Triplo V - Vovó Virou Vampiro
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(Se não curte humor negro, nem comece...)
Quando penso na vovó, minhas lembranças vão até minha infância feliz. Vão até quando eu chegava da escola e um copo de Nescau e um pacote de biscoito passatempo me esperava aberto, próximo à televisão. Era delicioso! Passava a tarde toda assistindo desenhos que ela alugava na locadora de vídeo e comendo doces. Talvez por isso hoje eu pese quase cento e trinta quilos.
Há coisas estranhas acontecendo no Brasil. Todo mundo deve ter ouvido falar da epidemia que quase dizimou os cariocas. Não? Bem eu moro em Minas Gerais, mas no rádio e na televisão, há pelo menos dois anos, eles mostraram ao mundo uma epidemia de zumbis carecas que infectou dezenas de cariocas e alguns paulistas. Tudo acabou quase bem, afinal, até hoje há pessoas infectadas sendo caçadas. Parece que uma pílula danada de forte contra a carequice foi o que começou essa crise.
Mas, quando você acha que já viu de tudo, é aí que aparecem mais coisas bizarrentas. Como eu disse, sou uma mulher da pesada. Tenho um metro e oitenta e dois, e peso cento e vinte e nove quilos. Peso este acumulado desde minha infância e os biscoitos Passatempo.
Minha avó me chamava de Nina, meu nome é Karina. Ela era a típica vovó. Cabelo branco cacheado e curto, óculos na ponta do nariz, vivia tricotando casacos para meu avô, meus pais e eu. Nas horas vagas, fazia o que sabia fazer de melhor: comida!
Morávamos em uma fazenda enorme. Nunca soube quanto media ao todo, mas era grande. Tanto que quase chegava na cidade mais próxima, aonde íamos para comprar coisas, alugar filmes ou simplesmente passear. Meu pai era fazendeiro, minha mãe o conheceu em um congresso de leite. Dizem eles que passaram a lua de mel numa banheira de iogurte, mas sei lá, eles as vezes inventavam histórias duras de se acreditar. Ao contrário de mim, todos eram magros. Mas muito magros mesmo. Nossa família era conhecida como a Família Vara-pau. E, alguns maldosos da cidade, diziam que eu sugava a saúde e gordura deles. Por isso eu era gigante e eles magricelas.
Eu nunca me senti mal com meu peso. Adorava comer mesmo. Adorava mastigar. Meus pais diziam que era ansiedade. Eu não sou ansiosa. E se fosse qual o problema? Tenho vinte e três anos, estou na idade das complicações, uai! Nunca me preocupei em casar. Tive meus namorados na infância. Já havia conhecido o sexo aos quinze. Pelo menos não morreria virgem. Dizia uma lenda aqui da cidade de Moaatinga, que as moças virgens eram atacadas pelo Lobisomem. Eu nunca acreditei em lobisomens, nem assombrações e nem em...Vampiros. Estes últimos, bem , eu tive que rever os meus conceitos.
E foi minha avó, outra vez, que me mostrou um mundo diferente do que eu imaginava.
Certa noite de natal, meu tio do Rio de Janeiro veio para a fazenda. Chegou tarde, eram onze e meia da noite do dia vinte e quatro. Vovó havia preparado a maior ceia de natal que eu já havia visto. Sô! Como tinha comida naquela mesa. Tinha leitão, tinha tutu,tinha pão de queijo com recheio de doce-de-leite, tinha manjá, tinha purê de batata,tinha frango frito, mas tinha até feijoada que nem comida natalina era! Se eu for contar aqui o tanto de comida que vovó fez naquele dia, mas eu não terminaria nunca!
Meu tio Bento veio do Rio com sua nova esposa. Uma ruiva muito da metida, que usava uns cordões esquisitos demais da conta. Tinha umas bolas vermelhas, assim como o cabelo dela. O nome dela era Camilla. Com dois “eles” mesmo. E a danada era muito bonita. Tio Bento vivia trocando de mulher. Acho que essa ruiva metida a besta era a quinta em dois anos. Mas o danado era bonito também. Ah se era! Ainda é. Mas faz tempo que não vejo ele.
De modo que todo mundo estava só esperando dar meia noite para atacar o banquete. Vovó reparou que faltava leite na mesa. Meu vô, Otaviano, só gostava de comer comida com leite. Eu tinha esta mania mais ele. Só que, ao invés de eu comer com um copo de leite do lado. Eu comia era com um copão de refrigerante gelado e com uma penca de pedras de gelo. Ê trem bom! Ê delícia! Eu podia morrer que estava feliz com meu copo de, seja qual refrigerante,(menos refrigereco), que eu estava era feliz!
Aí vovó inventou de ir buscar leite lá fora. O engraçado foi que ninguém se ofereceu para levantar e ir ajudá-la. Nem vovô, nem meu pai. Eu fui a única que senti pena dela. Vovó adorava agradar as pessoas. Se tinha uma velhinha que eu queria ser quando velha, era a vovó. Ela se divertia só de ver as caras dos caras que comiam sua comida. Era a gratificação por seu trabalho bem feito e carinhoso.
Eu então, com muita preguiça e dificuldade, fui mais ela até o curral, pegar leite das vacas. Difícil foi ver alguma vaca acordada uma hora daquelas. Vovó foi na frente. Suas perninhas magras, já cheia de veias roxas, caminhavam como se flutuassem. Ela parou e esperou. Me aproximei dela muito ofegante.
-Namorada de seu tio Bento é bonita né? Ruiva, tem uns “peitão”!
-Era mais fácil pedir leite pra ela, vó. Ali deve ter muito. Era só ela descer aquela peitcholas no copo do vovô e tudo pronto!- falei eu, sempre fazendo a velha sorrir.
-Que nada, Nina! Seu vô num ia agüentar ver aqueles peitchucos não. Ia não! O velho num guenta nem ver os meus que já estão lá no subsolo.
Eu sorri.
-Ah vó, você ta é linda demais. Tem sessenta e três anos e nem parece.-elogiei ela, mas na verdade dona Teresinha já era marcada pelo tempo.
A infância da vovó foi muito sofrida. Ela apanhou muito de sua madrasta. Meu bisavô era um homem com muito dinheiro, mas frouxo que só ele. Nossa família tinha pra mais de oito fazendas em toda Minas Gerais. De Lavras à Ouro Preto. Mas foi perdendo tudo por causa da vaca da madrasta da vovó. Cansada de apanhar, aos quinze anos a jovem Teresinha Vitória Valadares Venâncio foi pra Belo Horizonte tentar a vida. E lá ela se fez. Conheceu vovô, deu a luz ao papai e voltaram para o campo. Vovó nunca mais soube de seu pai. Até que ele morreu e uma das fazendas, justamente a maior ficou pra ela. O danado ainda deixou uma carta dizendo que sentia muito e que nunca esqueceu dela. Muito bonito. Vovó venceu na vida. Mas a vida reservava algo pra ela, que eu nunca tinha visto nessa antes.
A gente foi chegando perto do celeiro. De repente, uma luz muito da brilhante apareceu no céu. Parecia uma daquelas estrelas que caem lá do céu, e a gente tem que fazer um pedido. Vovó sorriu. Estava maravilhada. A luz, por mais estranho que pareça, foi se aproximando e ficando cada vez maior. E se aproximava mais rápida que Guloso, nosso touro que quando ficava no cio corria atrás das pobres das vacas com toda velocidade.
Num era muito boa de matemática não, mas pelos meus cálculos aquela luz estava era vindo pra cima de nós. Tentei puxar vovó e ela não se mexia. Parecia enfeitiçada. Seus olhos brilhavam junto com a estrelada decadente. Ou cadente? Enfim, cês entenderam, sô! Juntos com a estrela “cainte”.
Um chiado estranho também começou a aparecer. Igual quando o pica-pau caía de um lugar muito alto. Aí fazia aquele barulhinho engraçado demais da conta. O tal “fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.....tum!”
Só que a estrela “cainte” ainda estava no fiiii.
Tentei outra vez puxar a vovó pelo braço esquerdo. Mas com um raio, ela foi atingida por alguma coisa muito pesada. Mas tão pesada que até fez um tremendo de um buraco no chão. Quando fui levar minha mão até a cabeça, aí que me assustei e até cheguei a me benzer. Na minha mãe eu segurava a mão da vovó! Isso mesmo! O braço da véia num tinha sido arrancado pela estrela? Mas como eu corri! Soltei o braço sem corpo e comecei a correr de volta para casa.
Antes, para não fazer desfeita, passei no celeiro e peguei um pouco de leite pro vovô. Aquele véio mal humorado, se visse que voltei sem mais o leite dele que eu fui panhar, iria resmungar o natal todo e nem o menino Jesus ia querer comemorar seu niver.
Feito isso, corri para casa desesperada.
Entrei pela cozinha gritando mais que Gato cruzando. Todo mundo parou para me olhar. Com uns olhões esbugalhados. Meu pai veio pra perto de mim.
-O que aconteceu?-perguntou ele segurando minha cabeça pelas orelhas.
-Ela deve estar enfartando! Tá muito gorda! –disse meu tio Bento que se achava o gostosão do Brasil.
Eu fiz um sinal pra ele com o dedo do meio.
De tão nervosa que eu estava, não conseguia falar. Ainda estava com aquela mão sem corpo no meio das minhas idéias. Parecia cena de filme de terror. Já tinha visto um trem assim num filme de lobisomem.
-O que aconteceu, Nina! Desembucha, menina!
Meu pai insistia para eu falar, mas eu não conseguia. Aposto que ele também não conseguiria...minha avó dizia que seu filho tinha herdado a frouxura de seu avô. Eu sempre ria quando ela falava disso. Logo papai, metido a xerife das fazendas. Êta mundinho irônico este!
Respirei o mais fundo que podia e soltei a frase.
-Uma estrela...atingiu...a vovó!
Ficou foi um silêncio danado na sala. Mas aí, depois de uns segundinhos de nada, todo mundo começou foi a rir de mim. Mas todo mundo mesmo. Eu desviei meus olhos pro Selvagem, o cão que meu vô cuidava, e o canino parecia rir de mim também!
-Cês não escutaram o barulho não? Fez um buraco do tamanho da sem-vergonhice do tio Bento bem lá no meio do pasto! Se não tão levando fé em mim, porque não alevantam essas bundas daí da mesa e vão lá ver?-perguntei já melhor da falta de ar, mas danada com eles.
-Menina olha esse palavreado!-disse meu pai tentando aparecer pras visitas.- Não é “alevatam” que se diz. É suspendam-se.essa menina parece que esqueceu tudo que aprendeu na escola.
Eu odiava a escola. Eu era a preferida dos meninos e meninas que adoravam tirar sarro de mim. Era de ficar embasbacada como todo dia eles tinham uma musiquinha nova sobre minha fofa pessoa. A mais irritante era a famosa “Gorda, baleia, saco de areia!”
Na escola eu ligava por ser gordinha. Mas como eu já disse, hoje tô nem aí. Sou gorda mesmo. Mas pelo menos vivo bem e feliz. Enquanto esses que riam de mim tão dando um duro danado para ser firmarem lá em BH.
Mas então, ninguém acreditou em mim. Só foram acreditar mesmo, quando escutaram um grito vindo lá de fora. Todos correram. Provavelmente era a vovó dando falta do braço dela. Pensei que ela ia ficar muito fula, pois com somente só um braço,pensem comigo, como ela iria poder tricotar, diacho?
Vovô ficou sentado na mesa. Alisou sua careca e olhou para o relógio preso na parede. Era um relógio antigo em formato de galo. Diz ele que ganhou de um barão que tinha muitas terras ali na época do café. Esse barão foi embora sem mais nem menos. Sumiu como se tivesse evaporado. Escafedeu-se sem deixar uma marca de pegada pelas terras mineiras de Moaatinga. Vovô disse que ele fugiu. Tinha medo pois suas terras eram terras amaldiçoadas. Aquelas historinhas do arco-da-velha que nossos vôs contam para que as crianças não se arredem até aonde os olhos deles possam vê-las.
Corri para fora de casa e lá estavam eles. Todos em volta do buraco.
-A gordinha estava certa!-disse tio Bento abraçando sua ruiva peituda.
A ruiva se chegou um pouco pra frente para ver o buracão que tinha lá no pasto. Pensei em empurrá-la, mas tio ia ficar muito chateado. Eu ia acabar com o fornecimento de leite dele. Não se pode acabar com o fornecimento de leite de um homem.
-Mas está muito fundo! E cheio de fumaça! Será que dona Teresinha está aí dentro?-perguntou Camilla virando-se para meu pai que só se pegou olhando para as duas montanhas à sua frente por que mamãe o encarava muito da enfezada.
Todo mundo chegou para perto do buraco e se esticaram para frente. Estava frio. E provavelmente já havia passado da meia noite. A lua estava muito amarela e eu com muita fome. Mas estava preocupada com a vovó.
-Engraçado é que ela perdeu um dos braços. E eu deixei aqui do lado! Mas o danado sumiu!
Todos se viraram para mim.
-Filha, cê já está pegando pesado.- falou a mamãe me abraçando contra seu vestido florido que a vovó tinha feito duas noites antes.
De repente, ouvimos umas risadas assustadoras. O chão começou a tremer. E o mais assustador foi que pedras começaram a pular de dentro do buraco, mas igual pipoca que pula pra fora da panela. A gente deu no pé. Começamos a correr. E eu, cansada, já não agüentava mais correr. Parei e olhei para trás. De repente, algo saiu de dentro do buraco e ficou parada no ar, sem chão para pisar.
Era a vovó!
Ela dava gargalhada de bruxa. Sorria como se alguém tivesse contado uma piada danada de engraçada. Nunca entendi esse bom humor nas bruxas. São feias, sempre perdem a briga, sempre têm inveja das princesas, mas vivem rindo. Queria ser positiva assim sabia?
Todos pararam quando eu disse que era a vovó. Viraram-se desconfiados. Mas viram que eu estava certa. No alto do céu, planando como bem-te-vi. Vovó flutuava de braços abertos. E até com o braço que tinha saltado fora. Com certeza, esse natal ia ser diferente.
Papai correu até o buraco, colocou as mãos nas “cadeiras” e disse muito irritado:
-Mamãe, desça já daí,viu?Veja se é possível?Uma senhora da sua idade, inventando de “avoar” uma hora dessas, nessa friagem e na noite de natal!
A boca da vovó abriu mais do que o normal, e de lá, saiu foi uma ventania daquelas! Papai foi varejado longe, do outro lado da casa. Passou por cima até do curral, caindo em cima de um monte de feno do cavalo Caniço. A dentadura da vovó também saiu de sua boca, e ficou voando pelo pasto, até voltar de novo para a matraca.
A velha começou a se aproximar do chão. Uma ventania começou no pasto. Era folha e palha voando de tudo para quanto é lado. Tive até a impressão de ter visto uma vaca passando voando por perto, mas até hoje não sei se era de verdade.
Ela colocou os pés no chão e começou a andar na nossa direção. Conforme ela se aproximava, a gente podia ver o rosto saindo da nuvem de poeira levantada pela ventania. E ficamos embasbacados ao ver como a velhinha estava mudada. Estava mais nova, mais bonita e com uma tonelada de maquiagem preta nos olhos, na cara e na boca! Era tipo aquelas roqueiras malucas da televisão!
Dona Teresinha andava que parecia que estava desfilando. Suave e sensual. Vovô ficaria doido de vê ela daquele jeito, mas estava lá dentro comendo igual a um porco.
-Olá, minha netinha!- falou ela sorrindo e mostrando seus dentes mais brancos que pedra de mármore.
Vovó alisou meu queixo como sempre fazia. Todo mundo olhava para ela de boca aberta. Foi então que a dodinha da ruiva peituda, achando que o buraco havia transformado a vovó numa mulher mais bonita, resolveu pular no buraco como se fosse piscina. A tadinha bateu com a testa em uma pedra pontuda que parecia a aguardar lá no fundo. Mas jorrou foi sangue para tudo quanto é canto. E foi a primeira vez que eu vi um cérebro ao vivo. Morreu nova, nova a coitada. Titio nem ligou. Estava todo mundo curioso demais para saber como vovó havia ficado daquele jeito.
Papai se aproximou dela e a apalpou. Queria ver se estava tudo bem.
-Mamãe a senhora está bem? Não quebrou nenhum osso?
Ela sorriu. Seus dentes estavam esquisitos. Mais pontudos do que o normal.
-Claro que estou, meu filho. Nunca estive melhor! Tenho até uma tatuagem.
De repente os cabelos brancos da vovó ficaram negros e lisos. Parecia até que tinha feito aquela tal da escova progressiva. E ela os levantou perto da nuca. Lá, escondido, tinha uma tatuagem aonde a gente via três letras “V”. Ninguém entendeu. Quando ela sorriu, eu pensei com os botões de minha calcinha GG: “Será o sobrenome dela Vitória Valadares Venâncio?” tanto que até deixei escapar esse pensamento. Mas foi tão baixinho, tão baixinho, que cheguei me arrepiar toda quando a vovó disse que eu estava errada.
Os três “V” na verdade, significavam:
-Vovó Virou Vampiro!-disse ela sorrindo e mostrando os olhos vermelhos e os dentes afiados.
Todos nós corremos para dentro de casa. Eu não agüentava mais correr. Sou pesada!
As gargalhadas eram escutadas lá de dentro. Pela janela eu assisti vovó voando igual a pipa. Ia lá em cima e depois passava perto do chão. O meu medo se misturava com uma certa inveja. Sempre quis saber como era voar. Vovó já parecia leve quando viva, ou sei lá, quando gente gente mesmo. Agora que ela dizia ter virado uma vampira, parecia ainda mais leve.
-Ela não pode entrar!- disse tio Bento.-Vampiros só entram em casa quando convidados.
Vovô se levantou muito fulo da mesa, e terminando de engolir um pedaço de frango frito, se aproximou da janela.
-Teresinha! Desce já daí e bem servir meu leite! –gritou ele, fazendo enormes pedaços de comida baterem contra o vidro da janela.
De repente, vovó apareceu atrás de nós como se fosse mágica.
Sem colocar os pés no chão, ela se aproximou do vovô e o segurou pela goela. Levantou o velho acima de cabeça dela mesma, e depois, o jogou contra a porta do quarto deles.
-Essa noite não tem natal! Vovó vai brincar de papai e mamãe com o vovô!-disse sorrindo e voando para dentro do quarto.
Antes da porta se fechar sem que ninguém arredasse a mão nela, eu consegui ver os olhos do vovô, assustado demais com a vovó.
Naquela noite, os gritos eram assustadores. A casa toda tremia. Ninguém conseguiu pregar os olhos. Acho que vovô nunca teve uma noite como aquela.
Pela manhã, todo mundo conversava.
-Precisamos fazer alguma coisa. Ela virou uma vampira! Num vai demorar para ela chupar nosso sangue todo!-disse papai, que naquela noite, passara sentado na privada.
-Não vou enfiar uma estaca no peito dela, e muito menos queimar com alho. Ela é minha mãe!-disse tio Bento.
Mamãe se aproximou da porta do quarto. Parecia ter ouvido o chão rangendo.
Foi então que vovô saiu do quarto, completamente pálido e sem forças. Caiu ajoelhado, e por fim, desmaiou com um enorme sorriso no rosto.
Entramos no quarto e lá estava vovó. Deitada como um defunto, com mão cruzada e tudo. Nos aproximamos com um cagaço só.
-Ela está linda! Nunca vi minha mãe tão maquiada assim! Será que virou puta?-perguntou papai sempre dando provas de que era mais jegue que um jegue.
-Ela virou vampiro, demência! Vai dormir o dia inteiro e só vai acordar lá pra de noite. Precisamos pensar no que fazer. Ela pode nos matar e fazer nós todos virar vampiro mais ela! Não quero ficar bebendo sangue dos outros não, gente!-disse mamãe.
Eu me aproximei.
-Vocês estão esquecendo. Vovó sempre foi um doce. Se fosse para nos atacar, ela já teria atacado. Ela foi infectada por algo que caiu sobre ela, e virou essa vampira das estrelas. Não acho que ela vai fazer mal pra gente.
Todo mundo ficou calado.
Sabiam que eu estava certa. Vovó continuava sendo a vovó. Saímos do quarto,e parece que só eu é que tinha bisolhado no teto, um monte de dentadura, todas com aqueles dentinhos cheio de pontas fininhas,fininhas, sobrevoando a cama dela, como se fossem aqueles cachorrinhos que toma conta das coisas.
Enfim, de todo modo vovó acordou de noite com uma fome danada. Falou de como se sentia, e que não queria beber sangue humano. De uns tempos para cá, as vacas e os bichos de toda Minas Gerais foram sumindo ou aparecendo sem um pingo de sangue na carcaça. O lado bom de se morar no interior, é que o povo tem uma facilidade danada de inventar lendas, e logo começaram os zuns-zuns-zuns de que havia um chupa-cabras no estado.
Deu televisão, deu rádio, deu até gringo em Moaatinga. Vovó deu entrevista e tudo pros estrangeiros. Fiquei foi orgulhosa demais da conta.
De noite, vovó me levava para voar. Íamos por cima das nuvens. Era engraçado saber que mesmo infectada por sei lá o que das estrelas, ela continuava sendo a minha avó. A vó boazinha de sempre. Acho que a bondade das avós é tipo instinto. Sabe instinto? Dizem que se você joga um tigre na água ela começa a nadar mesmo sem nunca ter nadado. Vovó tinha o instinto da bondade. Talvez por isso a velhinha não tenha comido pescoço de gente por aí. Até então...
Quem sofria mais eram as vaquinhas que aos poucos foram sumindo, e o vovô que, além de ficar sem leite nas refeições, logo seu leitinho que ele adorava tanto, ainda virou foi uma espécie de escravo sexual da vovó. Toda noite o velho tinha que comparecer, e pela manhã, toma-lhe gemada!
Só via vovó pela noite. Ela acordava, tomava banho em sangue de galinha e por fim saía voando para jantar. Às vezes só voltava quando o sol raiava. Eu ficava na janela só assistindo. Teve até uma vez que faltou vaca e ela viajou para Índia, só para comer as vacas sagradas. E olha que nem pagou avião. Foi voando por ela mesmo.
Ela era um vampiro diferente. Nada de virar morcego, nada de dormir em caixões. Vovó era um vampiro das estrelas. E nossa família aprendeu a aceitá-la. Papai estranhava quando ela chegava com roupas cada vez menores, e às vezes, com um boi inteiro nas costas para nosso almoço do dia seguinte.
Mas teve um dia que ela decidiu partir. Disse que precisava viajar por aí, e finalmente beber sangue de gente. Estava fraca e sua fome aumentava cada vez mais. Eu a abracei forte. Voamos por toda Minas Gerais. Fomos até a fronteira com o Rio de Janeiro. Me levou até um ponto em que pude ver o Cristo Redentor. Era lindo. O sol nascendo e o Cristo À frente. Em pensar que aquela cidade quase havia sumido por conta de uma epidemia que transformou pessoas que não queria ser carecas, em zumbis.
Vovó me levantou até o mais alto.
-Nunca tenha vergonha de quem você é, Nina. Sei que estou estranha e que virei um monstro dos livros. Mas nunca estive tão feliz. Nunca me senti tão aceita e tão independente.- disse ela girando comigo no ar.
No dia seguinte, ela já não estava mais na fazenda. Nunca soubemos o que transformou a vovó em vampiro com certeza plena pleníssima. A gente sabia que tinha sido a estrela “cainte”, mas não o quê. Já vi filmes que vem ET e transforma gente humana em gente de marte. Até o homem-aranha já virou um homem aranha muito do estranho, depois que encostou num negócio preto que dá nojo! No buracão que a estrela fez, papai fez foi uma piscina das grandes. O pessoal tudo vinha tomar banho mais a gente nos feriadões e nos sábados.
Vovó, como eu havia “dizido” antes, me mostrou uma nova maneira de ver o mundo. E se tornou ainda mais especial. Hoje me lembro dela não só me servindo biscoitos Passatempo quando eu chegava da escola. Ou fazendo diversos casacos perfeitos para meu tamanho imenso. Hoje vovó Teresinha é minha “herói”. E quem é mais que pode se gabar de ter tido uma vovó vampira? Que ao invés de querer matar a gente (exceto pelo vovô, que acabou enfartando na transa de despedida), iria era me mostrar e ensinar que somos o que somos, e ninguém tem nada haver com isso.
Quando eu ligava para meus quilos a mais, eu sempre queria ser um passarinho,sabe? Sempre quis voar, me sentir leve. Não sentir dor no baço quando corria,ou até mesmo o ar faltando. Mas vi que não é preciso voar para ser leve. É só preciso se sentir. É tudo. Isso já basta!
Ninguém nunca soube da história da dona Teresinha. Ninguém conheceu a história dela. E muito menos de que vampiros podem sim existir. Mas não ligo. O que importa é que vovó continuou sendo a vovó. Mesmo sendo vampira.
Carrego na minha nuca uma tatuagem de um triplo V igual ao dela. Para o caso dela voltar um dia. E para a gente pode voar por aí, vendo como o mundo é insignificante lá de cima, e com a certeza de que tudo é possível.
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FIM
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OBS: Se gostaram desse conto e querem saber mais sobre a invasão de zumbis carecas no Rio de Janeiro, não deixem de ler "OS ZUMBIS SÃO OS CARECAS" :
www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/1677177
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Muito obrigado e comentem por favor!
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(Se não curte humor negro, nem comece...)
Quando penso na vovó, minhas lembranças vão até minha infância feliz. Vão até quando eu chegava da escola e um copo de Nescau e um pacote de biscoito passatempo me esperava aberto, próximo à televisão. Era delicioso! Passava a tarde toda assistindo desenhos que ela alugava na locadora de vídeo e comendo doces. Talvez por isso hoje eu pese quase cento e trinta quilos.
Há coisas estranhas acontecendo no Brasil. Todo mundo deve ter ouvido falar da epidemia que quase dizimou os cariocas. Não? Bem eu moro em Minas Gerais, mas no rádio e na televisão, há pelo menos dois anos, eles mostraram ao mundo uma epidemia de zumbis carecas que infectou dezenas de cariocas e alguns paulistas. Tudo acabou quase bem, afinal, até hoje há pessoas infectadas sendo caçadas. Parece que uma pílula danada de forte contra a carequice foi o que começou essa crise.
Mas, quando você acha que já viu de tudo, é aí que aparecem mais coisas bizarrentas. Como eu disse, sou uma mulher da pesada. Tenho um metro e oitenta e dois, e peso cento e vinte e nove quilos. Peso este acumulado desde minha infância e os biscoitos Passatempo.
Minha avó me chamava de Nina, meu nome é Karina. Ela era a típica vovó. Cabelo branco cacheado e curto, óculos na ponta do nariz, vivia tricotando casacos para meu avô, meus pais e eu. Nas horas vagas, fazia o que sabia fazer de melhor: comida!
Morávamos em uma fazenda enorme. Nunca soube quanto media ao todo, mas era grande. Tanto que quase chegava na cidade mais próxima, aonde íamos para comprar coisas, alugar filmes ou simplesmente passear. Meu pai era fazendeiro, minha mãe o conheceu em um congresso de leite. Dizem eles que passaram a lua de mel numa banheira de iogurte, mas sei lá, eles as vezes inventavam histórias duras de se acreditar. Ao contrário de mim, todos eram magros. Mas muito magros mesmo. Nossa família era conhecida como a Família Vara-pau. E, alguns maldosos da cidade, diziam que eu sugava a saúde e gordura deles. Por isso eu era gigante e eles magricelas.
Eu nunca me senti mal com meu peso. Adorava comer mesmo. Adorava mastigar. Meus pais diziam que era ansiedade. Eu não sou ansiosa. E se fosse qual o problema? Tenho vinte e três anos, estou na idade das complicações, uai! Nunca me preocupei em casar. Tive meus namorados na infância. Já havia conhecido o sexo aos quinze. Pelo menos não morreria virgem. Dizia uma lenda aqui da cidade de Moaatinga, que as moças virgens eram atacadas pelo Lobisomem. Eu nunca acreditei em lobisomens, nem assombrações e nem em...Vampiros. Estes últimos, bem , eu tive que rever os meus conceitos.
E foi minha avó, outra vez, que me mostrou um mundo diferente do que eu imaginava.
Certa noite de natal, meu tio do Rio de Janeiro veio para a fazenda. Chegou tarde, eram onze e meia da noite do dia vinte e quatro. Vovó havia preparado a maior ceia de natal que eu já havia visto. Sô! Como tinha comida naquela mesa. Tinha leitão, tinha tutu,tinha pão de queijo com recheio de doce-de-leite, tinha manjá, tinha purê de batata,tinha frango frito, mas tinha até feijoada que nem comida natalina era! Se eu for contar aqui o tanto de comida que vovó fez naquele dia, mas eu não terminaria nunca!
Meu tio Bento veio do Rio com sua nova esposa. Uma ruiva muito da metida, que usava uns cordões esquisitos demais da conta. Tinha umas bolas vermelhas, assim como o cabelo dela. O nome dela era Camilla. Com dois “eles” mesmo. E a danada era muito bonita. Tio Bento vivia trocando de mulher. Acho que essa ruiva metida a besta era a quinta em dois anos. Mas o danado era bonito também. Ah se era! Ainda é. Mas faz tempo que não vejo ele.
De modo que todo mundo estava só esperando dar meia noite para atacar o banquete. Vovó reparou que faltava leite na mesa. Meu vô, Otaviano, só gostava de comer comida com leite. Eu tinha esta mania mais ele. Só que, ao invés de eu comer com um copo de leite do lado. Eu comia era com um copão de refrigerante gelado e com uma penca de pedras de gelo. Ê trem bom! Ê delícia! Eu podia morrer que estava feliz com meu copo de, seja qual refrigerante,(menos refrigereco), que eu estava era feliz!
Aí vovó inventou de ir buscar leite lá fora. O engraçado foi que ninguém se ofereceu para levantar e ir ajudá-la. Nem vovô, nem meu pai. Eu fui a única que senti pena dela. Vovó adorava agradar as pessoas. Se tinha uma velhinha que eu queria ser quando velha, era a vovó. Ela se divertia só de ver as caras dos caras que comiam sua comida. Era a gratificação por seu trabalho bem feito e carinhoso.
Eu então, com muita preguiça e dificuldade, fui mais ela até o curral, pegar leite das vacas. Difícil foi ver alguma vaca acordada uma hora daquelas. Vovó foi na frente. Suas perninhas magras, já cheia de veias roxas, caminhavam como se flutuassem. Ela parou e esperou. Me aproximei dela muito ofegante.
-Namorada de seu tio Bento é bonita né? Ruiva, tem uns “peitão”!
-Era mais fácil pedir leite pra ela, vó. Ali deve ter muito. Era só ela descer aquela peitcholas no copo do vovô e tudo pronto!- falei eu, sempre fazendo a velha sorrir.
-Que nada, Nina! Seu vô num ia agüentar ver aqueles peitchucos não. Ia não! O velho num guenta nem ver os meus que já estão lá no subsolo.
Eu sorri.
-Ah vó, você ta é linda demais. Tem sessenta e três anos e nem parece.-elogiei ela, mas na verdade dona Teresinha já era marcada pelo tempo.
A infância da vovó foi muito sofrida. Ela apanhou muito de sua madrasta. Meu bisavô era um homem com muito dinheiro, mas frouxo que só ele. Nossa família tinha pra mais de oito fazendas em toda Minas Gerais. De Lavras à Ouro Preto. Mas foi perdendo tudo por causa da vaca da madrasta da vovó. Cansada de apanhar, aos quinze anos a jovem Teresinha Vitória Valadares Venâncio foi pra Belo Horizonte tentar a vida. E lá ela se fez. Conheceu vovô, deu a luz ao papai e voltaram para o campo. Vovó nunca mais soube de seu pai. Até que ele morreu e uma das fazendas, justamente a maior ficou pra ela. O danado ainda deixou uma carta dizendo que sentia muito e que nunca esqueceu dela. Muito bonito. Vovó venceu na vida. Mas a vida reservava algo pra ela, que eu nunca tinha visto nessa antes.
A gente foi chegando perto do celeiro. De repente, uma luz muito da brilhante apareceu no céu. Parecia uma daquelas estrelas que caem lá do céu, e a gente tem que fazer um pedido. Vovó sorriu. Estava maravilhada. A luz, por mais estranho que pareça, foi se aproximando e ficando cada vez maior. E se aproximava mais rápida que Guloso, nosso touro que quando ficava no cio corria atrás das pobres das vacas com toda velocidade.
Num era muito boa de matemática não, mas pelos meus cálculos aquela luz estava era vindo pra cima de nós. Tentei puxar vovó e ela não se mexia. Parecia enfeitiçada. Seus olhos brilhavam junto com a estrelada decadente. Ou cadente? Enfim, cês entenderam, sô! Juntos com a estrela “cainte”.
Um chiado estranho também começou a aparecer. Igual quando o pica-pau caía de um lugar muito alto. Aí fazia aquele barulhinho engraçado demais da conta. O tal “fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.....tum!”
Só que a estrela “cainte” ainda estava no fiiii.
Tentei outra vez puxar a vovó pelo braço esquerdo. Mas com um raio, ela foi atingida por alguma coisa muito pesada. Mas tão pesada que até fez um tremendo de um buraco no chão. Quando fui levar minha mão até a cabeça, aí que me assustei e até cheguei a me benzer. Na minha mãe eu segurava a mão da vovó! Isso mesmo! O braço da véia num tinha sido arrancado pela estrela? Mas como eu corri! Soltei o braço sem corpo e comecei a correr de volta para casa.
Antes, para não fazer desfeita, passei no celeiro e peguei um pouco de leite pro vovô. Aquele véio mal humorado, se visse que voltei sem mais o leite dele que eu fui panhar, iria resmungar o natal todo e nem o menino Jesus ia querer comemorar seu niver.
Feito isso, corri para casa desesperada.
Entrei pela cozinha gritando mais que Gato cruzando. Todo mundo parou para me olhar. Com uns olhões esbugalhados. Meu pai veio pra perto de mim.
-O que aconteceu?-perguntou ele segurando minha cabeça pelas orelhas.
-Ela deve estar enfartando! Tá muito gorda! –disse meu tio Bento que se achava o gostosão do Brasil.
Eu fiz um sinal pra ele com o dedo do meio.
De tão nervosa que eu estava, não conseguia falar. Ainda estava com aquela mão sem corpo no meio das minhas idéias. Parecia cena de filme de terror. Já tinha visto um trem assim num filme de lobisomem.
-O que aconteceu, Nina! Desembucha, menina!
Meu pai insistia para eu falar, mas eu não conseguia. Aposto que ele também não conseguiria...minha avó dizia que seu filho tinha herdado a frouxura de seu avô. Eu sempre ria quando ela falava disso. Logo papai, metido a xerife das fazendas. Êta mundinho irônico este!
Respirei o mais fundo que podia e soltei a frase.
-Uma estrela...atingiu...a vovó!
Ficou foi um silêncio danado na sala. Mas aí, depois de uns segundinhos de nada, todo mundo começou foi a rir de mim. Mas todo mundo mesmo. Eu desviei meus olhos pro Selvagem, o cão que meu vô cuidava, e o canino parecia rir de mim também!
-Cês não escutaram o barulho não? Fez um buraco do tamanho da sem-vergonhice do tio Bento bem lá no meio do pasto! Se não tão levando fé em mim, porque não alevantam essas bundas daí da mesa e vão lá ver?-perguntei já melhor da falta de ar, mas danada com eles.
-Menina olha esse palavreado!-disse meu pai tentando aparecer pras visitas.- Não é “alevatam” que se diz. É suspendam-se.essa menina parece que esqueceu tudo que aprendeu na escola.
Eu odiava a escola. Eu era a preferida dos meninos e meninas que adoravam tirar sarro de mim. Era de ficar embasbacada como todo dia eles tinham uma musiquinha nova sobre minha fofa pessoa. A mais irritante era a famosa “Gorda, baleia, saco de areia!”
Na escola eu ligava por ser gordinha. Mas como eu já disse, hoje tô nem aí. Sou gorda mesmo. Mas pelo menos vivo bem e feliz. Enquanto esses que riam de mim tão dando um duro danado para ser firmarem lá em BH.
Mas então, ninguém acreditou em mim. Só foram acreditar mesmo, quando escutaram um grito vindo lá de fora. Todos correram. Provavelmente era a vovó dando falta do braço dela. Pensei que ela ia ficar muito fula, pois com somente só um braço,pensem comigo, como ela iria poder tricotar, diacho?
Vovô ficou sentado na mesa. Alisou sua careca e olhou para o relógio preso na parede. Era um relógio antigo em formato de galo. Diz ele que ganhou de um barão que tinha muitas terras ali na época do café. Esse barão foi embora sem mais nem menos. Sumiu como se tivesse evaporado. Escafedeu-se sem deixar uma marca de pegada pelas terras mineiras de Moaatinga. Vovô disse que ele fugiu. Tinha medo pois suas terras eram terras amaldiçoadas. Aquelas historinhas do arco-da-velha que nossos vôs contam para que as crianças não se arredem até aonde os olhos deles possam vê-las.
Corri para fora de casa e lá estavam eles. Todos em volta do buraco.
-A gordinha estava certa!-disse tio Bento abraçando sua ruiva peituda.
A ruiva se chegou um pouco pra frente para ver o buracão que tinha lá no pasto. Pensei em empurrá-la, mas tio ia ficar muito chateado. Eu ia acabar com o fornecimento de leite dele. Não se pode acabar com o fornecimento de leite de um homem.
-Mas está muito fundo! E cheio de fumaça! Será que dona Teresinha está aí dentro?-perguntou Camilla virando-se para meu pai que só se pegou olhando para as duas montanhas à sua frente por que mamãe o encarava muito da enfezada.
Todo mundo chegou para perto do buraco e se esticaram para frente. Estava frio. E provavelmente já havia passado da meia noite. A lua estava muito amarela e eu com muita fome. Mas estava preocupada com a vovó.
-Engraçado é que ela perdeu um dos braços. E eu deixei aqui do lado! Mas o danado sumiu!
Todos se viraram para mim.
-Filha, cê já está pegando pesado.- falou a mamãe me abraçando contra seu vestido florido que a vovó tinha feito duas noites antes.
De repente, ouvimos umas risadas assustadoras. O chão começou a tremer. E o mais assustador foi que pedras começaram a pular de dentro do buraco, mas igual pipoca que pula pra fora da panela. A gente deu no pé. Começamos a correr. E eu, cansada, já não agüentava mais correr. Parei e olhei para trás. De repente, algo saiu de dentro do buraco e ficou parada no ar, sem chão para pisar.
Era a vovó!
Ela dava gargalhada de bruxa. Sorria como se alguém tivesse contado uma piada danada de engraçada. Nunca entendi esse bom humor nas bruxas. São feias, sempre perdem a briga, sempre têm inveja das princesas, mas vivem rindo. Queria ser positiva assim sabia?
Todos pararam quando eu disse que era a vovó. Viraram-se desconfiados. Mas viram que eu estava certa. No alto do céu, planando como bem-te-vi. Vovó flutuava de braços abertos. E até com o braço que tinha saltado fora. Com certeza, esse natal ia ser diferente.
Papai correu até o buraco, colocou as mãos nas “cadeiras” e disse muito irritado:
-Mamãe, desça já daí,viu?Veja se é possível?Uma senhora da sua idade, inventando de “avoar” uma hora dessas, nessa friagem e na noite de natal!
A boca da vovó abriu mais do que o normal, e de lá, saiu foi uma ventania daquelas! Papai foi varejado longe, do outro lado da casa. Passou por cima até do curral, caindo em cima de um monte de feno do cavalo Caniço. A dentadura da vovó também saiu de sua boca, e ficou voando pelo pasto, até voltar de novo para a matraca.
A velha começou a se aproximar do chão. Uma ventania começou no pasto. Era folha e palha voando de tudo para quanto é lado. Tive até a impressão de ter visto uma vaca passando voando por perto, mas até hoje não sei se era de verdade.
Ela colocou os pés no chão e começou a andar na nossa direção. Conforme ela se aproximava, a gente podia ver o rosto saindo da nuvem de poeira levantada pela ventania. E ficamos embasbacados ao ver como a velhinha estava mudada. Estava mais nova, mais bonita e com uma tonelada de maquiagem preta nos olhos, na cara e na boca! Era tipo aquelas roqueiras malucas da televisão!
Dona Teresinha andava que parecia que estava desfilando. Suave e sensual. Vovô ficaria doido de vê ela daquele jeito, mas estava lá dentro comendo igual a um porco.
-Olá, minha netinha!- falou ela sorrindo e mostrando seus dentes mais brancos que pedra de mármore.
Vovó alisou meu queixo como sempre fazia. Todo mundo olhava para ela de boca aberta. Foi então que a dodinha da ruiva peituda, achando que o buraco havia transformado a vovó numa mulher mais bonita, resolveu pular no buraco como se fosse piscina. A tadinha bateu com a testa em uma pedra pontuda que parecia a aguardar lá no fundo. Mas jorrou foi sangue para tudo quanto é canto. E foi a primeira vez que eu vi um cérebro ao vivo. Morreu nova, nova a coitada. Titio nem ligou. Estava todo mundo curioso demais para saber como vovó havia ficado daquele jeito.
Papai se aproximou dela e a apalpou. Queria ver se estava tudo bem.
-Mamãe a senhora está bem? Não quebrou nenhum osso?
Ela sorriu. Seus dentes estavam esquisitos. Mais pontudos do que o normal.
-Claro que estou, meu filho. Nunca estive melhor! Tenho até uma tatuagem.
De repente os cabelos brancos da vovó ficaram negros e lisos. Parecia até que tinha feito aquela tal da escova progressiva. E ela os levantou perto da nuca. Lá, escondido, tinha uma tatuagem aonde a gente via três letras “V”. Ninguém entendeu. Quando ela sorriu, eu pensei com os botões de minha calcinha GG: “Será o sobrenome dela Vitória Valadares Venâncio?” tanto que até deixei escapar esse pensamento. Mas foi tão baixinho, tão baixinho, que cheguei me arrepiar toda quando a vovó disse que eu estava errada.
Os três “V” na verdade, significavam:
-Vovó Virou Vampiro!-disse ela sorrindo e mostrando os olhos vermelhos e os dentes afiados.
Todos nós corremos para dentro de casa. Eu não agüentava mais correr. Sou pesada!
As gargalhadas eram escutadas lá de dentro. Pela janela eu assisti vovó voando igual a pipa. Ia lá em cima e depois passava perto do chão. O meu medo se misturava com uma certa inveja. Sempre quis saber como era voar. Vovó já parecia leve quando viva, ou sei lá, quando gente gente mesmo. Agora que ela dizia ter virado uma vampira, parecia ainda mais leve.
-Ela não pode entrar!- disse tio Bento.-Vampiros só entram em casa quando convidados.
Vovô se levantou muito fulo da mesa, e terminando de engolir um pedaço de frango frito, se aproximou da janela.
-Teresinha! Desce já daí e bem servir meu leite! –gritou ele, fazendo enormes pedaços de comida baterem contra o vidro da janela.
De repente, vovó apareceu atrás de nós como se fosse mágica.
Sem colocar os pés no chão, ela se aproximou do vovô e o segurou pela goela. Levantou o velho acima de cabeça dela mesma, e depois, o jogou contra a porta do quarto deles.
-Essa noite não tem natal! Vovó vai brincar de papai e mamãe com o vovô!-disse sorrindo e voando para dentro do quarto.
Antes da porta se fechar sem que ninguém arredasse a mão nela, eu consegui ver os olhos do vovô, assustado demais com a vovó.
Naquela noite, os gritos eram assustadores. A casa toda tremia. Ninguém conseguiu pregar os olhos. Acho que vovô nunca teve uma noite como aquela.
Pela manhã, todo mundo conversava.
-Precisamos fazer alguma coisa. Ela virou uma vampira! Num vai demorar para ela chupar nosso sangue todo!-disse papai, que naquela noite, passara sentado na privada.
-Não vou enfiar uma estaca no peito dela, e muito menos queimar com alho. Ela é minha mãe!-disse tio Bento.
Mamãe se aproximou da porta do quarto. Parecia ter ouvido o chão rangendo.
Foi então que vovô saiu do quarto, completamente pálido e sem forças. Caiu ajoelhado, e por fim, desmaiou com um enorme sorriso no rosto.
Entramos no quarto e lá estava vovó. Deitada como um defunto, com mão cruzada e tudo. Nos aproximamos com um cagaço só.
-Ela está linda! Nunca vi minha mãe tão maquiada assim! Será que virou puta?-perguntou papai sempre dando provas de que era mais jegue que um jegue.
-Ela virou vampiro, demência! Vai dormir o dia inteiro e só vai acordar lá pra de noite. Precisamos pensar no que fazer. Ela pode nos matar e fazer nós todos virar vampiro mais ela! Não quero ficar bebendo sangue dos outros não, gente!-disse mamãe.
Eu me aproximei.
-Vocês estão esquecendo. Vovó sempre foi um doce. Se fosse para nos atacar, ela já teria atacado. Ela foi infectada por algo que caiu sobre ela, e virou essa vampira das estrelas. Não acho que ela vai fazer mal pra gente.
Todo mundo ficou calado.
Sabiam que eu estava certa. Vovó continuava sendo a vovó. Saímos do quarto,e parece que só eu é que tinha bisolhado no teto, um monte de dentadura, todas com aqueles dentinhos cheio de pontas fininhas,fininhas, sobrevoando a cama dela, como se fossem aqueles cachorrinhos que toma conta das coisas.
Enfim, de todo modo vovó acordou de noite com uma fome danada. Falou de como se sentia, e que não queria beber sangue humano. De uns tempos para cá, as vacas e os bichos de toda Minas Gerais foram sumindo ou aparecendo sem um pingo de sangue na carcaça. O lado bom de se morar no interior, é que o povo tem uma facilidade danada de inventar lendas, e logo começaram os zuns-zuns-zuns de que havia um chupa-cabras no estado.
Deu televisão, deu rádio, deu até gringo em Moaatinga. Vovó deu entrevista e tudo pros estrangeiros. Fiquei foi orgulhosa demais da conta.
De noite, vovó me levava para voar. Íamos por cima das nuvens. Era engraçado saber que mesmo infectada por sei lá o que das estrelas, ela continuava sendo a minha avó. A vó boazinha de sempre. Acho que a bondade das avós é tipo instinto. Sabe instinto? Dizem que se você joga um tigre na água ela começa a nadar mesmo sem nunca ter nadado. Vovó tinha o instinto da bondade. Talvez por isso a velhinha não tenha comido pescoço de gente por aí. Até então...
Quem sofria mais eram as vaquinhas que aos poucos foram sumindo, e o vovô que, além de ficar sem leite nas refeições, logo seu leitinho que ele adorava tanto, ainda virou foi uma espécie de escravo sexual da vovó. Toda noite o velho tinha que comparecer, e pela manhã, toma-lhe gemada!
Só via vovó pela noite. Ela acordava, tomava banho em sangue de galinha e por fim saía voando para jantar. Às vezes só voltava quando o sol raiava. Eu ficava na janela só assistindo. Teve até uma vez que faltou vaca e ela viajou para Índia, só para comer as vacas sagradas. E olha que nem pagou avião. Foi voando por ela mesmo.
Ela era um vampiro diferente. Nada de virar morcego, nada de dormir em caixões. Vovó era um vampiro das estrelas. E nossa família aprendeu a aceitá-la. Papai estranhava quando ela chegava com roupas cada vez menores, e às vezes, com um boi inteiro nas costas para nosso almoço do dia seguinte.
Mas teve um dia que ela decidiu partir. Disse que precisava viajar por aí, e finalmente beber sangue de gente. Estava fraca e sua fome aumentava cada vez mais. Eu a abracei forte. Voamos por toda Minas Gerais. Fomos até a fronteira com o Rio de Janeiro. Me levou até um ponto em que pude ver o Cristo Redentor. Era lindo. O sol nascendo e o Cristo À frente. Em pensar que aquela cidade quase havia sumido por conta de uma epidemia que transformou pessoas que não queria ser carecas, em zumbis.
Vovó me levantou até o mais alto.
-Nunca tenha vergonha de quem você é, Nina. Sei que estou estranha e que virei um monstro dos livros. Mas nunca estive tão feliz. Nunca me senti tão aceita e tão independente.- disse ela girando comigo no ar.
No dia seguinte, ela já não estava mais na fazenda. Nunca soubemos o que transformou a vovó em vampiro com certeza plena pleníssima. A gente sabia que tinha sido a estrela “cainte”, mas não o quê. Já vi filmes que vem ET e transforma gente humana em gente de marte. Até o homem-aranha já virou um homem aranha muito do estranho, depois que encostou num negócio preto que dá nojo! No buracão que a estrela fez, papai fez foi uma piscina das grandes. O pessoal tudo vinha tomar banho mais a gente nos feriadões e nos sábados.
Vovó, como eu havia “dizido” antes, me mostrou uma nova maneira de ver o mundo. E se tornou ainda mais especial. Hoje me lembro dela não só me servindo biscoitos Passatempo quando eu chegava da escola. Ou fazendo diversos casacos perfeitos para meu tamanho imenso. Hoje vovó Teresinha é minha “herói”. E quem é mais que pode se gabar de ter tido uma vovó vampira? Que ao invés de querer matar a gente (exceto pelo vovô, que acabou enfartando na transa de despedida), iria era me mostrar e ensinar que somos o que somos, e ninguém tem nada haver com isso.
Quando eu ligava para meus quilos a mais, eu sempre queria ser um passarinho,sabe? Sempre quis voar, me sentir leve. Não sentir dor no baço quando corria,ou até mesmo o ar faltando. Mas vi que não é preciso voar para ser leve. É só preciso se sentir. É tudo. Isso já basta!
Ninguém nunca soube da história da dona Teresinha. Ninguém conheceu a história dela. E muito menos de que vampiros podem sim existir. Mas não ligo. O que importa é que vovó continuou sendo a vovó. Mesmo sendo vampira.
Carrego na minha nuca uma tatuagem de um triplo V igual ao dela. Para o caso dela voltar um dia. E para a gente pode voar por aí, vendo como o mundo é insignificante lá de cima, e com a certeza de que tudo é possível.
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FIM
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OBS: Se gostaram desse conto e querem saber mais sobre a invasão de zumbis carecas no Rio de Janeiro, não deixem de ler "OS ZUMBIS SÃO OS CARECAS" :
www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/1677177
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