O BRILHO MALÉVOLO DAQUELE OLHAR
Este fato aconteceu comigo no distante ano de 1989. Era eu um adolescente, e como tal, repleto de atitudes intempestivas e dominado pela impulsividade recorrente . Nessa idade, tomamos as negativas como sinais claros de desafio, e a necessidade de auto-afirmação revela-se como um cavalo selvagem a executar galopes furiosos, sem possibilidades de ser domado. Existem certas tradições, determinados costumes, que se mostram profundamente enraizados na cultura de uma região, por exemplo, aqui no meu município, nos subúrbios e outros pontos distantes do mar e do cenário dos cartões-postais, aparecem diferentes manifestações, hábitos que a tecnologia não consegue apagar, mesmo nos dias de hoje. Obviamente, como acontece em outras partes do globo, nem todas essas manifestações encaixam-se nos padrões do politicamente correto, e posso afirmar que o costume de soltar balões classifica-se exatamente nesse quesito.
Todos sabem sobre os riscos absurdos que envolvem essa atividade, mas, ainda assim, é claro e evidente que a prática não foi e, sinceramente acredito, nunca será descartada. Posso afirmar, até mesmo, que a maior parte das pessoas que se arriscam nesse meio são muito bem esclarecidas. Pois bem, meus pais, como bons seguidores da lei, proibiram-me veementemente de observar um festival que, segundo os rumores, estaria prestes a acontecer. Lógico que eles estavam certos, hoje eu faria a mesma repreensão aos meus filhos, mas como disse no início, nessa época da vida os desafios são constantes.
O festival aconteceria num ponto distante e isolado do centro do bairro, um grande descampado cercado de morros e vegetação compacta, um local perfeito para a irresponsável prática. Combinei com um amigo de sairmos escondidos durante a madrugada, e trinta minutos após a meia-noite, lá estava eu, no banco da praça, esperando pela chegada do outro fugitivo noturno. Não tardou para que ele aparecesse, envolto num impermeável azul-marinho, precaução para o caso da chuva fina que caía desde o início da noite, tornar-se uma impetuosa tormenta.
Você deve se perguntar se não sabíamos sobre a incoerência entre balões e chuva, obviamente éramos sabedores de que dificilmente os monstros de papel e fogo subiriam aos céus se estes estivessem aos prantos, mas, não desejávamos correr o risco de estarmos errados, e assim perdermos o evento.
Caminhamos por cerca de meia hora através da trilha aberta entre as árvores, cada um empunhava uma lanterna, ardilosamente retirada da caixa de ferramentas do pai, a chuva caía com mais força, e eu mesmo me repreendia pelo fato de não ser tão perspicaz e precavido como o meu colega de jornada. A lama nos atingia até os tornozelos, era difícil caminhar naquelas condições, os escorregões se tornavam freqüentes, àquela altura já estávamos convictos de que o festival seria adiado, mas mesmo assim chegaríamos até o vale para confirmar com os próprios olhos.
Dez minutos depois, finalmente atingíamos o nosso objetivo, o descampado se mostrava completo, logo abaixo do morro onde estávamos. Algo curioso nos chamava a atenção, parecia ser um carro da polícia estacionado, com o giroscópio acionado e com dois feixes de luz a iluminar um caminho impreciso. Como um veículo conseguira chegar até ali? Teriam os homens da lei providenciado uma estrada pela mata? Nunca soube da resposta, pelos motivos que vocês conhecerão logo.
Em situações como estas, mandaria o bom senso que retornássemos dali mesmo, pois não haveria festival, os baloeiros deveriam ter sido surpreendidos e presos, o que poderíamos fazer ali? Entretanto, juízo era algo que passava longe de nossas mentes, e além disso, era evidente que alguma coisa estranha acontecia no fim daquele morro, e desta forma decidimos averiguar mais de perto. Conforme vencíamos os enlameados metros que se estabeleciam entre os pontos, começávamos a perceber uma atmosfera diferente, pesada, difícil de explicar com palavras, era uma sensação desagradável por assim dizer.
O veículo da lei estava abandonado, as luzes internas estavam acesas e do rádio de comunicação saía um chiado irritante, quando olhamos na direção em que os faróis iluminavam, fomos tomados pela mais explícita e legítima manifestação de horror. Haviam dois corpos, ou melhor, pedaços de corpos, só notamos serem de duas pessoas por conta das cabeças, um par delas, jogadas nas poças formadas pela chuva forte que caía. Gritamos e fomos acometidos, de súbito, por um som bizarro e aterrador, algo que faria gelar a alma do mais valente dos mortais, o que dizer de dois projetos de homens.
Fizemos a única coisa que seria possível: correr. Corremos louca e desabaladamente pelo descampado, levantando água com os nossos passos. Eu seguia na frente, e por todos os lados em que jogava os olhos da lanterna, encontrava pedaços de gente, sangue, dor e morte, tudo misturado às armações dos balões, botijões de gás e outros apetrechos. Um cheiro nauseante, algo que se assemelhava a bicho morto, à putrefação, um cheiro que remetia levemente ao que uma vez senti perto das jaulas das feras no zoológico, mas este era infinitamente mais forte, mais penetrante, eu diria, mais ameaçador, e esse cheiro maldito estava por toda parte.
Meu amigo chamava por mim, me pedia para esperar, mas eu só pensava em correr, me livrar daquilo que seguia em nosso encalço, seja lá o que fosse. Tropecei e fui de rosto no chão, minha pele ficou impregnada pela lama e pelo sangue, abri os olhos e vi parte de um crânio dilacerado, uma visão que nunca viria a esquecer. Ouvi o garoto gritar e aquele som apavorante cada vez mais perto, levantei e continuei a correr. Eu subia as encostas me agarrando aos galhos e folhas dos arbustos, derrubava o barro e os cascalhos barranco abaixo com o movimento que executava. Olhei para baixo e vi o rapaz muitos metros além de onde estava, ele se arrastava como podia, logo atrás dele a vegetação tremia freneticamente, como se algo grande atravessasse o caminho. Não sei se fora por obra do destino, mas os faróis acesos marcavam justamente aquela direção, como uma trilha que terminava no meu colega, um alvo a ser atingido, e que tristemente se mostrava de forma clara para mim, graças a força daquela luminosidade.
Meu pressentimento era de que ele não conseguiria escapar, e talvez por conta disso, ou da minha falta de coragem, não consegui olhar novamente para trás, não queria testemunhar o que aconteceria a ele, não desejava presenciar a transformação de alguém tão próximo naqueles restos humanos que há pouco vira, muito menos contemplar a figura que se encarregaria de tal feito, mesmo porque, se fizesse isso, de certo a imagem me atormentaria pelo resto da vida. Mas não era necessário fazer uso dos olhos, pois mesmo distante da ameaça, só a percepção de sua simples presença já fazia com que eu experimentasse o maior e mais absoluto pânico que alguém poderia sentir.
Novos gritos, desta vez pude perceber a dor contida no pranto, era certo que estava sendo devorado vivo. O medo opera verdadeiro milagres, pude confirmar tal afirmação quando venci, não sei com que forças, a distância que separava a estrada da vegetação vizinha ao descampado, no princípio não notei nada que denunciasse que eu pudesse estar sendo seguido, mas nos metros finais, o farfalhar da folhagem, os ruídos estranhos, e é claro, o odor característico fizeram com que a situação se tornasse mais urgente para mim, pois algo me acompanhava de perto.
Joguei-me no asfalto da estrada, com total espanto presenciei inúmeros cães que se aglomeravam no local. No início eles estavam em silêncio, como se estivessem em transe, mas de repente se puseram numa agitação incontida. Corriam de um lado para o outro, latiam e rosnavam, era uma sinfonia infernal. Não fiquei ali para acompanhar a manifestação canina, coloquei-me a correr pela escuridão da noite, logo a matilha me alcançou e ultrapassou, e então desapareceu do meu campo de visão, o pavor também estava presente neles. Sentia que algo se aproximava, mas não consegui olhar para trás, visualizei o conjunto habitacional que se estendia à margem da avenida, fixei nele o meu objetivo.
Já com a energia dando mostras de enfraquecimento, mirei o muro revestido de heras, eu podia jurar que o hálito quente do meu perseguidor chegava à minha nuca, com um salto agarrei o topo do muro, não liguei para a dor causada pelos cacos de vidro que se espalhavam por ali e que perfuravam a palma das minhas mãos, emiti um impulso e venci a barreira de concreto. O lado de dentro era muito mais alto, despenquei indo de encontro ao chão ladrilhado do pátio. Com as costas no solo e a mente rodando, passei a enxergar tudo turvo. Talvez fosse por obra do ambiente que me cercava agora, ou da luminosidade excessiva proporcionada pelos poderosos holofotes, ou pela atenção invocada e comprovada pelo pipocar repentino de várias lâmpadas nos apartamentos, ou mesmo pela presença dos vigias que se aproximavam. Talvez fosse pelo conjunto de tudo isso, só sei que as duas órbitas que faiscavam em cima do muro e que me encaravam com raiva e cobiça decidiram evadir dali. Era a deixa para que os sentidos finalmente me abandonassem, e assim desfaleci.
Quando acordei estava no quarto de um hospital, eu havia quebrado o braço esquerdo, a clavícula, e algumas costelas, fora as inúmeras escoriações, mas nada se comparava ao que acontecia com a minha cabeça, digo, no interior dela, nos meus pensamentos, tudo não parava de se repetir como um filme. Meus pais, por conta de toda a tragédia, não me questionaram sobre a desobediência, eles e todos os outros só procuravam confortar a minha alma pela perda do amigo. Muitas pessoas morreram naquela noite, disseram que o episódio fora causado por obra de um maníaco, num acesso de fúria, ele teria atentado contra a vida daquelas pessoas com objetos cortantes. Pura balela. E os policias? Será que homens armados e treinados seriam subjugados por um maluco munido com um facão ou coisa que o valha? Acredito que não, mas naquela época foi o que disseram para aplacar a opinião pública, chegaram até a prender um homem que fora encontrado nu e coberto de sangue no dia seguinte. Está certo que o sujeito não regulava muito bem das faculdades mentais, mas com aquele corpo franzino seria difícil fazer mal a alguém. O jornal local disse que vários cães o rodeavam, todos mortos, muitos outros o espreitavam à distância, não chegavam perto do infeliz. Ele foi levado para um hospital psiquiátrico, mas viria a fugir meses depois sob condições não esclarecidas. Por conta dos acontecimentos e dos traumas nos mudamos para um outro ponto da cidade, e eu nunca mais pus os pés naquele bairro.
Tenho trinta e quatro anos agora, e uma visão muito diferente da vida, mas sobre uma coisa mantive a mesma opinião, o responsável por aquele massacre não poderia ser humano, isso não. De fato eu não vi, não constatei, tive muito medo de olhar para o agressor, mas ainda que dominado pelo torpor da situação, pude notar a maldade irracional e crua na única coisa que consegui distinguir, o brilho daqueles olhos, e disso nunca esquecerei. Ainda hoje, quando observo através do grande vão do meu terraço, quando percebo um balão no céu junino, quando visualizo as árvores que se espalham unidas e firmes até se perderem no final dos morros, posso, de vez em quando, sentir o mesmo cheiro que invadiu minhas narinas naquela noite, experimentar o mesmo arrepio na espinha, tenho certeza de enxergar ao longe, o brilho malévolo daquele olhar.