"Que meus rogos cheguem a tí..."
Annete desenrolou mais uma das velhas e amareladas folhas de papel que se encontravam na pequena cômoda do quarto, enquanto escrevia atentamente as ultimas palavras do seu diário pessoal, relatando todos os acontecimentos referentes aquela maldita noite, em que fora parar acidentalmente no casarão decrepto e escuro no alto da velha colina.
A medida em que escrevia apertava seus lábios ressecados pela ação do tempo, demonstrando em sua face toda a preocupação e a insegurança que sentia naquele lugar maldito. Revisou cuidadosamente cada palavra, antes de continuar e novamente sentiu sua espinha gelar ao relembrar os acontecimentos terríveis daquela noite.
“20 de novembro de 1788”
“Sai do condado de Nova guarda, exatamente a meia-noite, como meu marido havia me solicitado. Ao chegar na estalagem a carruagem se encontrava devidamente pronta para a viagem. O cocheiro fora extremamente simpático comigo e me tratara consideravelmente bem. Porem havia algo naquele homem que me inquietava e não me deixava nem um pouco a vontade. Trajava uma enorme túnica preta, amarrada a cintura por um grosso pedaço de barbante, muito parecida com as fotos de antigas São Francisco que minha mãe costumava guardar consigo do velho baú de viagem, o santo protetor da família. Seu rosto era apenas um borrão escuro com dois pequenos pontos brilhantes no lugar dos olhos inquietos.
Saímos a galope então, precisamente a meia-noite e vinte minutos, de uma Terça-feira do ano de 1788. A estrada – pelo que pude constatar – era dura e cheia de intempéries; buracos, fossas, valas, oscilações naturais - e muitas outras coisas que impossibilitavam o bom andamento da carruagem, por isso o cocheiro teve que ter cuidado redobrado em um ponto ou outro da estrada.
O interior da carruagem era muito confortável. Suas poltronas eram forradas de ceda tailandesa, recoberta por belos desenhos bordados de arranjos florais. Provavelmente um pequeno mimo por parte do cocheiro. Ao que parecia, residia mais do que pura e simples simpatia em seu jeito recatado e cavalheiresco. Na minha frente, pendurada por um pequeno fio de cobre, pendia uma imagem de nossa senhora auxiliadora, a protetora das causas perdidas. Tenho que admitir que o movimento desconcertante da imagem, oscilando incontrolavelmente de um lado para o outro, me deu certo conforto durante boa parte do percurso, uma sensação ligeiramente incontrolável de enjôo E foi exatamente neste meio tempo, entre os lapsos de tranqüilidade e nervosismo que tudo aconteceu.
Aconteceu muito rápido. A chuva veio logo, o que acabou deixando o cocheiro muito surpreso, porque ele mesmo me contara que tivera o cuidado de vasculhar atentamente o céu naquela noite, e não havia nenhum indicio de chuva. Rapidamente porem, a chuva se transformou numa tempestade, e a carruagem agora balançava freneticamente ao som dos cascos dos cavalos batendo contra o chão duro da estrada, derrapando noite a dentro pela lama que se formava no chão. De dentro da carruagem meu coração parecia querer saltar do próprio peito, enquanto eu via a pequena imagem de nossa senhora auxiliadora, balançar freneticamente em minha frente, denunciando o total descontrole que o cocheiro tinha da carruagem.
Lá fora o céu era iluminado apenas pelos relâmpagos e pelos grossos pingos de chuva que caiam, machucando o rosto agora sem capuz do cocheiro. Seu cabelo longo era jogado para trás pela força descomunal do vento e seus olhos eram a mais pura expressão de terror. Um relâmpago varou o horizonte, iluminando o trecho mal cuidado de estrada a nossa frente. Voltei-me novamente para dentro da carruagem, sentindo-a oscilar a medida em que atravessávamos os obstáculos naturais. Em certo ponto da estrada senti meu coração acelerar no ritmo dos cascos dos cavalos, e ao olhar de relance para fora da janela, percebi algo que me aterrorizou por completo. O cocheiro não estava mais lá e a carruagem agora partia desgovernada e acelerada para a ponte do velho penhasco que todos conheciam como “A garganta do diabo”.
A medida que a carruagem se aproximava da velha ponte, os cavalos se tornavam mais inquietos, até que em um determinado momento um dos cavalos tombou para a esquerda, soltando faíscas no chão, quando suas correias se soltaram e seus cascos foram de encontro aos pedregulhos próximos a extremidade do penhasco. Antes que a carruagem começasse a atravessar a velha ponte, ainda pude ver o corpo do cavalo ir de encontro as pedras pontiagudas do penhasco, sumindo escuridão abaixo. Apesar disso, o outro cavalo continuou, e adentrou a ponte, completamente desgovernado.
Suas patas batiam frenética e descontroladamente nas taboas cheias de mofo, rangendo, afogando-se sobre o mar de frestas que seguia pela trilha, balançando dolorosamente, rangendo na escuridão, acompanhada pelos trovões e relâmpagos da horrível tempestade. Dentro da carruagem eu ainda permanecia imóvel, como que paralisada pelo medo, até que senti um solavanco maior, e ao olhar novamente para fora da janela pude ver o corpo do outro cavalo, desvencilhando-se das cordas que o prendiam na carruagem, tombando ponte abaixo, indo de encontro ao abismo, relinchando como que pedindo socorro. Um socorro que jamais viria.
Graças a proteção de nossa senhora auxiliadora, permaneci todo o tempo dentro da carruagem. O céu sob minha cabeça parecia desabar, mas tentei, assim mesmo, manter a calma. Consegui, em partes, pois a travessia pela ponte fora extremamente difícil. Consegui realiza-la arrancando forças que eu nem sequer desconfiava que existiam dentro de mim. Me arrastei pelas taboas enlameadas e cobertas de musgo, atravessando sozinha, em meio a escuridão, o que restara da ponte da “garganta do diabo”. E, resumidamente falando, foi assim que cheguei até esse casarão.
Temo não permanecer aqui pôr muito tempo. O porque disso também devo relatar nas entrelinhas deste modesto diário. Desde que cheguei aqui sinto algo que me incomoda, assim como me incomodava em alguns momentos a presença do cocheiro. Sinto porem que é algo bem maior e assustador, algo que esta além da minha compreensão e que me deixa no estado em que me encontro. Nossa senhora auxiliadora... Me ajude, pois só tenho a você para me apegar agora. E que meus rogos cheguem a tí, no cair da noite...”
Ela fechou os olhos e sentiu um leve formigamento subir por sua perna ao relembrar aqueles horríveis momentos. Lá fora algo a observava atentamente. Algo que se encontrava além da escuridão, que se adensava a medida em que a noite avançada, e parecia não Ter fim. Algo que vinha acompanhado pelo barulho dos trovões e pelo clarão dos relâmpagos. Ela sabia de sua presença, ela sentia sua presença, seu coração sabia que ele estava lá.
Ajoelhou-se perante a imagem de nossa senhora auxiliadora e seu rosto foi iluminado pelo único ponto luminoso do quarto, uma vela já gasta, que soltava uma chama amarela, ligeiramente alaranjada na ponta, balançando de um lado para o outro, despejando grossos pingos de cera sobre a madeira da cômoda E começou a rezar...
“Pai-nosso, que estais no céu...
Santificado seja o vosso nome...”
Um barulho vindo dos fundos do casarão interrompeu sua oração, e ela sentiu os pingos de suor escorrendo pelo pescoço. Fechou os olhos e retomou a oração. A voz agora vinha trêmula e carregada por um medo preso em seu coração, que insistia em ser libertado.
O barulho aumentava a cada minuto, um ruido semelhante a passos aproximando-se sorrateiramente por trás dela. Gotas de suor brotavam do seu rosto, indo de encontro ao vestido vermelho de seda. Sentiu algo subindo-lhe as pernas, algo úmido, pegajoso e nojento. Expressivas lagrimas caiam dos seus olhos, misturando-se a gotas de suor. As mãos unidas pela oração tremiam freneticamente, enquanto a coisa permanecia subindo sobre suas pernas, enchendo seu coração de medo, um medo que rapidamente tornou-se pavor.
Praticamente não rezava, gritava o nome de todos os santos que conhecia. A coisa continuou subindo e ela continuou de olhos fechados, agora o corpo inteiro tremia convulsivamente, até que ela não agüentou mais e fez a única coisa que poderia ser feita naquele momento...
LEVANTOU E PISOU EM CIMA DA MALDITA BARATA, recolheu os papéis no chão, acendeu a luz e deixou o término do seu conto de terror para o próximo dia.
FIM