu curso. Caminhara em frente, deixando para trás o homem baixo, de feições duras e olhar cansado. Um homem que precisava urgentemente de ajuda.
- Ouça, - Disse, procurando medir as palavras com cautela. Não queria assustar ou preocupar o amigo mais do que já o fizera. – Procurei por você porque preciso de sua ajuda. Preciso dos seus conselhos, como amigo e psicólogo. Sei que nunca devemos misturar as coisas...
- Ainda bem que sabe. – Interrompeu o outro.
O homem baixo fitou o amigo, agora seriamente irritado. Percebendo a gafe que acabara de cometer o outro calou-se e com a cabeça fez sinal para que o amigo continuasse.
- Como eu ia dizendo, sei que não devemos misturar as coisas. Mas hora... Você é meu único amigo sincero nessa porcaria de cidade. O único com quem posso contar sem medo que minhas palavras apareçam no dia seguinte na capa de um folhetim sensacionalista qualquer. Sabe que não posso me expor dessa forma. Se procurei por você é porque preciso mesmo de sua ajuda.
O homem alto fitou o menor, procurando em seus olhos pelo menor indicio que fosse de loucura. Não encontrou. Ao invés disso, viu que os olhos do amigo lacrimejavam, oscilando, acompanhando o movimento trêmulo dos lábios.
- Por Deus Angelo... Eu juro que não estou ficando louco! – Disse, como se pudesse adivinhar os pensamentos do amigo.
Houve um momento de silencio. Um breve minuto dedicado a cumplicidade de uma velha amizade.
- Eu sei que não. – Concordou Angelo. – Mas convenhamos Paulo... Essa historia é surreal. Você também não espera que eu acredite...
- Eu não espero que você acredite em nada. Nunca pedi que acreditasse. Bolas... Eu mesmo não sei se acredito. Durante toda a minha vida sempre me gabei de ser uma pessoa extremamente racional, cético com relação a tudo. Mas contra fatos não há argumentos Angelo. Você viu a lista de ligações recebidas no meu celular.
- De um número privado. – Lembrou o amigo.
- ERA ELA! POR DEUS, HOMEM... ERA ELA! – Gritou Paulo, levantando-se bruscamente, derrubando a cadeira na qual estava sentado com um baque surdo sobre o piso ladrilhado do consultório. Levou as mãos ao rosto e virou as costas, tentando, em vão, ocultar as lagrimas que se insinuavam nervosamente.
- Era ela... Era ela... Era a voz dela... O cheiro dela...
Angelo levantou-se e foi de encontro ao amigo. Abraçou-o fraternalmente, deixando que ele descansasse seu rosto magro sobre seu peito ossudo. Sentiu as lagrimas do amigo umidecerem-no ao primeiro e teve pena. Muita pena.
- Você tem passado por muitas coisas difíceis – sussurou, procurando não abalar ainda mais o amigo. Também sentia-se abalado por dentro, frustrado e é claro, preocupado. Era difícil manter o tom profissional na voz enquanto era obrigado a presenciar a vida do seu melhor amigo desmoronar como um castelo de cartas de baralho, bem ali, na sua frente. – É normal que se sinta assim. Chamamos isso de “S.P.E”, stress psicológico excessivo.
- Eu não estou louco! – Paulo repetiu, desvencilhando-se do amigo. Usou as palmas das mãos tremulas para enxugar as lagrimas e quando terminou pareceu um pouco mais sóbrio, consciente de si mesmo, como alguém lutando para acordar de um pesadelo.
- Eu sei! E você já disse isso. E eu também já disse que não acho que você está louco. Só acho que você tem passado por momentos difíceis, por uma fase complicada. É perfeitamente normal que esse tipo de distúrbio venha a se manifestar nesses casos, e isso não faz de você uma pessoa menos consciente de si próprio do que as outras. Você é um escritor e assim como a maioria tem seus prazos para cumprir. Ambos sabemos que isso é uma adição considerável. Você nunca trabalhou muito bem sobre pressão. Já parou para pensar que isso também pode estar lhe influenciando? Por que não tira umas férias? Posso acompanhá-lo se quiser.
- Eu procuro sua ajuda profissional e o melhor conselho que você pode me dar é para tirar férias?
Angelo sorriu, sem jeito.
- Mil perdões. Fica difícil saber quando devo agir como amigo e quando devo agir como profissional. Façamos o seguinte; Eu ouço sua historia, desde o inicio. Pode ser que você tenha deixado escapar algo. Falar sobre o assunto com certeza vai ajudá-lo a lembrar, reavivar sua memória. Muito provavelmente você vai perceber que no final das contas não há nada de errado com você. Assim, darei meu parecer médico e ambos chegaremos a conclusão definitiva de que você não está ficando louco, que não tem nenhum tipo de distúrbio psicologico. Em seguida você vai para a sua casa, faz as malas e me encontra no aeroporto. Tenho duas passagens para o Rio, para o 18º congresso nacional de psiquiatria. Normalmente eu convidaria a Carol, mas digamos que ela tem “coisas mais importantes a tratar”, usando de suas próprias palavras. Além, é claro, do fato que eu me sentiria bem menos nervoso ao lado de uma pessoa que não ronca durante as palestras.
Paulo sorriu. Parecia mais a vontade.
- Então continuemos... Sente-se no divã e conte-me tudo. Prometo deixar a amizade de lado e analisar o caso friamente.
***
O telefone tocou as três da manhã. O homem enrolado no amontoado de edredons sacudiu o corpo, involuntariamente, se movendo de um canto a outro do colchão macio. Estava aninhado por debaixo das cobertas, em posição fetal, com um travesseiro entre as pernas e os braços enrolados em outro, como uma criança prestes a abandonar o útero materno. “Ah, Deus... Quem será uma hora dessas?”, perguntou-se, tateando o criado mudo com os as pontas geladas dos dedos. Esbarrou, sem querer, no suporte telefônico, desligando o aparelho. “Ah... Dane-se! Se for mesmo importante vão ligar de novo.”
Ergueu o corpo cansado, ironicamente pelo excesso de descanso e esticou os braços, se espreguiçando. Esfregou os olhos com os dedos dormentes e esperou até que a visão embaçada voltasse ao normal. Levantou-se, calçou a sandália e foi até a geladeira. Abriu-a e permaneceu ali, durante alguns segundos, sentindo as ondas geladas invadirem seu peito. Geralmente era nesse ponto do dia que tinha as melhores idéias. Entretanto, ultimamente a tática não vinha funcionando muito bem. E o período de ócio criativo se entendia bem mais além do que ele poderia administrar. Logo viriam as cobranças e os prazos extrapolados, mas não queria pensar naquilo. Não as três da manhã, em frente a geladeira que já lhe rendera tão boas idéias.
Decidiu-se, por fim, optar pelo suco de uva em caixinha. Foi até a mesa e encheu um copo. Tomou quase metade do liquido de um gole só, sentindo com um prazer imensurável o liquido gelado escorrer pelo interior de sua garganta. No quarto, o telefone voltou a tocar.
Tomou mais um gole do suco de uva, largou o copo sobre a mesa e foi até a sala. Puxou o telefone sem fio da extensão, pensando consigo mesmo; “Espero que seja algo realmente importante.”
- Alô?
Silencio. Do outro lado da linha não veio nada, há não ser o ruído baixo de algo se chocando, ao fundo, como se crianças travessas brincassem com o aparelho telefônico.
- Alô? – Repetiu, consciente de que o fazia quase que mecanicamente. – Se isso é algum tipo de brincadeira, saiba que é muito sem graça.
Desligou o telefone e voltou até a cozinha. Tomou mais um gole do suco de uva, guardou a caixa na geladeira e voltou para o quarto. Se escondeu do frio cortante da noite por debaixo dos cobertores, fechou os olhos e apenas alguns segundos depois pegou no sono.
Não sabia que horas eram, só sabia que acabara de ser acordado, pela segunda vez no mesmo dia, pelo ruído insistente do telefone tocando ao lado da cama. Moveu-se preguiçosamente pelas cobertas, esticou o braço, tateando e puxou o gancho. Levou-o preguiçosamente até a orelha, tomando o cuidado de não esbarrar no suporte.
- Alô? – Disse, procurando espantar o sono, ou ao menos minimizá-lo, evitando o tom rouco da voz.
- Alô? – Repetiu, já se sentindo nervoso. Seus dedos tremiam de frio. O inverno chegara com força total naquele ano.
- Paulo, é você? – Perguntou a voz frágil do outro lado da linha.
Paulo se endireitou na cama, quase pulando. Sentou-se ereto e esfregou os olhos, pigarreou, tapando com uma das mãos a base do telefone, antes de responder. Quando voltou a falar sua voz já não assumia mais o tom cansado, parecia deliberadamente fria.
- Sim, sou eu. – Respondeu, procurando não demonstrar nervosismo. Reconhecera a voz que vinha do outro lado da linha. Convivera com sua dona por longos quinze anos, antes que as coisas começassem a desandar. Antes era prazeroso ouvi-la. Durante boa parte desses quinze anos, sua voz delicada e calma soara como musica para seus ouvidos. Entretanto, de um tempo para cá as coisas haviam mudado drasticamente. Hoje, ouvir sua voz era o mesmo que sentir o peso de mil agulhas penetrando-lhe os tímpanos. O divorcio faz isso com as pessoas. Suga e altera as percepções que temos delas. Muda a forma como enxergamos a vida.
- É Amanda. Tudo be...
- Eu sei quem é você. – Interrompeu ele, antes que a mulher do outro lado da linha concluísse a frase.
Durante um curto período de tempo ambos permaneceram em silencio, como que constrangidos, até que a mulher do outro lado da linha pigarreou, nervosa, e voltou a falar.
- Olha, eu não liguei para brigarmos. Não pretendo e não vou fazer isso. – Sua voz era fraca, quase como um sussurro e por um ligeiro momento ele teve a impressão de senti-la oscilar.
- Sei... Sei... – Respondeu ele, mecanicamente, procurando propositadamente demonstrar indiferença. – O que você quer? E por que me ligar as... – Interrompeu-se no meio da frase, erguendo o braço esquerdo e encarando o relógio preso ao pulso. O ponteiro maior marcava precisamente o número cinco, enquanto o menor oscilava entre o três e o quatro. – Por que me ligar as 06:17 da manhã? Não podia esperar pelo menos o sol nascer? O que você quer? – Repetiu, lutando consigo mesmo, contra o desejo quase irrefreável de puxar o telefone do gancho.
Paulo ouviu um gemido, seguido de um suspiro controlado de impaciência. Mudou o telefone de ouvido, antes que a mulher voltasse a falar, procurando distribuir por igual a carga de tensão que ultimamente sempre costumava acompanhar a voz de sua ex esposa.
- Acho que você sabe perfeitamente porque liguei.
Paulo sabia. Recebera a papelada pelo correio, apenas uma semana antes. Recordava-se com incrível clareza do dia em que chegara em casa e se deparara com os papeis arremessados para o lado de dentro da casa, pela fresta da porta. Um documento inteiro, com 22 paginas amassadas, redigidas em tamanho 12, espaçamento simples e fonte times new Roma. Com exceção do titulo do documento. Era a única parte do texto que se destacava em uma fonte ligeiramente maior, com letras maiúsculas, em negrito e sublinhada: CONTRATO MATRIMONIAL DE DIVISÃO DE BENS.
- Pensei que já tínhamos conversado sobre isso. – Disse ele, procurando ser o mais educado possível. Seu advogado (um sanguessuga maldito, como costumava lembrar-lhe constantemente sua ex-esposa) o instruirá a procurar, sempre que possível, controlar sua raiva impulsiva. E além do mais, Paulo não queria cometer o mesmo erro que uma vez, num passado não muito distante, arruinara por completo seu casamento já então decadente. Naquela época agredira sua ex-esposa com algo bem mais solido do que meras palavras ofensivas arremessadas ao Léo.
- Meu advogado entrou em contato comigo ontem a noite. Disse que precisamos rever alguns termos contratuais. Ele acha que você está me passando a perna.
Paulo controlou-se, procurando não explodir de raiva. Conhecia perfeitamente bem o sanguessuga de Amanda. Fora ele o responsável pelo processo aberto contra ele há cinco anos atrás, que quase arruinara sua futura carreira de escritor. Uma mancha negra sobre um passado limpo, ou quase.
- E você, o que acha?
Amanda suspirou. Demorou algum tempo para que respondesse. Parecia confusa.
- Sinceramente? Não sei... Não sei mais o que pensar de você. Éramos tão bons juntos, mas você mudou tanto Paulo. Por quê? Por que teve de acontecer conosco?
Paulo não respondeu. Em parte, porque era uma pergunta retórica, e por outro lado, porque realmente não sabia a resposta. Tentou por inúmeras vezes fazer um retrospectivo pessoal, uma auto-analise critica sobre sua vida conjugal para encontrar, quem sabe, o ponto concreto onde as coisas haviam desandado por completo. O momento critico que rompera a tênue linha que separava o amor do ódio.
- Não queria falar sobre isso por telefone. – Disse ele, sua voz falhando.
- Nem eu. – Concordou ela. – Não acho que seja algo justo, com nenhum de nós. Que tal quinta a noite? Podemos jantar juntos.
Paulo hesitou antes de responder. Não queria ter de se preocupar com o resultado do que o consumo excessivo de álcool provocaria em ambos. Não agora que o processo de divorcio já se encontrava num estagio mais avançado do que ele realmente gostaria.
- Acho que não vai dar. Vou varar a noite acordado. Preciso concluir o romance no qual estou trabalhando até o fim do mês. Graças a essa bagunça toda já extrapolei todos os prazos que meu editor me deu. E você sabe como eles são exigentes.
- Compreendo... – Murmurou Amanda, visivelmente desapontada.
- Vou pensar em algo e assim que puder te ligo. Seu celular ainda é o mesmo?
- Sim.
- 9173...
- Foi você quem me deu. – Interrompeu ela, secamente. – Sabe de cor e salteado qual o número.
Paulo sentiu o tom de voz alterado da ex mulher, que sempre antecedia a uma discussão e soube que era hora de inventar uma boa desculpa para desligar.
- Bem, então a gente se fala depois.
- Tudo bem.
- Tchau...
Pode ouvir, do outro lado, o ruído seco do telefone sendo depositado com força sobre o gancho.
Amanda estava tão linda quanto da primeira vez que Paulo a vira, durante uma convenção literária promovida pela faculdade em que ambos lecionavam. Usava um longo vestido vermelho, contornando as curvas sinuosas do seu corpo até pouco abaixo do joelho. Seus cabelos, geralmente longos e rebeldes, se comportavam excepcionalmente bem naquela noite, com um penteado liso, caindo por sobre seus ombros magros em suaves ondas negras. Não exagerara na maquiagem, como o ex marido receara. Muito pelo contrario. O ligeiro tom rosado das bochechas contrastava perfeitamente bem com o vermelho delicado do batom. Seus lábios não eram mais a tênue linha rosada, com a qual Paulo se acostumara. Ao invés disso pareciam mais vivos, bem delineados, ligeiramente carnudos, exalando sensualidade. Ao que parecia, a separação fizera mais bem a ela do que a ele.
- Por que escolheu esse lugar? – Perguntou ele, fingindo indiferença, folheando displicentemente o cardápio com capa de couro e o menu bem ornamentado, dividido em duas grandes paginas amareladas, imitando papel antigo. As palavras estavam ali, nítidas. Apesar disso, parecia que para ele não tinham significado algum. Sua mente se encontrava submersa em pensamentos. Pensamentos que em quase toda sua totalidade diziam respeito a mulher de vestido vermelho e lábios proeminentes, sentada a sua frente, na mesma mesa do mesmo restaurante onde ainda guardava as lembranças daquele incrível primeiro encontro. Fora uma época mágica, repleta de descobertas inocentes, o apogeu de uma paixão desenfreada. O quê, afinal de contas, aquilo significava?
- Por que a pergunta? – Perguntou Amanda. Paulo sentiu os pelos do seu corpo eriçarem. Seu tom de voz era meigo, delicado, quase erótico, semelhante ao mesmo tom de voz empregado naquele primeiro encontro, cujas lembranças ainda permitiam se dar ao luxo nostálgico da saudade. – Pensei que gostasse do lugar.
- E gosto. – Apressou-se a responder. – Não me entenda mal, mas pensei que nosso... – Hesitou um pouco, antes de continuar. Sabia que poderia trair a si mesmo se acabasse não usando as palavras de forma correta. Procurou por outro termo semelhante antes de continuar, mas como não encontrou, deu-se por vencido. – Pensei que o nosso “encontro” fosse um pouco mais formal.
Amanda riu. Paulo notou com curiosa atenção como seu sorriso estava belo, especialmente naquela noite. Será que não se dera conta da sorte enorme que tivera ao encontrar uma pessoa como Amanda? Seria possível que estivesse tão cego ao ponto de simplesmente não abrir mão de tudo e aceitar a verdade lógica, inegável, de que ela era a mulher mais importante de toda a sua vida e de que não deveria, nunca, jamais, abrir mão de tudo que conseguira conquistar com tanto sacrifício sem ao menos lutar? Sem ao menos se dar ao beneficio da duvida?
Paulo balançou lentamente a cabeça, procurando manter as idéias em ordem, voltar a pensar racionalmente, enquanto deixava as lembranças antigas em seu devido lugar; um guarda roupa velho, pegando mofo, num canto profundo e obscuro de sua mente perturbada.
- Foi por isso que veio de terno e gravata? A propósito, sua gravata não combina. Mas gostei do terno. Acho que deveria usar preto com mais freqüência. Cai muito bem em você.
Dessa vez foi a vez dele sorrir. Sorrir e corar. Não estava acostumado a receber elogios. Ainda mais, vindos de alguém que tinha todos os motivos do mundo para não elogia-lo.
- Obrigado. Você também está ótima. – Disse ele, sem jeito.
- Um elogio, vindo de você? Do metódico e insensível Paulo Nunes? Isso sim é uma atitude digna de surpresa.
- Metódico e insensível... – Murmurou ele, em concordância. – Um elogio e uma ofensa casando perfeitamente bem numa mesma sentença. Será que também devo ficar surpreso?
- Sem essa... Você me conhece bem. Alias... Bem mais do que eu gostaria. O suficiente para saber que sou assim. Sarcasmo fora de contexto é o meu segundo nome.
- Tem toda a razão. Bem... Eu trouxe o contrato comigo. Tomei o cuidado de sublinhar alguns trechos importantes...
Paulo parou, bruscamente. Antes que abrisse a pasta amarela sobre a mesa, sentiu o toque suave dos dedos de sua ex esposa sobre os seus. Não esperava por aquilo. Na verdade, temia que algo semelhante viesse mesmo a acontecer, apesar de no mais fundo do seu intimo ter a certeza de que viera ali apenas tratar de negócios. Nada de reconciliações, não senhor. Não era bom em pedir desculpas, ainda mais quando sabia que tinha realmente uma boa parcela de culpa no cartório. Deu-se conta de que não saberia lidar com a situação se aquele “encontro” tomasse outro rumo.
- Por favor... – sussurrou Amanda, pressionando de leve seus dedos contra os dele. Seus lábios tremiam e seus olhos estavam ligeiramente marejados. – Vamos jantar primeiro.
Paulo encarou-a, hesitante, percebendo com incrível nitidez como sua ex esposa estava radiante, naquela noite em especial. O vermelho lhe caia bem. Seus pensamentos voaram longe, sua imaginação mergulhou num passado distante, desprovido da angustia que um dia, sem mais nem menos, passaria a dominar por completo o rumo que sua vida tomaria. Para uma época em que sabia que era capaz de amar, honesta e concientemente. Poderia ele voltar a essa época? Poderia simplesmente jogar tudo para o auto e voltar a ser feliz, como antes? Como no principio? Antes que seu mundinho particular simplesmente inundasse numa torrente de dor e sofrimento? Seria esse encontro algum tipo de sinal? Algo como Deus cavando repetidas e repetidas vezes sua mente, tentando enviar a qualquer custo a mensagem que ele se recusara a aceitar? De que só seria feliz ao lado da mulher de rosto bonito e vestido vermelho, parada a sua frente esperando pela sua reação? Não sabia... A única coisa da qual estava realmente ciente é de que queria... Precisava ter a certeza de que aquilo não significava absolutamente nada. O mais provável era que tudo não passara de um lapso momentâneo de fraqueza, de ambas as partes. Sabia que Amanda ainda gostava dele. Bem mais do que ele merecia. Talvez até ainda o amasse, mesmo diante de todos os seus defeitos e erros cometidos num passado não muito distante. Sabia também que gostava dela, ainda que não fosse com tanta intensidade. Poderia tentar controlar ou ocultar seus relapsos sentimentos quando estava perto dela, como uma criança travessa empurrando os cacos de vidro de um espelho quebrado para baixo do tapete, mas, assim como nas crianças travessas, o suor em excesso que escorria de suas mãos nessas ocasiões sempre o denunciava.
- Por favor... – Repetiu ela, usando a outra mão para envolver a dele, em concha. Um pequeno circulo de umidade surgiu por sobre o amarelo-queimado da pasta.
- Tudo bem. – Respondeu ele, desvencilhando-se um pouco sem jeito. – Podemos deixar isso para o final.
Amanda sorriu. Paulo pode ver seus grandes e expressivos olhos negros brilharem, extremamente, dolorosamente vivos, em meio ao pó compacto que enfeitava seu rosto.
- E então? O que vai pedir? – Perguntou ela.
- O que você quiser para mim está bom.
- Tem certeza? Sabe que tenho gostos exóticos.
- Certeza absoluta. Confio plenamente em você.
Amanda corou. Provavelmente enxergara mais significado na frase do que realmente havia. Paulo procurou pensar com um pouco mais de cuidado nas próximas palavras. Não queria que um erro de interpretação piorasse ainda mais uma noite que, sabia ele, provavelmente não terminaria bem. Afinal, viera até ali para falar sobre o divorcio e não queria se esquecer disso. Odiava ter que perder o foco, em se tratando de quem ia ficar com o quê na divisão de bens. Entretanto, se sentiria extremamente culpado se acabasse magoando Amanda outra vez com as palavras erradas.
- O que você quiser. – Reforçou ele, sem se alongar mais.
Amanda, visivelmente abaixo do peso, optou pelo cardápio de massas. Farfale com espinafre, regado ao molho branco, com vinho tinto de acompanhamento. De sobremesa pediram Bavaroise de morango e bananas carameladas. Comeram rápido. O nervosismo e a estranheza da situação colaboraram em partes para isso. Não se viam há meses, desde a ultima discussão e agora estavam ali, sorrindo, conversando descontraidamente e jantando juntos, como se nada de errado perturbasse suas vidas. Como se o futuro incerto que se aproximava com a separação não fosse forte o suficiente para plantar a duvida e o medo no coração de duas pessoas nascidas uma para a outra, mas cruel e irremediavelmente separadas pelo destino.
- Posso fazer uma pergunta pessoal? – Perguntou Amanda, levando um lenço de papel à boca, tirando o excesso do batom que acabara de retocar.
- Tenho opções? – Respondeu ele, dando de ombros.
- Acho que não.
- Então vá em frente... Aposto que me deixará constrangido.
Amanda suspirou e em seguida tomou um longo gole de vinho, como que para criar coragem. Quando levou o copo a mesa, suas mãos tremiam.
- Você ainda me ama?
Paulo emudeceu.
- Amanda... – Recomeçou a falar, recuperando-se (ou ao menos tentando) do choque momentâneo. – Não sei se esse é o momento certo para dis...
- Ambos sabemos que é. – Retrucou ela. Mais uma vez seus grandes e expressivos olhos negros estavam marejados. - Não nos víamos há meses, e as poucas vezes que mantivemos contato por telefone foi para tratar de um divorcio que eu nem sei se realmente quero.
- Amanda...
- Não! Me deixa terminar. Acho que você me deve isso.
- Tudo bem. Tem razão. Continue por favor.
- Como disse antes, não nos vemos há meses e o pouco contato que mantivemos por telefone, ao menos para mim, não passou de conversa fiada. Peço perdão, mas tive de mentir. Meu advogado não me procurou. Pra ser sincera, entrei em contato com ele apenas uma única vez. Foi o suficiente para perceber a besteira que estava prestes a fazer. Não quero me separar de você Paulo. Sei que não foram dez anos maravilhosos, impecáveis em todos os aspectos. Passamos por muitas coisas difíceis, tivemos nossas discussões, nossos momentos de fúria, mas o meu sentimento... Meu amor por você permanece o mesmo desde o primeiro dia em que te conheci.
- Aman...
- Não vamos jogar a historia de uma vida inteira pelo ralo, por favor. Eu preciso dessa chance. Preciso ser capaz de mostrar para mim mesma que fiz o possível e o impossível para nunca perdê-lo.
Paulo permaneceu mudo de surpresa. A expressão em seu rosto não demonstrava mais sentimento algum. Sua boca era um pequeno filete de carne, comprimido com vontade por entre os dentes.
- Você dispensou seu advogado?
- Assim que o seu me procurou para tratamos do divorcio. Pensei que poderíamos reavaliar a situa...
- NÃO! NÃO PODEMOS! – Berrou Paulo, surpreendendo a si mesmo em seu acesso de fúria. – E VOCÊ FOI EXTREMAMENTE IRRESPONSÁVEL FAZENDO ISSO! AGIU COMO UMA PRÉ-ADOLESCENTE APAIXONADA E INCONSEQUENTE.
- Mas Paulo...
- Será que você não percebe Amanda? – Retrucou ele, diminuindo um pouco o tom de voz. A essa altura, metade dos engravatados no restaurante fitavam os dois com um misto de curiosidade e surpresa. – Será que você não é capaz de enxergar o marasmo no qual nossas vidas se transformaram?
- Por favor, não fale assim.
- Por que não? POR QUE? É tão difícil assim encarar a realidade? É tão difícil fugir de sua redoma particular? É tão doloroso assim ter que ser obrigada a encarar os problemas de frente, ao invés de se esconder sobre sua camada proposital de ignorância?
Amanda levou as mãos ao rosto. Seu peito arfava, pesadamente, enquanto as lagrimas escorriam incontrolavelmente pelo rosto borrado de maquiagem.
- Acho melhor ir embora. – Disse Paulo, levantando-se e largando algumas notas sobre a mesa. Esperou, nervoso, por alguma ação impulsiva por parte da ex esposa, desencadeada pelas palavras maldosas e o tom agressivo de sua voz, mas a reação não veio. Antes que saísse, a voz fraca ecoou pelo gélido silencio do salão, acompanhada pelos olhares apreensivos dos freqüentadores curiosos.
- Você... Você não... Você não responde minha pergunta.
Paulo parou de frente para a porta. Pensou em virar-se e ir até a ex esposa, acariciar-lhe o rosto e beijá-la, durante um logo e prazeroso minuto. Mas sabia que não poderia fazer isso. Sabia que se concordasse com isso, seus impulsos acabariam inevitavelmente traindo a razão. Amava Amanda. Sempre amou e sempre amaria. E fora exatamente por esse detalhe que mentira. Amanda era boa demais e merecia alguém melhor do que ele. Alguém menos egoísta. Alguém que pensasse um pouco mais nela ao invés de em si próprio. Não seria fácil, mas teria que libertá-la para sempre da prisão sentimental na qual a manteve presa durante aqueles longos quinze anos. Virou-se de frente para a ex esposa e falou, num sussurro quase inaudível.
- Não Amanda! Eu não a amo mais.
Virou-se de costas e saiu do restaurante no qual tiveram, num passado muito, muito distante, o primeiro encontro de suas vidas, dessa vez, deixando para trás um coração triste e despedaçado, que jamais conseguiria se recuperar.
Paulo abriu os olhos e respirou fundo. Foi como acordar de um sonho ruim, com a nítida impressão de que a sensação de aperto no peito passaria logo. Não passou. Levantou-se e como das outras vezes, foi até a geladeira. Abriu-a e encarou a caixa de suco de uva, ainda pela metade. Sentia-se um perfeito idiota ao trazer a tona as lembranças da ultima vez em que falara com a ex esposa. O modo rude e extremamente mal educado de como a tratara, a frieza na voz... Nunca quis realmente magoá-la, mas sabia que se quisesse que ela seguisse em frente com sua vida, deveria fazê-lo. É claro que se soubesse que fim aquela historia teria levado, jamais, em hipótese alguma, acabaria por pronunciar aquelas palavras. Agora sentia-se, com toda a razão, mais culpado do que antes. Fora ele, afinal, o responsável pela ruína das duas únicas pessoas nas quais ele nunca havia deixado de confiar. Sua ex esposa e ele mesmo.
Fechou a porta da geladeira, deixando de lado a idéia do suco de uva. Não queria provocar as lembranças, martirizar-se mais do que o necessário. Ainda não se sentia preparado para o próximo passo. Seu coração ainda doía diante das lembranças de sua vida conjugal. Foi até a sala e lá chegando deixou que seu corpo mole tombasse por sobre o sofá. Esticou as pernas, apoiando-as sobre a mesa de centro e levou a mão a testa. Uma desconfortável pontada de dor se instalara ali, desde a ultima vez em que vira a foto da ex mulher em uma matéria no jornal local. Tentou mais uma vez desviar os pensamentos, ao menos minimizá-los, mas é claro, não conseguiu. As enormes letras garrafais que ilustravam a matéria pareciam se insinuar com incrível nitidez de detalhes, sempre que ele se pegava pensando no assunto: EX-MULHER DE PROMISSOR ESCRITOR É ENCONTRAVA MORTA EM SEU APARTAMENTO.
A pontada se intensificou mais, espalhando-se rapidamente até a têmpora direita. Paulo massageou, nervoso, com cuidado o ponto onde se localizava o epicentro da dor, gemendo baixo. Seus olhos se apertaram e antes que percebesse já estava reprimindo outra lágrima.
Paulo lembrou-se da caixa de comprimidos na gaveta do criado mudo e foi até lá. Não queria, de forma alguma, passar outra madrugada em claro. Sabia que os calmantes há muito não surtiam o mesmo efeito que surtiram no inicio do tratamento, mas não custava nada tentar. Quando abriu a gaveta e se deparou com o pequeno frasco amarelado, pensou o quão patética e insignificante sua vida se tornara. Era irônico saber que sempre rira e menosprezara os dependentes químicos. “Um bando de gente sem vontade própria.”, como dissera certa vez a Amanda, enquanto visitavam um primo dela numa clinica para recuperação de viciados em heroína. Mordeu os lábios, reprimindo mais uma vez as lembranças, sentindo-se mais culpado do que o habitual.
- Dane-se! – Disse, suspirando. Enfiou os dedos (agora excessivamente magros devido ao jejum prolongado) no interior do frasco e com um movimento lento, retirou dois pequenos comprimidos. Tinham um formato engraçado, compridos e levemente achatados nas pontas, divididos ao meio em duas cores fortes; vermelho e amarelo. A aparência era agradável, semelhante as balas que se pode comprar nos supermercados e barzinhos, por módicos cinqüenta centavos a dúzia. Em um movimento único de mãos, levou as duas a boca, engolindo-as. Voltou até o sofá e se deitou, apoiando com cuidado a cabeça dolorida sobre uma almofada macia. Não demorou para que o sono viesse, não de todo tranqüilo, mas livre, durante a maior parte do tempo, dos horríveis pesadelos.
Eram precisamente três horas, de uma madrugada de quinta feira, dezessete de agosto, quando Paulo acordou com o alarme estridente do telefone tocando ao seu lado. Não se importaria em atendê-lo. Deveria ser o advogado, alarmado e ao mesmo tempo não de todo triste com a noticia da morte de sua ex esposa. Enquanto, para ele, Amanda era como um trecho mal resolvido de sua historia, uma parte da qual ele agora aprendera a nutrir um enorme sentimento de saudade, para seu advogado (que ele começara, relutantemente a enxergar como um legitimo sanguessuga.) o fato de Amanda ter enfiado o cano de um revolver na própria boca e puxado o gatilho, espalhando o que restara de sua massa encefálica pelo piso ladrilhado do seu apartamento, soava como uma longa historia, dividida em inúmeros e incômodos capítulos, que agora chegavam finalmente ao fim. Não haveria mais separação legal, com comunhão de bens, pois não haviam mais duas partes com bens em comuns para que pudessem ser separados. Uma delas jazia agora, com o pouco que restara de seu rosto dilacerado, enterrada sete palmos abaixo do chão, sobre um jazigo bonito, com uma escultura em forma de anjo e seu nome gravado sobre o concreto reforçado da lapide. Cortesia do ex-marido perturbado que já não conseguia dormir mais do que duas horas por dia.
Levou a mão a cabeça, limpando o suor que escorria por sobre a testa. Deveria se lembrar de consertar o ar condicionado. Deixara passar aquele pequeno problema pessoal, um detalhe ínfimo em sua vida conturbada e só agora percebia o quão importante seria ter o ar condicionado funcionando em perfeitas condições. Não gostava do calor. Sua mente não trabalhava bem durante as noites particularmente quentes e sozinhas no seu apartamento. O telefone na mesa de centro permanecia tocando.
Hesitou um pouco, antes de se render aos chamados insistentes. Sabia que era Arnaldo. O advogado o informara, durante a ultima conversa que tivera com seu cliente, na ocasião ligeiramente embriagado e potencialmente perturbado, que ficaria atento a qualquer detalhe e perguntou se precisasse, se poderia ligar em horários impróprios. “Você sabe” – dissera ele – “Eles vão te procurar. Vão querer sugar todo o tipo de informação possível que possa lhes dar. O tipo de perfume que ela usava, a cor da langerrie predileta, o restaurante que costumavam freqüentar quando eram casados. Algumas freqüentadores do restaurante poderão ser intimados a comparecer, perante o juiz, caso pensem na probabilidade de assassinato, apesar disso ser um pouco improvável. Você tem bons álibis. Mas eu aconselho que você se prepare para a enxurrada de perguntas. Apesar dos exames que farão no corpo, tenho certeza que vão questioná-lo se já a viu sob o efeito de drogas, ou algum outro tipo qualquer de entorpecente. Remédios controlados, bebida... Vão querer saber sobre o encontro, sobre a ultima vez em que sua ex esposa foi vista com vida, subindo aos prantos pela escada de serviço que da acesso ao apartamento onde ela morava. Para nós, esse ponto enigmático da historia é particularmente importante. Ajuda a traçar o perfil psicológico de Amanda, e, acima de tudo, comprova enfaticamente que o que temos aqui não se trata de homicídio.”
Homicídio... A palavra soava até engraçada para Paulo. Nunca tivera força de vontade o suficiente para tirar a vida de uma mosca sequer, quem diria a vida da mulher com quem convivera durante quase metade de toda a sua vida.
Ainda ouvindo o telefone tocar, Paulo ergueu-se com dificuldade e apanhou o aparelho sem fio, sobre a mesa de centro. Apertou o botão “ON/OFF” do telefone e levou ou aparelho ao ouvido. Respondeu os insistentes chamados com um desmotivado “Alô”. Do outro lado da linha o advogado permaneceu calado, como se não tivesse ouvido.
- Alô? – Repetiu, dessa vez se certificando de que respondera alto o suficiente.
Nada.
Novamente o silencio monótono da madrugada, rompido apenas pelo ronco ocasional de algum carro passando pela avenida em frente ao prédio onde ele morava.
- Alô, Arnaldo? É você? Por Deus homem... Não brinque comigo! São três horas da madrugada e eu preciso realmente dormir.
Nada.
Esperou durante alguns segundos pelo menor indicio que fosse de voz, do outro lado da linha. Atendera ao telefone com a certeza absoluta de que assim que tirasse o fone do gancho, antes mesmo de levá-lo ao ouvido, ouviria a ladainha desenfreada de seu sangue suga particular. Mas a ladainha não veio. Ao invés disso, o único ruído perceptível era a estática provocada pela má qualidade da ligação, semelhante ao ruído emitido por um aparelho de TV fora do ar.
- Arnaldo... – Insistiu ele, já com a cabeça latejando de dor. O comprimidos coloridos e de formato engraçado não fizeram efeito. – Se você consegue me ouvir, por favor, ligue depois das dez. Preciso mesmo dormir um pouco. Minha cabeça parece que vai estourar.
- Assim como a minha? – Sussurrou a voz entrecortada do outro lado da linha.
Paulo levantou-se de um salto, deixando o telefone cair no chão com um ruído alto do plástico chocando-se a cerâmica. O aparelho ainda quicou duas vezes, antes de parar ao pé da mesa de centro. Paulo encarou-o, com o rosto empalidecendo de pavor. Seus lábios tremiam convulsivamente e de seu rosto brotavam grandes gotas transparentes de suor. “Não... Não pode ser.” – Pensou consigo mesmo. – “Deve haver algum engano. Com certeza estou imaginando coisas.”
Hesitante, ele abaixou-se e se aproximou devagar, engatinhando, até o pé da mesa de centro. Podia ouvir o ruído da estática, o mesmo chiado característico da má qualidade da ligação que ouvira anteriormente. Ainda que estivesse enganado, ainda que tudo não passasse de uma peça, uma brincadeira sem graça provocada por sua mente excepcionalmente imaginativa, a pessoa que o ligara permanecia do outro lado da linha, esperando por sua resposta. Teria ele realmente ouvido aquela voz? “Não... Claro que não! É impossível!”
Com cuidado pegou o telefone do chão, com as pontas dos dedos, como se minimizar o contato físico fosse, de alguma estranha maneira, privá-lo de ter que de enfrentar a verdade. Levou o aparelho até o ouvido, atento ao menor ruído, ouvindo o barulho da estática aumentar a medida em que aproximava o fone.
- Al... Alô... – Gaguejou. A voz mal conseguindo se espreitar para fora das cordas vocais.
- Não desligue! – Ordenou a voz do outro lado da linha.
Seu coração pareceu se partir em mil pedaços, e um sentimento estranho se apoderou dele. Um misto de raiva e dor, medo e terror, e, acima de tudo, culpa. Um terrível sentimento de culpa que sempre estivera ali, escondido, enraizado nas camadas mais profundas de sua mente, pronto para ser despertado. Um sentimento que aflorou como erva daninha, correndo seu coração, plantando ali a duvida, a incerteza, e aumentando consideravelmente o pesar que se instalara nele desde a morte da ex esposa.
- Quem é você? – Perguntou ele, já não conseguindo controlar as lagrimas. Chorou copiosamente, feito uma criança privada das regalias da juventude. – Quem é você e por que faz isso comigo? Por que? Não sofri o sufici...
- NÃO! – Rugiu furiosamente a voz do outro lado da linha. A voz que lhe era perfeitamente familiar. A voz com a qual convivera durante quase quinze anos e que seria capaz de reconhecer até mesmo se transcorressem outros trezentos. Era a voz de sua ex esposa, que estourara seus próprios miolos com um tiro de espingarda, calibre doze. – VOCÊ NÃO SOFREU O SUFICIENTE, SEU PUTO MISERAVEL E EGOISTA. EU DEDIQUEI METADE DA MINHA VIDA A VOCÊ E O QUE RECEBI EM TROCA? NADA! SIMPLESMENTE NADA! HÁ NÃO SER O DESPREZO E A INDIFERENÇA. VOCÊ VAI PAGAR CARO POR ISSO, SEU DESGRAÇADO FILHO DA MÃE! VOU SUGAR SUA ALMA, CARREGA-LA JUNTO A MINHA PARA O INFERNO. VOCÊ SABE QUE OS SUICIDAS NÃO TEM UMA SEGUNDA CHANCE, NÃO SABE PAULO? ESTÁ NA BIBLIA, SEU VIADINHO ESCROTO DE MERDA! O LUGAR ONDE ESTOU É QUENTE E OS RIOS DE LAVA ESTÃO REPLETOS DE GENTE COMO VOCÊ. DE DESGRAÇADOS QUE DEDICARAM SUAS VIDAS A FERRAR AS DOS OUTROS. VOCÊ VAI PAGAR PAULO... VOCÊ VAI PAGAR MUITO CARO...
Paulo largou o telefone sobre o chão pela segunda vez naquela madrugada. Dessa vez ele não quicou, embora isso não fizesse diferença alguma. Pois antes mesmo que o telefone se chocasse com um baque surdo contra o vidro da mesa de centro, Paulo já estava no chão, com a cabeça apoiada em um dos pés do sofá e sangue escorrendo em um grande talho feito em sua cabeça. Desmaiara antes mesmo que o ruído da estática cessasse e o telefone ficasse mudo.
***
Paulo levantou-se do divã, sentindo seu corpo rígido como pedra. Virou-se para o amigo, sentado ao seu lado numa confortável poltrona recoberta de couro sintético e encarou-o. Seus olhos estavam vermelhos e seu semblante era de alguém que não dormia há dias.
- Nos dias que se seguiram, continuei a ouvi-lá. Não por telefone. Aquele fora só o seu primeiro contato. Ouvia sua voz em minha mente. Penetrando, sugando o pouco do de sanidade que ainda restava e pela qual eu tanto lutara. Todas as manhãs acordo com o barulho do telefone tocando, sempre no mesmo horário, e quando atendo não ouço a voz dela, mas sei que ela está lá, do outro lado da linha, esperando pelo momento certo. Você sabe o que as pessoas dizem sobre as três horas Angelo? Dizem que é a hora maldita. A hora em que as portas do inferno se abrem e os demônios conseguem escapar, ainda que por um misero minuto. Meu Deus do céu... O que está acontecendo comigo?
Paulo abaixou a cabeça, apoiando-a com as palmas das mãos suadas. Seu nariz fungava, a medida em que ele tentava reprimir as lagrimas, que caiam por sobre suas mãos, rolavam entre seus dedos e acabam sobre a cerâmica do consultório do amigo psiquiatra.
- Há quanto tempo você ouve essas vozes?
- Essa! – Corrigiu ele, ainda com as mãos sobre o rosto. Sua voz saiu abafada devido a pressão que os dedos exerciam sobre os lábios. – Há aproximadamente duas semanas. Dois dias depois de ver a manchete no jornal. Fizeram questão de negritar e sublinhar o meu nome e sobrenome e não se importaram em repeti-lo pelo menos três vezes no decorrer da matéria. Sensacionalistas malditos!
- E com que freqüência você ouve as... A voz?
Paulo ergueu de leve o rosto cansado. Seus olhos tão vermelhos quanto brasas no interior de uma fogueira tremularam diante das lembranças. Não queria entrar em detalhes sobre suas prováveis alucinações auditivas, mas sabia que já se espora demais. Não achava que havia mais volta.
- O tempo todo! – Sussurrou.
- Agora?
- Sim.
- E o que a voz lhe diz?
- Coisas que gostaria que eu fizesse com os outros. Coisas que gostaria que eu fizesse comigo mesmo.
- Que tipo de coisas?
Paulo não respondeu a essa pergunta. Limitou-se a permanecer encarando o amigo, com um semblante de monótona tristeza no olhar. Sentia-se exausto, física e psicologicamente.
- Então... – Começou, antes que amigo encontrasse tempo para formular outra incomoda pergunta. Queria privá-lo do constrangimento de ter de revelar seus mais secretos temores. As coisas que a mulher morta dissera ficariam eternamente entre eles. – Qual o seu parecer médico?
Desta feita foi a vez de Angelo não responder.
- Você acha que eu enlouqueci, não é? Acha que perdi por completo o pouco de juízo que ainda tinha. Fico triste, mas não chateado. Já esperava por isso.
- Não acho que você enlouqueceu. Mas acho que precisa de ajuda.
- Então você acredita em mim?
Mais uma vez Angelo limitou-se a não responder à pergunta.
Paulo ergueu-se e se aproximou dele. Encarou o amigo, deixando o rosto apena alguns centímetros distante do dele. Angelo tentou, em vão, analisar o seu olhar triste, buscar ali alguma anomalia perfeitamente explicável, plausível do ponto de vista médico, no modo como o amigo descrevera a suposta voz do espírito da ex mulher. Não conseguiu.
- Vá para casa. – Disse, por fim. – Temos um congresso de psicologia para ir. Depois podemos fazer um tour pela cidade, só para espairecer. Viajamos depois de amanhã, bem cedo.
No final das contas não houve viagem para congresso algum de psicologia. Ao menos, não para Paulo.
***
Paulo enfiou a chave velha no interior da fechadura. O metal oscilou, ameaçando quebrar-se ao mínimo movimento mais brusco de punho, mas não o fez. Girou novamente o metal, sentindo a resistência romper-se gradativamente, a medida em que conseguia girar a chave. Deu duas voltas completas, antes de pousar os dedos suados sobre o metal gelado da maçaneta. Girou-a e empurrou a porta, que abriu-se para dentro com um rangido fraco de protesto por parte das dobradiças enferrujadas. A luz estava apagada, e assim que entrou ele pode sentir o cheiro acre e incomodo do mofo penetrar-lhe as narinas. Não tinha certeza de quando fora a ultima vez que visitara a velha dispensa nos fundos da casa, mas sabia que fazia muito tempo. Um ano e meio, ou talvez dois, afinal que diferença faria?
Tateou pela escuridão, tocando de leve com as pontas dos dedos sobre as paredes de madeira, tomando o cuidado de não deixar que nenhuma farpa escapasse para os espaços entre os dedos e as unhas. Sabia que se o deixasse, se permitisse que a dor invadisse seu corpo antes da hora, por menor que fosse, acabaria não tomando coragem. E não queria voltar atrás. Não agora que estava tão próximo.
Parou de tatear quando sentiu o volume do interruptor, sobre uma ripa maior de madeira, grudada a parede de forma precária. Pressionou-o, ouvindo o “click” agudo, soando alto no silencio monótono do interior da dispensa. Uma pequena lâmpada de quarenta woltz iluminou o lugar. Paulo sentiu a luz invadindo sem a devida permissão seus olhos, atravessando o globo ocular, se espreitando para dentro da retina, machucando, ferindo, incomodando. Fechou os olhos, permanecendo com eles assim durante um bom tempo, até criar coragem para abri-los de leve, acostumando-se com a luz amarelada, e agora, apenas ligeiramente incomoda.
Quando se acostumou com a imensidão incomoda de luz amarela foi que se deu conta de que realmente havia muito tempo não visitava o lugar. Estava simplesmente abandonado. Teias de aranhas enfeitavam o teto, entrelaçando-se umas nas outras, percorrendo as vigas, descendo pelas paredes até o chão. Em uma estante velha, nos fundos, pode visualizar, mesmo que de longe, uma grossa camada de poeira, que encobria as cabeças dos bonecos em miniatura do exercito, que ele colecionara quando ainda era pequeno. Aproximou-se da estante sentindo um certo ar nostálgico invadir-lhe o peito. Boa parte de sua infância e adolescência estava ali. Em uma larga caixa de papelão, ao lado dos bonecos, estavam empilhados seus gibis antigos, com uma camada de poeira manchando-lhes as paginas amareladas. Superman, Hulk, Mulher maravilha e Turma da Mônica. Havia também os títulos esporádicos, que ele sequer se recordava que colecionara. Capitão América, X-men, Novos Titãs e Clube da Luluzinha. Além, é claro, das revistas masculinhas, devidamente escondidas embaixo da inocente pilha de historias em quadrinhos. Um pouco mais abaixo, seus bonecos dos cavaleiros do zodíaco estavam amontoados em uma pilha, misturados aos cinco “Power Rangers”, quase pegando mofo. Faltavam-lhe varias pernas, e em dois deles, dois braços, mas as cabeças reclináveis, que transformavam-se em capacetes futuristas em um simples mover de dedos, permaneciam intactas. Ao lado viu um antigo aparelho de fitas k7, com alguns botões faltando e outros poucos enferrujados, corroídos pela ação implacável do tempo. Em outra caixa de papelão encontrou pelo menos vinte fitas, devidamente enfileiradas e etiquetadas, escondidas por debaixo da fina camada esbranquiçada das terias de aranha. Surpreendeu-se ao relembrar que fora com elas que começara a carreira como escritor. Como o papel era caro, e raro, em se tratando da época em que começou a esboçar seus primeiros projetos literários, narrava suas historias naquele velho gravador, nos rolos de fita magnética, hoje obsoletos. Depois transcrevia-os para o papel, tomando o cuidado de fazer as devidas melhorias. Na maioria das vezes quase nunca aproveitava os originais, e acabava, no final das contas, revisando tudo. Nunca foi bom com as palavras, sem a presença de uma tela em branco com o cursor piscando no final, ou mesmo uma folha amarelada de papel passeando por sobre o rolo de uma antiga maquina de escrever.
Se divertiu muito durante alguns prazerosos minutos, vasculhando as lembranças de uma época cuja a preocupação maior era conseguir cola com o filho do vizinho para misturar aos cacos de vidro de uma lâmpada velha e fazer cerol para pipas. Mas sabia que não viera ali para isso. Fora gratificante, nostálgico, relembrar os bons momentos da infância, mas as lembranças inadvertidamente seguiam por caminhos que ele decididamente não gostava de trilhar. No final, a historia que sempre seguira seu curso imutável, o levara até ali. Até aquele momento e até o que precisava ser feito. Não se pegou perguntando-se se sentiria ou não remorso pelo que estava prestes a fazer. Não queria. Não pretendia dar a mínima margem que fosse para arrependimentos, por isso quando se viu abaixando-se, indo de encontro a grande caixa de madeira depositada ao pé do armário com sua coleção de bonecos, gibis e fitas k7 antigas, sabia que não havia mais volta. Por mais que o arrependimento viesse, por mais que batesse incontrolavelmente sobre a porta, com as dobras vincadas dos dedos, ele não abriria. Trataria o arrependimento como um estranho, de capuz negro e olhos assustadores, que bate a porta da sua casa a meia noite, pedindo abrigo. Simplesmente ignoraria, esperando que ele fosse embora.
Levou os dedos magros até a tampa da caixa, sentindo-os congelarem de nervosismo ao tocar a madeira corroída pelas traças. Levantou a tampa, abrindo-a devagar, preparando-se, nutrindo uma vã esperança de que o que procurava talvez não estivesse ali. Dessa forma teria uma ultima desculpa para evitar o que quer que tivesse de acontecer posteriormente. Sentia-se um covarde por pensar assim. Sentiu-se mais ainda ao notar, com uma súbita pontada no coração, a luz amarelada da pequena lâmpada de quarenta voltz grudada no teto brilhar viva e intensamente sobre os contornos metálicos da arma pousada no interior da caixa.
Agarrou a arma, procurando controlar o tremor nas mãos, e ergueu-a, pouco acima da cabeça, observando-a atentamente, admirando a beleza dos seus contornos bem trabalhados e as iniciais do seu velho pai gravadas na madeira de sândalo do cabo. Abriu o tambor, sentindo o metal oscilar e girar, com a mesma precisão que se lembrava de quando era apenas um moleque que invadia a dispensa em busca dos bonecos dos cavaleiros do zodíaco. Teve a horrível impressão de que, ao contrario das outras coisas, as armas nunca parecem envelhecer.
Paulo apanhou a caixa amarelada, ao lado do lugar onde antes estava a arma e abriu. O pacote consistia em dois conjuntos de munição, duas fileiras sobrepostas, com quatorze balas cada. Vinte e oito tentativas, mas ele sabia que só precisaria de uma. Retirou seis balas e carregou o tambor, sentindo que o nervosismo aumentava a medida em que o fazia. O suor escorria do seu rosto e o calor que fazia parecia beirar os quarenta graus. Mas ele não se importou com isso. Na verdade, ele sequer notou esses detalhes. Sua mente estava ocupada, tentando controlar as emoções que pareciam surgir aos montes. Lembrou-se das experiências de quase-morte que relatara em algumas de suas historias. “Era como se sua vida inteira passasse diante dos seus olhos”. Agora sabia que não era assim, apesar da informação não ter se mostrado inteiramente falsa.
Paulo fechou o tambor, ouvindo o “clac” agudo, como que pontuando suas intenções. Ergueu-a, visualizando apenas de relance o reflexo do seu próprio olhar perplexo sobre o metal brilhantemente conservado da arma. Levou o cano até os lábios e por um momento quase se arrependeu do que faria, quando sentiu o metal frio tocando-lhe o céu da boca. Teria voltado atrás, se tivesse alguma chance. Mas sabia que não tinha. Sabia que estaria para sempre fadado a danação, ao sofrimento eterno, por ter infringido tanta dor e sofrimento a única pessoa que sempre acreditara verdadeiramente em seu potencial, não apenas como escritor, mas como ser humano. Sabia que não havia mais volta, mas mesmo assim foi necessário muito mais do que coragem, para fazer o que deveria ser feito. Soube disso no momento em que sentiu seus dedos sendo pressionados de leve, quase contra a sua vontade, contra o gatilho da arma, como se mãos invisíveis os empurrassem. Ouviu a voz familiar sussurrar em seu ouvido e puxou o gatilho.
O estrondo inundou o pequeno e apertado cubículo que era o aposento. Um enorme clarão saiu do cano da arma, envolvendo o rosto de Paulo em uma torrente de faíscas amarelas. A bala entrou pela frente, acertando-lhe o cérebro em uma fração de milésimos de segundos e saiu do outro lado, rasgando, triturando, explodindo, dividindo sua cabeça em duas grandes metades, como uma melancia partida ao meio. Pedaços do seu cérebro voaram pelo ar, acertando os bonecos no interior das caixas, manchando as paginas amareladas dos gibis e pintando de vermelho-sangue as paredes pegando poeira. Quando seu corpo tombou já sem vida sobre o chão da pequena despensa onde guardava seus brinquedos de infância, seu rosto já não existia mais, e seus dedos, contorcendo-se em pequenos e horríveis espasmos, pressionavam com força o cabo de sândalo da arma. Se estivesse vivo, talvez perceberia, que refletindo no metal brilhante do cano, os contornos do rosto de uma mulher se elevavam em algo semelhante a um sorriso.
***
Angelo acordou com o ruído irritante do aparelho celular. “Crazy Frog” emitindo seus “tin, tin, tin´s” agudos e desconfortantes, seguidos pela batida rítmica de uma musica eletrônica de fundo. Levou as mãos formigando aos olhos, tentando espantar os pontos coloridos que insistiam em flutuar bem ali na sua frente. Levantou-se, calçou as pantufas e foi até a sala. Durante o curto percurso que tinha que fazer, pelo corredor que dava acesso ao outro cômodo da casa, visualizou de canto de olho o jornal do dia anterior esparramado pelo carpete manchado de cerveja barata. Consumira nada menos que quinze latinhas, algumas doses de vodka e dois copos de algo que ele nem sabia do que se tratava, mas cujo teor alcolico excedia 50%. Pensou que seriam suficientes para diminuir ou ao menos disfarçar a tristeza.
Angelo desviou o olhar, ao ver mais uma vez a foto do cadáver sobre o chão ensangüentado. A cabeça fora quase que completamente destruída, limitada a uma mistura pastosa de carne e ossos. Um globo ocular que resistira bravamente ao disparo erguia-se, fitando o céu, sem qualquer expressão significativa, há não ser o horror de um homem cuja mente perturbada passara a pregar peças. Um homem que provavelmente já se sentia morto, antes mesmo de puxar o gatilho. Sobre sua foto, em grandes letras garrafais, destacava-se a manchete da matéria que ocupava quase meia pagina: JOVEM PROMESSA DA LITERATURA FANTASTICA COMETE SUICIDIO. POLICIA DESCARTA POSSIBILIDADE DE ASSASSINATO.
Angelo apertou o passo, indo de encontro a sala onde Crazy Frog permanecia cantarolando, agora sua versão dance para “Gingle Bells”, procurando apagar de vez a lembrança do corpo do amigo parcialmente decaptado. Abaixou-se sobre o criado mudo e atendeu o telefone.
- Alô?
Nada.
- Alô?
Ruido de estática.
- Alô? – Repetiu, impaciente. Já estava prestes a apertar o botão vermelho no aparelho celular, quando ouviu a voz rouca e abafada do outro lado da linha.
- Não desligue! – Disse a voz masculina, assustadoramente familiar.
O relógio de parede marcava as 03:00 AM.