CIRCO

O barulho que vinha de fora serviu para quebrar a monotonia daquele final de tarde. A chuva caía fina e insistente, logo corri para a janela do quarto no intuito de desvendar a origem de tamanho burburinho. Inúmeras pessoas se aglomeravam acompanhando o cortejo de diversas carroças que contornavam a pequena praça, os cavalos atrelados a elas davam sinais claros de exaustão, evidência de uma viagem dura e cansativa. O destino do comboio era o velho terreno baldio localizado entre a mercearia e a oficina de bicicletas, o local, hoje abandonado, já fora ocupado tempos atrás pelas ruínas de um antigo casarão, propriedade de uma família da capital, porém há muitos anos fora demolido, e, pelo que parece, os proprietários não se entusiasmaram muito em fixar nova moradia, ou mesmo, em fornecer uma outra utilidade para aquele enorme pedaço de terra tomado pelo mato.

Não os culpo, praticamente nada acontece nesse fim de mundo, não vejo a hora de tomar as rédeas do meu próprio destino e sumir de uma vez para um lugar melhor, onde eu possa vislumbrar a imensidão de águas azuis que compunha o cenário das antigas estórias do meu finado avô, quero ter a chance que ele teve, desejo enxergar as luzes criadas pelo homem, as torres iluminadas que se estendem aos céus e quase tocam as estrelas...

Aqui é um marasmo sem fim, por isso esse rebuliço por conta dessa movimentação toda. As pessoas estão eufóricas, dizem que é um circo, ficará algumas semanas por aqui, o espetáculo inaugural será no dia seguinte, ao cair do sol. Eles começarão a trabalhar no terreno imediatamente, a fim de deixá-lo apto para receber as instalações da companhia. Nesses meus dezesseis anos não me lembro de alguém que tenha se dado ao trabalho de vir até aqui para divulgar qualquer coisa, a não ser a apresentação de um teatro de fantoches há alguns anos. Deixei-me contagiar pela novidade e saí às ruas para conferir pessoalmente os preparativos para o grande evento.

Para minha surpresa, os funcionários da companhia já haviam aberto uma grande clareira no terreno, o local ali já estava propício para que uma espécie de acampamento fosse levantado. Algumas toras sustentavam pedaços retangulares de uma lona grossa e amarelada, rapidamente surgiam tendas trançadas por cordas cujas extremidades eram fixadas no solo por grandes cravos. Percebi que uns sujeitos de aparência intimidadora tentavam dispersar os curiosos que se aglomeravam na frente do acampamento. Um homem sorridente fazia um anúncio por meio de um megafone, convidava a todos para que prestigiassem o primeiro espetáculo.

No meio da multidão estava o Genésio, filho do dono do aviário, meu amigo desde os tempos da classe de alfabetização. Gesticulei para que viesse ao meu encontro, ele não compartilhava do meu desejo de ir embora, no entanto estava exultante com a festa na cidade. Com alguns minutos de prosa o convenci a acompanhar-me num reconhecimento através das dependências circenses. Contornamos o coreto e atravessamos a via principal da cidade com a intenção de chegar à residência do velho Mathias, uma vez lá, pularíamos a cerca, percorreríamos toda a extensão do quintal, até a pequena roça que fazia divisão com o terreno abandonado, nosso objetivo.

O sol já tinha caído por completo, a noite começava abafada como é peculiar nessa época do ano, estávamos no matagal na parte norte do terreno, com o uso de um facão abríamos caminho até o acampamento. Ficamos escondidos logo atrás de algumas jaulas, nelas grandes felinos pareciam aguardar a refeição noturna. Mais à frente, diante dos animais, estava um sujeito corpulento, ele levantava um pesado cutelo e executava potentes golpes contra montes de carne, o sangue espirrava enquanto quebrava os ossos. Sem cerimônia, ele atirava os pedaços para as feras, uma visão perturbadora.

Os funcionários do circo eram rápidos, já era possível perceber várias tendas armadas. Com o uso de foices, alguns homens, cerca de uma dúzia talvez, abriam espaço na parte que ficava a nossa direita, provavelmente ali seria armado o picadeiro e a tenda principal. Esgueiramos-nos por vários pontos e vimos coisas estranhas e bizarras, nos divertíamos com tudo, até que a vi. Sentada num banco defronte para uma das tendas, a garota com a beleza mais radiante que jamais pude imaginar. Ela parecia triste, estava abraçada com uma espécie de boneco. Fiquei olhando para ela, quase não percebi os gestos desesperados do meu amigo, ele tentava me avisar, um dos funcionários do circo, o sanguinolento do cutelo afiado, havia percebido a nossa presença e partia apressado para onde estávamos.

Genésio correu e sumiu no meio do mato, saí do transe e também tentei escapar, mas corri para o outro lado, no sentido que seguia para a roça do Mathias. Pulei a cerca de modo atabalhoado, ferindo-me com o arame farpado, se não bastasse isso, ainda precisei me desvencilhar do maldito vira-lata do velho. Cheguei esbaforido na rua de barro batido, tentava recobrar o fôlego, mas o ar teimava em faltar. Olhei para trás e nada do Genésio aparecer, esperei por algum tempo e fui embora, na certa, apavorado como era, já deveria estar em casa.

No dia seguinte fui falar com o meu amigo, porém, para minha surpresa ele não estava em casa. No aviário, os pais dele me informaram que não perceberam a hora em que voltara para casa na noite anterior, e que também não haviam visto quando saíra pela manhã. Fato estranho, porém não pareceram preocupados, ele deveria estar entretido com a novidade na cidade, assim me contaram. Não me contentei com isso e decidi investigar, alguém no circo haveria de me explicar o sumiço do garoto. De modo intrigante, quando cheguei ao local agora ocupado pelos visitantes, percebi tudo muito quieto, com exceção dos operários que trabalhavam para erguer a grande lona, não havia mais ninguém ali, seria possível que estivessem todos recolhidos a seus aposentos?

Essa seria a única explicação plausível. Ganhei os domínios dos visitantes e, surpreendentemente, não fui importunado. Na verdade, os homens que trabalhavam sob o sol forte não davam a mínima importância para a minha presença entre eles. Achei melhor e comecei a verificar pelos arredores. Nas jaulas, os felinos dormiam tranquilamente, havia um sem número de caixas lacradas e muitos utensílios espalhados pelo chão. Notei que as grandes carroças funcionavam como dormitórios, todas estavam com as portas cerradas, com exceção de uma, a que ficava mais afastada e de onde, estranhamente, vinha um som suave e agradável.

Quando dei por mim já estava diante da origem da melodia, lembrava o som produzido por uma pequena caixa que minha avó possuía, lembro que ela girava várias vezes uma manivela e então uma pequenina boneca executava piruetas embalada pelos doces acordes da música. Uma fresta deixava a luz do dia iluminar discretamente o interior da carroça. Empurrei de leve a folha amadeirava, o movimento produziu um estridente rangido que maculou a pureza do som que me dominava. O fato serviu para apurar os outros sentidos, trazendo-me de volta a realidade.

Projetei metade do meu corpo para o interior do aposento, o lugar exalava um aroma que jamais havia experimentado, nem mesmo a água adocicada vendida de porta em porta pelo perfumista detinha tamanho encanto. Lá dentro meus olhos mais uma vez foram contemplados com aquela beleza infinita, era ela, a menina triste da noite anterior. Ela olhava diretamente para mim, parecia querer me dizer algo, mas seus lábios permaneceram lacrados, pela primeira vez percebi os detalhes do boneco que trazia nas mãos, e de uma coisa tive certeza, o que senti fez com que a melodia mágica, o doce aroma e até mesmo a face angelical da garota ficassem em segundo plano. Nada de bom poderia existir perto de tamanha deformação.

Uma mão sobre meu ombro, de súbito, roubou-me um grito, a porta se fechou imediatamente, me virei para encarar o motivo de meu susto. Um sujeito de bigodes finos e com olhar desaprovador me pediu para deixar o local, segundo ele, o espetáculo só estaria pronto à noite. Confesso que fiquei impressionado com a situação, tanto que tratei de correr o mais depressa que pude, nem mesmo questionei sobre o paradeiro do meu amigo desaparecido.

Na volta passei pelo aviário em busca de informações, de maneira inexplicável as portas estavam fechadas. O pai do Genésio nunca fechava o comércio, para ele não existia nem mesmo feriado. Coloquei-me a caminho de sua residência, lá, portas e janelas estavam escancaradas, mas não havia ninguém. Maldição! O que estaria acontecendo? Primeiro o filho, agora os pais?!? Completamente desorientado voltei para casa, fui para o meu quarto a fim de ponderar sobre o ocorrido, pensei em comunicar o fato aos meus pais, mas desisti, eu precisava ter certeza antes de qualquer coisa, seria necessário voltar ao circo antes da inauguração.

Eu me escondia entre as tendas e carroças da maneira mais sorrateira que podia, as chamas das tochas que bruxuleavam no alto das vigas davam ao lugar uma aparência lúgubre. Tudo estava silencioso, até demais para o meu gosto. Ouvi um chamado, uma voz feminina, segui o som até uma espécie de vagão com rodas, grades lacravam a parte frontal da carreta. Lá dentro uma mulher me chamava, nenhuma veste protegia o seu corpo, ela suplicava para que eu a ajudasse. Comecei a sacudir o grande cadeado que travava as correntes às barras de ferro, fiz muita força, mas sabia que seria inútil. Sem que eu percebesse a mulher já estava próxima à grade, suas mãos seguraram o meu pulso, olhei para ela sem entender, seu rosto revelou um olhar medonho, os olhos rubros exalavam maldade, um sorriso cínico se formou naqueles lábios generosos.

Vi um pesadelo se formar diante de mim, os ossos da mulher estalavam incessantemente, ela grunhia e arfava enquanto um mar de pêlos tomava o seu corpo. As patas apertavam o meu punho me fazendo gritar de dor, tentei ignorar o que sentia para poder me desvencilhar daquela fera. Posicionei os pés na plataforma do vagão, agarrei o braço capturado com a mão esquerda e puxei com toda a força que o meu corpo fora capaz de produzir, consegui escapar da investida da besta, mas não ileso. Com as costas no chão sentia que vários ossos haviam se quebrado como resultado do ataque.

O animal olhava com sede de sangue para mim, urrava com fúria e socava o próprio peito como se me desafiasse com o ato. Não, eu não poderia continuar com a busca, precisava sumir dali o mais rápido possível. Os rugidos dos felinos ecoavam por toda parte, deveriam estar famintos, eu corria e tentava apoiar o braço contra o tronco, numa tentativa de protegê-lo. O homem do cutelo exercia seu ritual, mas alguma coisa estava diferente, mesmo contra todo o bom senso me aproximei para poder enxergar melhor, ato que viria a me arrepender instantes depois. Para meu completo horror, parecia que a carne servida para as feras se originava dos corpos do meu amigo e de seus pais, vi com toda a clareza um tigre devorar uma perna de Genésio, o tênis que seu pai mandara buscar na capital ainda calçava o pé, o que me serviu de prova. Meu Deus! Que lugar maldito era aquele?

Gargalhadas surgiam de todo lado, um palhaço macabro espirrava sangue de um girassol incrustado em seu peito, um mágico serrava uma mulher que se debatia e gritava enquanto sua carne era partida pelos dentes enferrujados da lâmina. O desespero estava em toda parte, no entanto, ainda assim, pude vê-la mais uma vez, a menina triste. O boneco em sua mão falava comigo, dizia que eu nunca escaparia dali, minha alma seria para sempre escrava, estando fadada à danação. Os lábios da garota não se moviam, seria uma ventríloqua perfeita se fosse o caso, seu pensamento se conectava ao meu, ela pedia ajuda, suplicava para que eu a livrasse daquele mal.

Acordei ensopado de suor, ainda estava em meu quarto, eu havia adormecido enquanto divagava em pensamentos. Já era noite, o espetáculo inaugural já estava para começar, eu não poderia perder tempo. Parecia que toda a cidade se aglomerava ao redor do picadeiro, com exceção do trio desaparecido. Eu não conseguia me concentrar, o pesadelo se apresentara com uma realidade quase palpável, e isso me incomodava ao extremo. Precisei levantar e sair dali, de alguma forma estranha eu acreditava que a menina triste, de fato, precisava de ajuda. Eu revirava os bastidores tentando encontrá-la, um silêncio mórbido tomava conta da platéia, nenhuma gargalhada ou aplauso surgia.

Um pedido de socorro, segui mais uma vez o som até a origem. Encontrei a menina, mas não era ela quem pedia ajuda, era o meu amigo, Genésio. A garota andava arqueada sendo puxada pelo boneco que caminhava com suas próprias e improváveis pernas em direção ao rapaz encurralado. Soquei o meu rosto para certificar-me de que não estava em um novo pesadelo. Não, aquilo era real, uma terrível e maldita realidade. Busquei algo que me servisse de arma, encontrei um bastão, deveria ser um cabo de enxada. Enlacei o objeto e parti decidido a acabar com aquele inferno. Um ódio gigantesco crescia dentro do meu peito e se apoderava completamente de mim. Os golpes que executava se mostravam potentes e precisos, eu batia com vontade, força e determinação, maldizia aquele lugar e todos que viviam nele, gritava enlouquecido. Só percebi quando o fato já estava consumado, não era contra o boneco maldito que eu havia despejado a minha ira, e sim contra o meu amigo de infância. Seu corpo estava destroçado, o líquido rubro lavava a serragem que revestia o chão, era a vez do representante das profundezas gargalhar.

Deixei cair o bastão, estava estarrecido, o boneco vinha em minha direção, a garota não se mexia, seu braço se esticava conforme o maldito se aproximava, ele não cessava a marcha, estava decidido, ouvi um ruído semelhante ao som de um pedaço de pano sendo rasgado. Minhas pernas estavam paralisadas, o pequeno demônio havia se soltado da menina, um líquido espesso e nauseante vertia do seu corpo e também do braço decepado da jovem. Ele afirmava que eu havia cumprido a minha parte, meu destino estava selado, o corpo da menina desabava no chão. Um espetáculo perturbador se formava, a pele alva e radiante se transformava em um monte de restos decompostos, recobertos de vermes de toda sorte, de seus lábios carcomidos saía uma palavra repetida numa voz sepulcral: “Obrigado, obrigado, obrigado...”

O boneco-demônio aproximou-se o bastante para que eu pudesse sentir as chamas dos infernos arderem em minha pele, quando ele me tocou, tudo escureceu e então perdi os sentidos. Nunca mais fui o mesmo, não lembro do que aconteceu no resto daquela noite, nunca mais vi meus pais ou qualquer outra pessoa da cidade. Hoje minha vida se resume a mudar de vilarejo a vilarejo, numa peregrinação sem fim. Tenho agora uma companhia eterna atrelada ao meu braço direito, não consigo emitir uma palavra sequer, apenas tento me fazer entender com o pensamento, isso é tudo o que me restou. Torço para que surja alguém influenciável o bastante, alguém capaz de consumar um ato hediondo e que possa, assim, assumir o meu fardo. Finalmente vim a conhecer o mundo como tanto queria, no entanto confesso que às vezes me canso desses espetáculos sangrentos, mas o que posso fazer? O show não pode parar...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 16/09/2009
Código do texto: T1813318
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