SEMENTE DO MAL
As folhas das amendoeiras tremulavam levemente com a brisa gelada que soprava naquela noite de inverno. Nas ruas, ninguém para testemunhar a discreta chegada, nem a lua aparecia para brindar tal cena, apenas o manto escuro da madrugada e o assobio do vento, nada mais. De onde viera? Não se sabe ao certo, certeza somente que ali seria o lugar onde deveria estar, e por isso viajara tanto tempo, vindo de tão longe
Fora recebida e envolvida plenamente por um abraço quente e acolhedor, imediatamente compreendeu que não errara, sua escolha se mostrava perfeita, podia sentir o calor arder a sua volta, sentia a energia lhe percorrer amplamente. O corpo que lhe revestia já não era apto para conter tamanho vigor, teve vontade e percebeu a possibilidade de tocar os céus. Estava renascendo, começava a exibir para o mundo a verdadeira face do seu ser, uma fisionomia há muito esquecida, mas que deveria se fazer presente mais uma vez.
O sol brilhava como se o verão tivesse destronado por uma dia a estação da ocasião. O rapaz despertava com a costumeira convicção de que a vida não lhe reservava o melhor do que dispunha. As seguidas frustrações o faziam afundar-se cada vez mais nas viagens insanas pelo mundo multicolorido, universo lacrado e advertido por uma repulsiva faixa negra. Normalmente as mazelas que apareciam como resultado de tais investidas marcavam profundamente a sua alma, mas ainda assim sentia a necessidade urgente de preencher-se cada vez mais com a única alternativa que julgava a seu alcance.
Engoliu mais um passaporte para a felicidade e fez uso de um bom gole de café amargo para facilitar o percurso. A improvável luminosidade daquela manhã o incomodava, ainda assim decidiu caminhar pela pequena varanda que dava para os fundos do quintal. Estendeu a visão até a cerca de madeira, conferiu cada jarro de planta, e por fim notou algo diferente na composição daquele cenário. Chegou até o ângulo formado pelo encontro das ripas de madeira, e ali, exatamente naquele espaço restrito, brotava do solo uma estranha árvore que surgira do nada. O tronco era fino e escuro, muito mais escuro do que o ébano, não excedia um metro e meio de altura, as folhas que enfeitavam os galhos apresentavam-se como pontas de setas, eram de um tom verde claro, quase transparentes, revestidas por uma leve penugem, não havia um único fruto.
Por um instante ele ficou imaginando se não estaria em um surto alucinógeno causado pelas pílulas que acabara de ingerir, mas o calor que sentia na planta dos pés o certificava que não. Ao redor da árvore surgia um círculo, parecia que a relva havia sido queimada naquela área, e era por ali que o calor vertia. Preparava-se para voltar à casa e chamar a esposa, no entanto sua intenção fora frustrada por um som que lhe chamou a atenção. Era uma voz, suave e definida, falava diretamente a sua mente, a improbabilidade da situação o fez desferir alguns golpes na própria cabeça. A voz feminina lhe falava que sua vida poderia mudar, tudo que sempre desejara poderia, finalmente, estar a seu alcance. Ele duvidou, logicamente, não acreditava de maneira alguma que algo de bom poderia lhe acontecer, ainda mais daquela maneira, vindo do nada.
Então, desafiando as leis da natureza, um pequeno ponto dourado surgia diante de seus olhos, brotava da ponta de um dos negros galhos, o círculo começou a tomar forma e em poucos segundos um fruto era fornecido pela árvore. E este era belo, incrivelmente belo, seus olhos nunca vislumbraram algo com tamanha perfeição. A fruta era de um dourado reluzente, um círculo perfeito, nenhuma ranhura maculava a superfície daquela suculenta obra-prima. Seus olhos brilharam, estava enfeitiçado, esticou a mão para tocá-la, mas fora repelido por um forte calor que começou a rodear a esfera dourada.
A voz voltou a sondá-lo, dizia que bastava que ele estivesse disposto a cuidar da fonte dos prazeres para que tudo se estendesse a seus pés. Sem pensar ele aceitou, então o ardor que rodeava a fruta dissipou-se, deixando livre o caminho para o contato. Com volúpia enlaçou os dedos no fruto dourado e o levou à boca sofregamente. Quando pressionou a mandíbula foi invadido por uma sensação que jamais imaginara poder sentir, era algo que julgava impossível descrever, o sabor, a textura, o néctar, tudo estava muito além do que os simples sentidos que dispunha eram capazes de compreender. Ele não mastigava, simplesmente engolia os pedaços, o líquido espesso que compunha o interior da fruta era de um vermelho intenso e vivo, e escorria fartamente pelos cantos da boca do homem, quem assistisse àquela cena o associaria a uma fera se refastelando com um banquete proporcionado por uma presa abatida. Era animalesco, feérico, repulsivo até.
O líquido que manchava as mãos era sorvido até a última gota, o perfume era tão intenso que sentiu vontade de rasgar e devorar a própria pele para não perder um só resquício, o torpor que inundava-lhe a cabeça o fez revirar os olhos. Foi ao chão, debatia-se de forma involuntária, a voz lhe falava: peça...queira...deseje....
Um pensamento surgiu; simples e cru, o êxtase diminuía...um estrondo ensurdecedor o tirou do transe...
Já de pé visualizou a razão do barulho, um automóvel negro completamente destruído devido ao impacto com um poste. O motorista tentava escapar do veículo, estava mortalmente ferido, deixava um rastro de sangue conforme rastejava pelo asfalto. Caminhou até o moribundo, gritou por ajuda, mas não havia mais ninguém por perto. Abaixou-se próximo ao motorista, mas este não respirava mais, não resistira aos ferimentos. Em seu braço estava atrelada uma algema que se prendia a uma maleta. Por intuição revolveu os bolsos do morto e encontrou um molho de chaves, na primeira tentativa achou a que livrava a tranca. Em seguida flagrou-se fazendo algo que jamais imaginara.
Ofegante e suando fartamente escondeu-se no velho depósito que ficava num canto do quintal, trazia nas mãos a maleta, trêmulo abriu as trancas, a quantidade de dinheiro que se mostrou condizia exatamente com o que tinha imaginado. Como aquilo era possível? O que estava acontecendo? Trancou novamente a maleta e apertou-a junto ao peito, colocou-se novamente de pé e espiou pela fresta da porta. Enxergou a confusão formada na rua, ambulância do corpo de bombeiros, polícia e curiosos, todos ali por conta do acidente. Decidiu que deveria permanecer onde estava até as coisas se acalmarem.
Ao anoitecer resolveu averiguar a fonte dos prazeres, a árvore havia minguado. Nenhuma folha era vista, muito menos outro fruto dourado, o tronco estava ressequido e pálido, e ele não entendia o porquê. Voltou para o depósito, reduto de ferramentas e outras quinquilharias, checou o esconderijo da maleta, voltou-se para uma prateleira e começou a jogar inúmeras coisas no chão, escolheu alguns objetos, uma pequena pá, um pouco de adubo contido em um velho pote, um ancinho com o cabo quebrado, recolheu-os como pôde e retornou para o quintal.
Deixou os objetos caírem quando viu o cão com uma das patas levantada próximo ao tronco da árvore. Com ódio no coração agarrou a pá e partiu decidido a acabar com aquela heresia, o animal não teve chance de escapatória, a parte metálica da ferramenta abriu uma fenda na cabeça do cachorro, ossos foram quebrados com os repetidos golpes. O sangue espirrava contra a madeira da cerca, o animal não se movia, lentamente a calma retornava ao corpo do homem.
Percebeu um estranho fenômeno, o sangue do bicho aglomerava-se numa só poça no chão, e dali fluía vagarosamente até o tronco ressequido e desaparecia absorvido pelo solo. O contato do líquido fazia ressurgir, ainda que de forma sutil, o viço do vegetal. O fato o assombrou. Com um pedaço de vidro abriu um pequeno talho na palma da mão, deixou cair um filete rubro sobre a base do tronco e imediatamente este recobrou a coloração original. Então ele entendeu, viu que o material que trouxera para adubar a terra seria ineficiente, ele deveria cuidar da fonte, mas precisaria de algo bem mais especial para isso.
Estava agachado junto ao tronco, perdido em pensamentos, quando fora surpreendido pela esposa, ela iniciava um discurso repreensivo pelo sumiço durante todo o dia, entretanto, ao ver o cão morto e o marido com um olhar diferente, mudou de idéia. O homem levantou e agarrou novamente o cabo da pá, percebendo a intenção do marido, ela começou a correr, sentindo o deslocamento do ar bem próximo de sua cabeça.
Tentou tomar o caminho para a rua, ele bloqueava a passagem, olhou para a casa, impossível chegar, a única alternativa seria trancar-se no depósito, e assim o fez. Girou a chave na fechadura, jogou no chão as coisas que estavam sobre a mesa, pensava em utilizá-la como escora na porta. O marido socava violentamente a folha de madeira, bradava para que saísse, dizia que seria o melhor para os dois. Ela tentava manter a calma, mas o desespero teimava em sobressair-se criando uma sombra diante do seu raciocínio, ainda assim seus olhos alcançaram um facão caído junto às outras ferramentas, pediu aos céus para não ter de usá-lo contra o esposo, imaginava que a loucura houvesse se instalado de vez em sua mente.
Os golpes contra a porta davam indícios de que a resistência estava por ruir, o coração da mulher batia de forma acelerada, uma das placas que constituía a porta foi abaixo, ela conseguiu enxergar o brilho ensandecido com olhos do marido, de sua boca vertia uma espuma esbranquiçada, logo ele estaria no cômodo. Dentro de si já era certo que apenas um deles sairia com vida dali, agarrou a pesada e enferrujada lâmina, não seria por falta de luta que tombaria.
Finalmente a porta tombou, e a figura que lhe fora tão especial entrava pelo vão, dominado por uma fúria inumana. Será que os vizinhos não ouviam? Será que ninguém viria socorrê-la? Existiria algo mais envolvido nisso tudo? Seus pensamentos foram interrompidos pela dor. O golpe desferido pelo marido acertou em cheio seu tronco, jogando-a ao chão. O sangue na pá o fez gargalhar. Sorrateiramente ela recolheu novamente sua arma e aguardou, o homem segurou o cabo com as duas mãos e ergueu a ferramenta sobre a cabeça, no entanto antes que pudesse despejar sua ira, sentiu o abdome ser dolorosamente transpassado pela lâmina do facão.
Ela chorava enquanto via o marido ser vencido pela morte, o assoalho era lavado pelo fluido da vida. Ficou ali, por vários minutos num pranto inconsolável, então a viu. A maleta. Cautelosamente depositada entre algumas caixas, seria improvável que a achasse daquela maneira, mas a achou. Por alguns instantes esqueceu-se completamente de tudo, concentrava-se apenas na maleta. Tomou-a nos braços e repleta de curiosidade a abriu, as inúmeras notas de grande valor saltaram diante de seus olhos deixando-a estarrecida. Não entendia ao certo o que se passava, só sabia que aquilo teria algo a ver com o ocorrido.
Uma voz suave e cativante ressoava em sua mente, rapidamente ela revirou as notas e encontrou, uma pequenina semente dourada. Olhou para o sangue espalhado pelo chão e entendeu o que precisava fazer.