O ABRAÇO DA MADRUGADA

Ele não agüentava mais. Os mirrados braços, frágeis, mas não por conta da tenra idade, e sim pelas circunstâncias incomuns que o envolviam, já não apresentavam as mínimas condições em receber uma nova visita da invasora delgada de aço. A tonalidade fronteiriça entre o rubro e o violáceo se estendia por um bom pedaço de sua pele, a combinação com os grandes círculos ao redor dos olhos, resultado de noites sofridas, era perfeita. Abraçava os joelhos dobrados, balançava o corpo para frente e para trás numa ação repetitiva e involuntária. O quarto não era pequeno, mas sob seu ponto de vista era sufocante, pior do que isso, era ameaçador. Já havia perdido as contas de quantas vezes visitara aqueles homens de branco, tolos arrogantes, nada sabiam, mas ainda assim se mantinham impávidos em seus pedestais. As pequeninas cápsulas que percorriam, insossas, os tortuosos caminhos do aparelho digestivo exibiam muito mais cores do que a vida ao seu redor poderia oferecer. Estava cansado disso, não suportava mais. A rotina não lhe afetava pela monotonia, longe disso, não havia repetição nos pesadelos noturnos, cada noite era diferente, cada uma delas ganhava contornos individuais, dolorosamente únicos, por assim dizer, o que estava sempre presente era a dor, física e psicológica. O que circulava naquele ambiente peculiar parecia se deliciar com cada instante de temor que proporcionava, pois especializara-se em superar-se cada vez mais.

Conforme o abraço da madrugada se estendia longo e firme, as esmeraldas vítreas perscrutavam vagarosamente a superfície lisa e fria do quadrilátero enclausurante. As folhas acetinadas que se interpunham entre o seu reduto e o mundo exterior apresentavam um suave e hipnotizante balançar. O ritmo cadenciado, proporcionado pelo sopro persistente e frio da madrugada, lentamente começou a ceder espaço para uma descompassada agitação. As argolas metálicas, que seguravam o tecido, corriam enlouquecidas por toda a extensão do cilindro de madeira crua que se prendia ao teto. O preparado de seda, lustroso e macio, se enroscava e ganhava forma, os fios de renda convertiam-se em asquerosas presas, a tira que servia para cerrar a cortina, mostrava-se como uma oblonga e bifurcada língua, o ruído do vento confundia-se com um sibilar ameaçador. Ele abraçava mais forte as próprias pernas, não gritava, sabia que não adiantaria, como sempre ninguém seria solidário aos seus tormentos, nem mesmo os pais, que só se limitavam em procurar justificativas lógicas para suas aflições.

Ele se recostava em um canto, não suportava permanecer exposto no leito, temia que formas inimagináveis surgissem entre os lençóis, sofria só de imaginar seu frágil corpo ser envolvido e triturado pelo apetite insano da força ali presente. A pequena poça formada sob seus pés descalços, proveniente do medo salgado e frio que brotava de seus poros, se mesclava a uma nova, composta por um outro líquido que escorria morno pelas trêmulas e finas pernas. Vergonha e desespero num só lugar. O pijama estampado com desenhos de singelos cães fora arrancado com urgência, para em seguida ser atirado ao chão com violência e asco. O corpo nu ostentava inúmeras marcas vermelhas e doloridas, hediondas figuras se mexiam nas roupas jogadas, exibiam um sorriso malicioso e cínico, estavam felizes com o resultado do feito realizado.

As ranhuras do assoalho uniam-se às imperfeições da parede, juntas descreviam feições incompatíveis com a realidade vislumbrada nesse plano. Não, definitivamente aquilo não poderia ser obra de sua mente, nem o mais delirante dos seres seria capaz de projetar imagens tão perturbadoras quanto aquelas. As sombras que riam e se deliciavam com o pranto solitário e acuado do menino chegavam cada vez mais perto, sem ter para onde ir e o que fazer sua única opção era recuar cada vez mais, como se fosse capaz de escalar o fundo branco que lhe prendia. Fios negros e revestidos por incontáveis filamentos afiados fugiam da superfície às suas costas e se esgueiravam através da pele gelada e úmida. Como vermes rastejantes e asquerosos, os esguios tentáculos enroscavam-se em seu pescoço e infiltravam-se por seus ouvidos e narinas, ele não suportava mais, gritou da melhor maneira que pôde, e ao fazer isso deixou livre o caminho para que os cilindros pontiagudos descessem através de sua garganta.

O ar lhe faltava, as lágrimas lhe faltavam, a ajuda lhe faltava, somente a dor, a incerteza e o medo o envolviam fartamente. Reuniu forças que jurava não ter, decidiu-se por um objetivo, dentre todas as possibilidades que se mostravam ali, somente o círculo metálico fixado à folha de mogno envernizado se oferecia livre de qualquer manifestação. Ele sempre teve medo de portas, julgava-se incapaz de prever o que poderia existir além de seus domínios, mas nada poderia ser pior do que o interior do quarto, talvez a fuga de sim mesmo se escondesse por detrás daquele vão. Esticou a mão para agarrar a maçaneta, mas não teve sorte, sua inútil tentativa teve como ápice apenas um leve deslizar com as pontas dos dedos. Algo o agarrava pelos tornozelos e o puxava vagarosamente, tentava impor resistência cravando as unhas no piso amadeirado, olhou para trás e pôde ver uma imensa boca formada pelo espaço entre o colchão de sua cama e o assoalho, o lençol desarrumado sugeria dentes disformes a resguardar uma profunda e negra garganta. Sentia o hálito quente e fétido da força maligna, sabia que em poucos instantes estaria percorrendo um caminho sem volta através daquela trilha. Ele gritava, gritava e gritava cada vez mais, enquanto as sombras gargalhavam e zombavam , diziam que a esperança não mais poderia fazer morada em seu peito, e como se finalmente aceitasse o destino que lhe fora reservado, simplesmente desistiu, fechou os olhos e deixou que fosse tragado, não viu mais nada, apenas pôde sentir e perceber, ainda que levemente, uma última coisa antes de desaparecer por completo na mais absoluta escuridão, e esse detalhe, quase imperceptível no meio de tanta dor e desespero, o fez emitir um discreto sorriso.

Na manhã seguinte, absorvidos pela rotina de anos, seus pais subiram ao quarto acompanhados da enfermeira particular, abriram a porta e emitiram, ao mesmo tempo, um longo e profundo suspiro.

* Leiam a continuação "O brilho da alvorada", http://www.recantodasletras.com.br/contos/1780432, obra do meu grande amigo Xande Ribeiro

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 27/08/2009
Reeditado em 29/08/2009
Código do texto: T1778452
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