O ACASO NÃO EXISTE

Para maior entendimento, recomendo a leitura do conto "Exercício Literário - Alvaluz", do meu amigo Xande Ribeiro.

O acaso não existe, isso é fato. Da mais simples poeira que rodopia sem destino ao sabor do vento, até os grandes cataclismos que varrem sem piedade as mais diferentes partes do globo. Tudo se encaixa como uma perfeita engrenagem no mecanismo diário da vida. Entretanto, vez ou outra surge uma força inesperada, incompreensível, que tenta influenciar essa rotina de acordo com os seus próprios interesses.

Quando os primeiros moradores se estabeleceram na pacata Sombreiro, provavelmente não tinham a menor idéia de que estariam se envolvendo em algo maior, algo que fora planejado em detalhes e que contaria com a participação efetiva de cada alma que habitasse aquele lugar. A maneira como a cidade cresceu, a disposição de cada edificação, a idéia de estabelecer um marco no coração da região, a praça, tudo ali compunha um cenário há muito imaginado.

O acaso não existe, o relógio, em posição estratégica, a regular o tempo de cada ser vivente que por ali passasse, a força impulsionava, oculta, a vontade de cada um. A combinação perfeita estava ali, no descuido involuntário do encarregado pela manutenção elétrica, a proximidade com o material inflamável, tudo arranjado para que as sombras vertessem pelos poros daquele chão.

Mas, como as engrenagens da vida insistem em tornar as coincidências evidentes e perceptíveis a quem as procura, justamente no alvo traçado e estudado estaria fadado a se opor, como um obstáculo, alguém que poderia enxergar muito além do óbvio e do esperado. A jovem mulher até então não sabia o porquê de seus olhos insistirem em perscrutar as possibilidades infinitas que não se evidenciam facilmente à visão crua ou negligenciada. De certo ela não desejava ser assim, mas o acaso não existe, a sensibilidade que a envolvia tão densamente teria razão de ser.

Diante da visão nefasta, e principalmente, pelo que surgiria a seguir, ela tentou com todas as forças impedir que a população da pacata cidade se reunisse para o evento no coração municipal, aquele marco, o maldito controlador do tempo denunciaria a hora em que o açoite impiedoso marcaria com sangue, dor, morte e chamas todos aqueles que cruzassem o caminho que estava traçado. A grande torre de concreto e ferro anunciava a hora maldita, dez potentes avisos, rotina para quem se habituara a ele, sinal para quem aguardava ansioso.

Obedecendo às ordens do desconhecido, as labaredas varreram com velocidade inconcebível as dependências do comércio de tintas, explosões lançaram chamas pelos céus, casas, lojas, a praça, tudo ficou entregue a vontade insana do fogo. Muitas, inúmeras pessoas tiveram a vida ceifava naquele dia. Os ouvidos ficaram selados às suplicas desesperadas de tão perturbada menina.

Não fora por obra do acaso, muito menos pela capacidade técnica dos construtores, que justamente a ignição da desgraça permanecera de pé. Absoluta, irrepreensível, marcando o horário fatídico. O relógio que há tanto tempo se mantivera esquecido e oculto pela grande muralha erigida em homenagem aos mortos. Ou seria por outro propósito? Os que sobreviveram à desgraça trataram de tomar outro rumo, seja desempenhando um papel além vida, seja obedecendo a uma intuição inexplicável. Somente ela, que agora carregava as marcas implacáveis do tempo no corpo, permanecera. Aguardava, movida pela missão que lhe fora destinada; impedir que algo maior se espalhasse pelo mundo como as chamas fizeram com o coração de sua cidade naquele ano tão distante.

Seus aguçados olhos logo a alertaram sobre as intenções da criatura que circundava a inocência da criança. Vera Lúcia não conseguia perceber a maldade que a ameaçava, inutilmente a guardiã tentou fazer com que os pais da menina enxergassem o que ela própria vislumbrara. Mas, já era tarde, a influência malévola já conseguira se impregnar nos suaves contornos infantis da menina. Não, já não lhe restavam alternativas, a sede de sangue clamada por aquela artéria aberta no meio do solo estava além do seu controle, a não ser que...

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A chuva caía impetuosa naquela noite. Um blecaute se estabelecia em toda a cidade, a chama tênue de algumas velas quebrava a escuridão em alguns pontos da casa. Nos limites perturbadores de seu quarto, a pequena Vera Lúcia se mostrava incapaz de encontrar o conforto do sono. As gotas oriundas dos céus em trevas produziam uma sinfonia macabra quando se chocavam contra a superfície envidraçada da janela. Sentada na cama, ela abraçava os joelhos enquanto observava, estarrecida, os raios acenderem a noite, os trovões a faziam sentir vontade de correr de encontro aos pais. Ela resistia, de alguma forma sentia que precisava permanecer onde estava, a espera...

As pálpebras da menina tornaram-se pesadas, uma onda irresistível se apossou de seu corpo, e sem um prévio aviso, finalmente estava envolta num profundo sono. Sob tons em preto e branco, uma imagem conhecida começava a se formar em sua mente, era um rosto familiar, a mesma senhora que se intrometera em seu caminho enquanto brincava com a nova amiga além dos muros da praça. Ela via claramente a figura envelhecida da idosa confrontando as forças que novamente se estabeleciam na cidade. A velha vociferava palavras de desafio e insulto contra aquilo que se escondia além dos muros. As sombras se moldavam serpenteantes diante de seus olhos, o corpo negro e esguio se estendia até o solo, que mesmo anos depois, ainda ardia e desejava sofregamente se abrir e ceder passagem ao que deveria permanecer confinado.

O toque sufocante e quente fora mínimo, porém suficiente para tornar em cinzas a existência daquela que deveria se prolongar além da eternidade. Antes de cerrar definitivamente a extraordinária visão, ela pôde notar os ponteiros do relógio iniciarem um leve movimento, e pôde, também, sentir o toque suave, traiçoeiro e alvo daquela luz que se espalhava discretamente pelo ar de Sombreiro.

A menina despertou com um grito, mas nenhum som saía de sua boca, apenas ressoava em sua confusa mente. Ela não sabia ao certo se sonhara, ou se tudo aquilo acontecera de fato, a sucessão de imagens fora de uma realidade quase palpável. Um súbito alarme se instalou em seu coração. A amiga. A pobre e indefesa Alvaluz. Ela morava no mesmo local em que as sombras haviam engolido o corpo da velha. Um perigo imensurável ameaçava a menina. Novamente a casualidade brincava com o destino, os olhos aflitos de Vera Lúcia enxergaram, através do vão da janela, os contornos infantis da amiga rodopiando ao redor do relógio. Vera esfregou os olhos com os punhos cerrados tentando certificar-se de que a visão não a traía.

Não, a água que lhe ensopava o rosto e os cabelos era insuficiente para causar-lhe confusão. De fato, conforme Alvaluz descrevia círculos, mais e mais luzes, alvas e brilhantes, eram expelidas do chão. O pensamento que chegava até Vera era de que, de alguma forma estranha, a amiga parecia dar corda no imenso relógio. Uma sombra monstruosa se formava sobre toda a extensão da praça, uma gigantesca boca se mostrava, pronta para engolir a menina. Vera Lúcia gritou, para em seguida atravessar o vão aberto e correr em direção à amiga.

O grito chamou a atenção dos pais que correram para o quarto da filha e ainda puderam visualizá-la, ao longe, ganhando os domínios da praça. Vera Lúcia enxergava o lugar como Alvaluz lhe apresentara, radiante e vivo, mas a realidade vislumbrada pelos pais era outra, um cenário de decomposição e dor. Imediatamente se lembraram das advertências da velha, a aflição e o temor tomaram conta de suas almas. Embrenharam-se na noite, chuva e lágrimas eram uma só coisa em seus rostos, nos corações a vontade inabalável de resgatar a filha.

Os pais chegaram até a praça, mas não puderam entrar, as sombras que envolviam o lugar derramavam estilhaços que se convertiam em chamas negras. Alvaluz sorria enquanto estendia a mão para Vera, a menina implorava para que ela largasse o relógio e que saísse dali com ela. Como resposta recebia o convite da amiga para que se juntasse a ela nos divertidos rodopios. A chuva aumentava na mesma proporção do desespero dos pais ao perceberem as ameaçadoras figuras que se formavam ao redor da menina. No entanto, o que os apavorava ainda mais era a outra, a indescritível criatura que conversava calmamente com Vera Lúcia enquanto lhe estendia a mão.

Um sorriso brotou nos lábios da criança, que apertou com força a mão da amiga que se oferecia a ela, as duas rodopiavam juntas enquanto o chão da praça começava a apresentar rachaduras imensas. Pai e mãe gritaram em uníssono, o fogo que escapava das fendas apoderou-se completamente do ambiente. Toda sorte de vultos e sombras escapavam livremente por ali. O relógio marcava dez horas. Alvaluz e Vera Lúcia desapareciam envoltas pelas labaredas que se estendiam a metros do chão.

Os pais desabaram em prantos e não notaram quando os tijolos que compunham a estrutura do relógio começaram a ceder, a imensa torre que sustentava o marcador do tempo veio ao chão. Os ponteiros continuavam a trabalhar, mas dessa vez no sentido anti-horário, de maneira acelerada, as manifestações que dominavam os céus eram tragadas de volta pelas fendas que se fechavam miraculosamente. A chuva apagava as chamas negras que contornavam a praça, a fumaça escura e fétida era vencida facilmente pela água. O casal assistia estarrecido à cena que se desenrolava bem diante de seus olhos. Contornos de luz surgiam de todas as direções e irrompiam aos céus, como se há muito tempo esperassem por isso. Em seguida, o fogo acabou, a fumaça sumiu, a chuva cessou.

Eles se dirigiram de forma afoita até a praça, não havia nenhum vestígio do relógio, nem de escombros, nem de nada, se algum dia existiu algo ali, fora consumido pela cratera que também já não existia mais. Quem olhasse num dos cantos poderia perceber uma pequena folhagem verdejante que surgia timidamente. Pela primeira vez desde que puseram os pés naquela cidade, eles experimentavam uma sensação de alívio, de paz, que só não estava completa pela falta da filha. Onde estaria Vera Lúcia? O que teria acontecido a ela?

Como resposta aos questionamentos internos, viram uma pequena figura iluminada se levantando da terra úmida e seguindo ao encontro das outras que já estavam distantes. Sem ouvir uma única palavra, apenas com a visualização do semblante radiante que se dirigia a eles, conseguiram sentir e entender algo que poderia ser traduzido através das palavras: “Não se preocupem, talvez fosse a minha missão acabar com a maldição desse lugar, afinal, o acaso não existe”.

Com lágrimas nos olhos acompanharam o pontinho luminoso desaparecer no céu que se abria.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 25/08/2009
Reeditado em 07/01/2010
Código do texto: T1774311
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