Fogo, Carne e Dois Bebês de Volta [PARTE UM]

OBSERVANDO-A

Meu nome é Ciro. Tenho vinte e dois anos, estou cursando a faculdade de Ciências Sociais. Nasci no interior de São Paulo, freqüento o Viperhorse Country Club e pratico Hockey no gelo todo fim de semana no shopping da minha cidade.

Perdão. Nada disso é verdade.

Infelizmente não posso revelar minha verdadeira identidade. A justiça, e o povo em geral, consideram que o que eu fiz foi um crime, um crime horrendo e imperdoável. Por isso a única coisa que posso fazer é deixar essa confissão por escrito – quero deixar tudo detalhado da melhor maneira possível. Não vou ser preso por uma política torpe, que proíbe a um homem honesto e honrado como eu a acertar suas contas com as próprias mãos. Quero fazer com que você, leitor, creia em minhas palavras e me dê razão, para que eu possa ter um sono tranqüilo ao menos uma vez depois que tudo aconteceu. Ou ao menos algum conforto após a morte. Depois de escrever isso, tirarei cópias suficientes para preencher as caixas de correio de toda esta cidade imunda de fofoqueiros e vigaristas. Quero que todos saibam a Verdade.

Começou no primeiro ano de faculdade. Logo no primeiro dia de aula, Antropologia Social ou algo assim, sentou-se a minha frente uma garota. Linda. Pele branca, mas não tanto, cabelos lisinhos e negros que se espichavam quase até as nádegas. Ela era baixinha, mas tudo nela era bem distribuído. O rosto então era um paraíso à parte: queixo quadrado ao molde eslavo, lábios carnudos, nariz nem muito pontudo nem muito espremido. Mas o que mais chamava a atenção eram os olhos, amendoados, que por si só pareciam se comunicar com o mundo à volta. Os olhos dela pareciam Falar – e eu não consigo arrumar uma palavra que expresse melhor o que se sentia ao olhá-la nos olhos.

Essa mulher, essa mulher precisava ser minha...

Vou chamá-la aqui de Nívia, um nome fictício, claro. Nívia não era nenhuma idiota, e percebeu rapidamente o meu interesse. Não só o meu, como da totalidade dos homens que estavam fazendo aquele curso. Senti meu coração se afligir ao saber que pelo menos outros dez alunos nutriam os mesmos sentimentos por ela. Não foi fácil descobrir estas coisas – eu tive que correr atrás, conversar com eles como se fosse apenas um amigo acolhedor. Eu estava fazendo de tudo para desestimular os outros e estimulá-la a me observar melhor.

Mas, acima de tudo, Nívia era uma jogadora. Você já deve saber do que estou falando. Há pessoas que sentem prazer nisso, sentem prazer em mexer as peças do jogo para ver quais serão as conseqüências, como um enxadrista solitário com um tabuleiro a sua frente. E neste tipo de jogo, neste Xadrez Humano, Nívia era campeã. Com certeza deixou sua sala de aula da Escola Técnica de onde veio cheia de cicatrizes, controvérsias e longas amizades rompidas.

Caramba, ela não devia ter mexido comigo.

SONDANDO-A

- Você... você está me chamando pra sair? – perguntei, mais confuso que surpreso.

- Sim, por quê? – ela me perguntou, um tanto irritada – Você acha que uma garota não pode chamar um homem pra sair? Quando eu te vi eu não achei que fosse caxias assim.

Ora, eu sou só humano. Eu nunca acreditaria que uma mulher como ela poderia exigir um encontro com um cara como eu. “Sei lá, de repente é um paradigma dos homens feios”, pensei. Isso, talvez seja baixa auto-estima. Aceitei o convite, mas ainda não estava convencido. “Nívia me chamou pra sair! Ou eu sou um cara de muita sorte, ou...”

Naquele dia eu me ofereci para levá-la em casa. Percebi logo que a turma inteira me invejava. Estávamos tornando-nos íntimos rápido demais. Até os professores se incomodavam com a nossa aproximação. Sentávamos sempre um do lado do outro – sentíamos olhos pesados e reprovadores sobre as nossas nucas. “Quer saber?”, pensava eu, tolo, “a gata mais gostosa da faculdade logo vai ser toda minha”. Quando me lembro desta reflexão, sinto vontade de rir.

Mas como eu disse antes, eu ainda não estava convencido. Havia sido fácil demais ter Nívia. Talvez eu devesse investigar mais a fundo... Será que ela se apaixonou por mim, pelo meu jeito de ser? Mas como? Se ela nem me conhece direito...

Certa noite eu decidi investigar. Vesti-me com calças pretas e um casaco cor de fuligem, que nem um babaca. Saí de casa madrugada adentro. A casa de Nívia ficava só a uns cinco quarteirões – os quais atravessei de bicicleta em poucos segundos. O bairro, tradicionalmente quieto, estava praticamente morto. Ouvi ao longe um latido de cachorro que ecoou pelos becos e vielas antigas. O frio noturno enregelou minha espinha; senti que acordaria doente no dia seguinte. Bem, não tinha volta. Descobriria quem era Nívia.

A casa de Nívia era uma bela residência, que considerei ao estilo clássico. No alto, próximo ao telhado marrom, havia uma imagem dentro de um ladrilhado de vidro, com uma pequena lâmpada iluminando-a, gerando um espectro esquisito. Não consegui identificar a efígie, exceto o que se podia supor como sendo um avejão alado. Do lado de fora, deixei minha bicicleta encostada no tronco da única árvore do jardim – árvore que tinha alguns rabiscos aparentemente aleatórios que não consegui distinguir, pois tudo estava muito escuro e a lua não estava no céu. Nenhuma luz parecia vir de dentro da casa.

Tomei um susto quando olhei para a porta. Estava aberta, quase escancarada. Temendo pelo pior entrei na casa sem me anunciar, mas sem fazer barulho. O coração estava palpitando com violência. “Nívia, diga que você está bem”. “Mas e se ela estiver bem, e me vir aqui, invadindo sua casa? Meu Deus... ajude-me a pensar!”

Então eu a vi. Entrei no quarto, cuja porta também estava escancarada, e vi minha namorada. Estava vestindo uma camisola fina vermelha, ajoelhada em frente a três altares e com os braços para o alto, como que em êxtase. Estava tremendo e entoando algumas palavras isoladas, em algum idioma antigo, talvez o latim? Não, acho eram só grunhidos.

Notei que o ecoante latido do cachorro desaparecera, ou então eu ficara surdo de repente. Fixei minha visão nos altares. O altar central suspendia o crânio de algum animal que não consigo lembrar agora, se é que naquela hora consegui identificá-lo. Os outros dois altares suspendiam ossos pútridos, velas de diferentes cores e espessuras, e outras coisas que, graças a Deus, não consegui abalizar. Na parede do quarto havia um desenho geométrico, muito bem delineado e marcado, com datas assinaladas, nomes, números e locais. Nomes! E o meu nome também estava lá.

Ciro – Colina da Liberdade – Dia 13 de Agosto

Ciro era o meu nome. Colina da Liberdade era o nome do morro que representava o principal ponto turístico de nossa cidade. Dia 13 de agosto... era o dia seguinte!

TEMENDO-A

Confesso que quando a vi entrar na sala de aula, dia seguinte, senti os pêlos dos braços e da nuca se arrepiarem. Nívia estava com um vestido preto colado ao corpo. Na cabeça usava uma tiara branca com um coração azul bordado. Mal entrou na sala e olhou diretamente para mim, e sorriu. O olhar e o sorriso, juntos, diziam mais de mil palavras, porém só algumas poucas realmente importavam: “Gostou do que viu ontem?”

Ela sabia. ELA SABIA.

Nívia sentou-se ao meu lado. Olhava agora para o quadro negro, petrificada. Desta vez eu fixei o meu olhar, e senti um aperto no coração quando ela começou a escrever algo em um papelzinho amarelo, ainda sem olhar para mim. Súbito estendeu o braço, o que me fez dar um pulo – entregou-me o papel. Estava dobrado, e por fora do mesmo ela havia escrito: SÓ ABRA ÀS SEIS HORAS DA NOITE.

Foi estranho. O resto do dia nós não nos falamos, o que ampliou minha certeza de que ela sabia da minha invasão no dia anterior. Mas como? Tenho certeza que ela ficara de costas para mim todo o tempo. Talvez seja algum truque destas merdas de satanismo, sei lá. Aconteceu que ela saiu apressada da sala de aula quando o sinal tocou, e eu quase a segui com minha bicicleta, mas acabei desistindo.

Antes de deixar as dependências da escola, porém, senti uma mão apertando meu bíceps. Virei assustado e vi meu professor de História, um grandalhão careca que geralmente está muito bem humorado, quase sempre falando de jogos de vídeo game. Mas desta vez ele me fitou, sério.

- Termine esta relação, agora! – disse ele, mas em nenhum momento parecia-se com ele. Parecia mais uma caricatura... uma interpretação forçada.

- O que? – grunhi. Achei que não havia entendido direito. O professor continuava apertando meu braço.

- Não vá para o lugar para onde ela vai convocá-lo. Não faça o jogo dela.

- Está falando de Nívia? – perguntei, forçando meu braço para me soltar – Como você sabe que ela vai me chamar pra algum lugar?

- Não importa. Só faça o que estou mandando – e foi embora com pressa.

Fui para casa. Almocei quieto, sem falar nada com minha família. Eles também pareciam não ter muito do que falar. Fui para o meu quarto ouvir música, mas não conseguia relaxar... só pensava em Nívia, tentava afastar o fato de que ela fosse estranha. “Ora, e se ela for satanista? Religião não importa, eu gosto dela e pronto. Entre adorar Deus e o Diabo qual é a diferença? No fim das contas é tudo mitologia mesmo... mas e o professor Durval? O que ele sabe? Pior, como ele sabe?”

Às seis horas da noite, em ponto, lutei alguns segundos contra o receio e decidi abrir o bilhete. Minha mão tremia tanto que não consegui entender bem a mensagem à primeira leitura. Era um poema, bem, eu acho que era um poema, já que nunca fui um grande fã deste tipo de coisa:

ENCONTREI-TE TRISTE, MISERÁVEL, PRECISANDO DE COMISERAÇÃO

TE DEI O CÁLICE NECESSÁRIO PARA SUA SALVAÇÃO

AGORA A LIBERDADE É SUA , SUA E TU A RETÉNS ENTÃO

NA COLINA, À MEIA-NOITE, SEREMOS UM SÓ CORAÇÃO

Engoli em seco. Respirei fundo, e li devagar, pela décima vez. Não entendi a mensagem, mas sabia que ela me queria lá. Ela me queria, à meia-noite, na Colina da Liberdade, tal como eu previra. Tudo bem apropriado para um thriller de terror psicológico. “Está pensando que eu sou algum covarde, princesa Nívia? Eu aceito o desafio. E esta noite você vai ser minha!”

Segui de bicicleta pela avenida. Depois, a pé, morro acima.

SENTINDO-A

O solo, gramado, estava minuciosamente cortado em trilhas. Imaginei que aquilo, visto do alto, formava alguma imagem cabalística, alguma coisa que faria sentido para um ocultista ou religioso. No meio da forma, havia uma mesa com duas taças de vinho já cheias. Pelo visto somente a lua e eu presenciávamos aquilo naquele momento.

- Obrigado por vir – disse Nívia, saindo de trás de uma pedra enorme no topo do morro. Aquela foi a única frase dita por toda a noite.

E por toda aquela noite eu a senti. Primeiro, seu cheiro doce me envolveu. Bebemos um gole de vinho, e permitimos que nossos lábios se tocassem. Eu a fiz submergir em meus braços, senti que ela era quente, tão quente que parecia estar com febre. Entendi quando ela escreveu que seríamos um só coração, pois aquela noite nos tornou um único organismo vivo. E nos amamos.

A lua estava alta no céu. Estranhamente eu podia sentir, no curso do coito, dezenas de presenças. As presenças se tornaram centenas e por fim milhares. Presenças vultosas, algo que estava me levando ao pavor extremo. Ao olhá-la nos olhos, fui perfurado por um fito definitivamente maligno, algo que fugia do prazer humano para uma conquista demoníaca sem precedentes. Mais do que um parceiro sexual, percebi que eu era uma ferramenta para um ritual de bruxaria... eu já havia lido este tipo de notícia nos jornais. Tentei parar com aquilo, mas ela me envolveu de maneira hipnótica.

Não consegui falar ou gritar. Percebi que meus olhos estavam ficando pesados e meus braços estavam perdendo a força. No momento do orgasmo vi tudo ficar escuro, pendi denso para baixo sobre o corpo de Nívia.

Aquela noite tive pesadelos terríveis, até a chegada da aurora. Não posso me lembrar de todos, mas um ficou bem nítido em minha mente: eu estava em pé, a beira do abismo, e via dois bebês, um menino e uma menina, que gritavam enquanto eram engolidos por uma lava fervente.

DEIXE-NOS NASCER, gritavam eles.

QUEIMANDO-A

Acordei nu sobre a colina no dia seguinte. Vesti a roupa, desci a colina e montei em minha bicicleta, em direção a casa de Nívia. Não sabia o que pensar, mas decidi que precisava vê-la. Desta vez a porta da casa estava trancada.

Gritei, chutei a tranca várias vezes, mas a porta não abriu. Eu estava obcecado. Havia acontecido alguma coisa errada, eu tinha certeza que havia sido enganado. Vagabunda, vagabunda! Eu te odeio, e nem sei por quê.

Colei o ouvido na porta. Gemidos. Grunhidos de homem que se confundiam com gemidos de mulher. Gemidos DELA! O que está acontecendo? Porque eu sabia disso? Porque eu sabia que ela estaria aqui com alguém?

A Janela! A árvore do jardim com certeza permitiria subir até a janela do segundo andar. Quando meti a mão no tronco áspero, às oito horas de uma manhã nublada, enfim pude ver o que estava rabiscado naquela árvore. Eram nomes... os mesmos nomes escritos na parede do quarto dela – Fábio, Cláudio, Carlos, Ciro – somente nomes de homens. Botei a palma da mão direita na cabeça, e ri nervoso. Ela vem fazendo o maldito ritual com todos eles.

Decidi não entrar na casa. Voltei pra minha residência, fui até a garagem e peguei o facão do meu pai. Era domingo e as ruas estavam vazias, por isso nem me preocupei em esconder a arma. No meio do caminho, parei. Não... não vale a pena.

Passei o resto do dia deitado em minha cama, com febre. Inúmeros delírios me acometeram. Eu orava para descobrir que, no dia seguinte, tudo não havia passado de um sonho. Eu rezava para que esta mulher, Nívia, simplesmente fosse um produto da minha imaginação.

Só voltei a freqüentar a faculdade uma semana depois. Aproximei-me de Nívia, fingindo que nada estava acontecendo, mas percebi que ela não queria falar comigo. Esquivava-se e saía de perto, aversiva. “Foi porque eu não te liguei, é isso?” perguntei um dia. Ela não respondeu. Decidi então ignorá-la por completo.

Não deu certo. Um dia vi a desgraçada dando um daqueles bilhetes amarelos a um coitado que começara a sair com ela a pouco tempo. Não adiantava avisá-lo – mas eu precisava detê-la, não permitiria que ela fizesse uma nova vítima. Ou eu estava com ciúme? Não posso dizer...

Segui a mulher todo o tempo, e desta vez ela não pareceu me perceber. Ou percebeu? Ela subiu a colina a pé, e eu a escoltei, invisível. Nívia vestia uma calça jeans apertada e um suéter azul escuro que a deixava belíssima à luz do luar. Ela havia deixado tudo pronto lá em cima, a mesa, as taças, a garrafa de vinho. E eu – He, He – eu também deixara tudo pronto.

- Deusa! – exclamou ela – o que é isso? – levou as mãos à boca. Encontrou seu par desta noite com a cabeça rachada ao meio. Eu, um pouco atrás, carregava o facão encharcado de sangue.

Eu apenas ri. Tirei um pano do bolso e entreguei a ela.

- Ciro, o que você fez?

- Amarre este pano na boca – disse eu – Não tem ninguém aqui, mas eu não quero te ouvir gritar.

- Gritar? Gritar porque Ciro? – Nívia começou a chorar. Eu gostei de ouvir o som de seu desespero.

- Sabe por que eu nunca tive uma namorada? Porque eu não tolero traição! Agora amarre esta merda na boca!

Nívia amarrou, tremendo. Fui até ela e reforcei o nó – realmente não queria ouvi-la gritar. Não queria dar chance para o remorso. Em seguida segurei-a pelo braço a levei para trás da pedra, da mesma pedra em que ela antes se escondera, no dia em que fizemos amor. Lá eu deixara preparado um pedaço de tronco, cordas e dez sacos de palha. Aqueles doces olhos amendoados que pareciam falar com certeza gritaram surdamente agora, para meu regozijo.

- Para mulheres como você, bruxa, deve-se dar um tratamento à moda antiga. – disse eu.

Ela gemeu e começou a se debater. Em fúria, finquei o facão na panturrilha dela, fazendo-a desmaiar de dor. Com calma amarrei-a ao tronco, usando as cordas, uma no pescoço, uma na cintura e uma nas pernas. Espalhei cuidadosamente a palha nos pés dela, até alcançar a parte mais alta das coxas. Beijei seus lindos lábios pela última vez. Ateei fogo.

Nívia acordou, e me fitou de olhos arregalados. Queria me dizer alguma coisa. “Queima, puta, queima!” pensei. Aos poucos o fogo foi ficando alto, derretendo a carne dela. Graças a Deus o vento estava forte, então o cheiro se tornou um pouco mais suportável. À medida que a labareda foi tomando seu corpo, envolvendo-o, o fogo acabou queimando a tira de pano que isolava o som que saia de sua boca. Quando o tecido já estava inutilizado, Nívia não gritou, mas deixou escapar uma frase que ficaria para sempre em minha memória, algo que não me permitiria descansar em paz até a hora da minha morte, e além.

EU ESTAVA GRÁVIDA

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