Exorcízo te, omnis spíritus immúnde

Correndo, correndo o máximo que podia, mas o folego faltava, o corpo humano tem limites. E meu corpo já estava neste limite, mas parece que meus perseguidores não se enquadravam nos padrões de um humano comum, e ainda não sei dizer até onde vão suas forças. Antes de brincar com o oculto, eu deveria ter sido mais cauteloso, deveria no mínimo ter bom senso, mas não é o que ocorre quando você quer parecer o corajoso diante dos amigos e principalmente diante da garota por quem tem uma queda, mas o pior de tudo é agora ser perseguido por eles, e agora garota linda que me encantava os olhos, agora tornaram-se meu pior pesadelo. Nestas ruas escuras, molhadas com a fina chuva e por vezes escorregadias, eu fugia, procurando becos e encruzilhadas para despistar meu amigos de outrora. Já tarde da noite, as luzes precárias dos postes atrapalhavam minha vista já embaralhada, reflexos de minha mente embaralhada e confusa, estando agora simplesmente agindo por instinto, o instinto de sobrevivência. Valendo-se da minha boa forma física, tentava cada vez mais forçar minhas passadas, mas embora eu me escondesse para descansar ou tentasse despistá-los num beco qualquer, eles pareciam guiar-se pelo meu cheiro, feito cães de caça perseguindo sua presa, eu simplesmente não conseguia fugir deles. Sem muita opção, avistei a velha igreja na praça. Reunindo minhas últimas forças, corri muito, deixei-os para trás, e desesperadamente cheguei até a majestosa porta de madeira. Estava trancada, bati nela com força, gritei pelo padre Silveira, após tanto escândalo o padre veio até a porta. Enquanto o barulho dos ferrolhos abrindo a grande porta me aliviavam, ao mesmo tempo meu pavor também crescia, pois eles se aproximavam. A porta mal abriu, e eu a empurrei, quase derrubando o velho padre no chão.

- O que está acontecendo meu filho??? - Perguntou o padre tentando permanecer de pé, após ser desequilibrado com o empurrão da porta.

- Feche a porta! - Eu me adiantei e com força bati a pesada porta e fechei-a.

Em pouco instantes, já se ouvia as fortes batidas na porta. Parecia resistente, e eu esperava que sim, embora meu pouco senso de realidade me indicava que logo aquela porta iria abrir-se, que aqueles velhos ferrolhos iriam sucumbir às fortes batidas daqueles que me perseguiam. Padre Silveira tentava me acalmar e entender o que estava ocorrendo. Como poderia eu explicar que uma brincadeira de jovens inconsequentes havia trazido tal terror para o nosso mundo, e que agora me atormentam, me perseguem.

Muitos dias antes, nas conversas de rodinha de nossa turma, surgia os mais diversos assuntos. Ocasionalmente surgiam assuntos relacionados as antigas lendas urbanas, como a loira do banheiro, a boneca que te enforcava enquanto você dormia, a kombi com cortinas roxas, entre outras. As vezes esse assunto levava a considerações mais sérias, uns conheciam histórias do cunhado do amigo, que tinha um primo, que o tio.. enfim, alguém conhecido, que teve experiências com espíritos ou coisas do gênero. Quanto tal assunto chegava, o tom de brincadeira se perdia, um arrepio na espinha surgia em todos, parecia que quando iniciavam a conversa sobre as entidades do outro lado do véu, elas pareciam se congregar ali junto, trazendo as mais estranhas sensações... como aquela que há alguém atrás de você, ou a sensação que há alguém do seu lado, ou até mesmo em sua frente, mas seus olhos mortais não podem enxergar. Um de nós disse saber se comunicar com os espíritos, e que eles poderiam ser de grande utilidade, pois podem nos responder muitas perguntas e ver coisas que não somos capazes.

- Não me diga que é aquela brincadeira com o compasso! - Disse eu, querendo zombar do que meu amigo Júlio dizia.

- Não, isto é coisa que criança faz na escola...

- O que é então? - Perguntou Sara.

- A tábua Ouija. - Respondeu Júlio triunfante - Funciona como na brincadeira do compasso, mas usa-se um copo sobre uma tábua, com as letras e vários símbolos, esta tábua é a Ouija. Com quatro pessoas em volta da tábua, podemos fazê-la funcionar...

- E quem tem esta tábua? - Ana, a moça mais bela, por quem sou apaixonado, perguntou.

- Eu tenho! - Mais uma vez Júlio foi triunfante.

- Como conseguiu isso? - Perguntou Ana novamente.

- Comprei. Vocês se lembram daquela senhora estranha que tinha uma lojinha de produtos esotéricos? Todos diziam que ela era uma bruxa, outros diziam que ela era louca e alguns até mesmo diziam que ela compactuava com demônios. E como nossa cidade é pequena, logo a má fama dela levou-a a ruína. Falida, começou a vender tudo para poder ir embora. Quando a loja já estava bem vazia, resolvi passar por lá e ver se tinha algo interessante. Olhando aquela bagunça encontrei a tábua. Ela disse que não estava a venda, que aquilo não era brinquedo para um jovem. Intrigado, eu quis comprar, mas ela rejeitou e disse que eu não deveria brincar com coisa séria. No fim, ofereci um pouco mais de dinheiro, e ela aceitou, afinal precisava muito de dinheiro. Ela parecia arrependida, mas também não quis desfazer o negócio. A tábua ficou guardada muito tempo nas minhas coisas, achei recentemente, nunca usei, e nem sei se é real.

- Então vamos ver se isso funciona mesmo. Na sua casa ou na minha? - Aqui foi meu erro, querendo ser o corajoso para impressionar Ana, sugeri tal absurdo, sem conhecer o perigo que essa tábua Ouija representava.

- Tem certeza...? - Perguntou Sara.

- Claro! Vamos na minha casa então. Júlio, trás a sua tábua. - Minha burrice e insensatez diante do desconhecido mundo ao nosso redor, mais uma vez me fez fazer isso.

Reunimos-nos na minha garagem, onde poderíamos ter privacidade para nossa "brincadeira". Colocamos a tábua diante de nós, era estranha, com as letras em um formato antigo, com símbolos estranhos, não parecia nada bom. Colocamos um pequeno copo no centro da tábua, demos as mãos em círculo apoiadas sobre a mesa em volta da tábua. Todos de olhos fechados e Júlio começou a falar.

- Espírito da tábua Ouija, sabemos que está aqui presente, sentimos sua presença, manifeste-se.

Alguns tentaram seguram os risos, afinal era realmente ridículo aquilo. Mas Júlio insistiu, e como num passe de mágica, o copo simplesmente começou a balançar no centro da tábua. Neste instante, abrimos os olhos, vimos o objeto movendo-se sozinho. Naquele momento percebi que estávamos brincando com algo perigoso, todos ficaram tensos, sentíamos nas mãos uns dos outros. Estava muito bom segurar a mão de Ana, mas agora ela apertava com força, e eu apertava de volta, com medo. A tensão aumentou ainda mais quando percebemos que não podíamos soltar as mãos. Nossas mãos pareciam coladas por alguma força estranha, e o mesmo ocorria com nossos corpos, não éramos capazes de levantar das cadeiras, estávamos paralisados por esta força e também de medo e pavor, pois havíamos perdido o controle da situação.

- Quem está ai? - Júlio com voz assustada perguntou.

Desta vez o copo se moveu de forma ordenada, e formou uma palavra: M-A-U.

"Mau", não era exatamente o que queríamos saber, isto só piorou a situação, pois não entendíamos nada.

- O que é você? Um espírito? - Júlio tentou novamente.

E-S-P-I-R-I-T-O, pausa, N-A-O, pausa, D-E-M-O-N-I-O-S.

- O que querem??? - Júlio sem esconder os olhos lacrimosos continuou com aquela conversa insana.

C-O-R-P-O-S

Após isto, o copo começou a balançar e a tremer freneticamente até quebrar com violência. Os estilhaços voaram, cortando o braço dos três, menos o meu. O sangue deles escorreu para a tábua, e o fluxo de sangue na tábua seguiu para o centro, como se fosse atraído. No centro, os fluxos de sangue se misturaram e formaram um simbolo, era uma estrela de cinco pontas invertida, com a ponto para baixa e um círculo em volta. Um estranho símbolo foi desenhado no centro da estrela. E quando nosso terror já estava insuportável, as coisas que estavam em prateleiras na garagem simplesmente começaram a voar pelo local e a cair no chão, muitas coisas foram quebradas, era um pandemônio. Quando nada mais podia piorar, nossas mãos se soltaram, e logo percebi algo de errado com meus amigos. Olharam para mim, sem expressão, os olhos sem brilho, nem pareciam vivos. Júlio que estava exatamente na minha frente, num rápido movimento virou a mesa para cima de mim. Cai no chão sem entender o que estava acontecendo, e meu amigos vinham em minha direção, com feições e olhares tão terríveis que me fizeram sentir-me no inferno, pagando por algum pecado terrível. Percebi então que eles não eram mais meus amigos, e que os demônios que se comunicaram conosco conseguiram os eles queriam... CORPOS. Fugi dali, corri muito. Perdemos a percepção do tempo, já era muito tarde, quando na minha fuga procurei o padre Silveira.

Enquanto aqueles demônios tentavam derrubar a porta da igreja, expliquei rapidamente ao padre o que havíamos feito.

- Como puderam fazer isso? Vocês são inconsequentes! Não sabes que há demônios em todos os lugares, esperando incautos como vocês praticarem esse tipo de coisa, dando abertura para eles entrarem em nosso mundo. Tolos! Não se fala com os mortos! O que está morto, deve permanecer morto! Quem passou pelo véu, fica atrás do véu, e não volta! Mas o demônios estão por ai, fingindo ser tudo o que vocês querem ver, e assim ele faz de vocês marionetes!

- Desculpe padre! Eu não sabia... - Em prantos, tentava me desculpar.

- É claro que não sabe! Aposto que nunca estudou as escrituras sagradas que diz acreditar!

- E o que faremos?

- Temos que exorcizar esses demônios, não há outro meio, ou vão nos matar e machucar outras pessoas. Venha, logo eles vão arrombar a porta.

- Eles podem entrar aqui, dentro da igreja? - Perguntei desacreditado.

- Sim meu caro... eles podem!

Corremos para o altar, e quando lá chegamos, os demônios arrombaram a porta.

- Tarde demais, tenho que fazer aqui!

Padra Silveira desceu do altar, enquanto os demônios caminhavam da porta em nossa direção. Padre Silveira levantou a mãos e começou a falar:

- Exorcízo te, omnis spíritus immúnde, in nómine Dei + Patris omnipoténtis, et in nómine Jesu + Christi Fílii ejus, Dómini et Júdicis nostri, et in virtúte Spíritus + Sancti, ut discédas ab hoc plásmate Dei N., quod Dóminus noster ad templum sanctum suum vocáre dignátus est, ut fiat templum Dei vivi, et Spíritus Sanctus hábitet in eo. Per eúmdem Christum Dóminum nostrum, qui ventúrus est judicáre vivos et mórtuos, et sæculum per ignem. R. Amen.

Os demônios gritaram, contorceram-se, e caminharam com mais ênfase em nossa direção. Padre Silveira continuou a repetir as palavras que dissera, e os demônios pareciam estar sendo afetados enormente, mas não desistiram. Alcançaram o padre, jogaram-no ao chão e como bestas famintas iniciaram uma macabra degustação, mordiam e arrancavam pedaços do pobre padre. Ainda com as últimas forças que lhe restava, padre Silveira jogou um pequeno livro em minha direção e caiu morto. Enquanto os demônios se distraíam com o corpo do velho homem, rapidamente examinei o livrinho, e vi que continha as palavras de exorcismo que o padre proferira momentos antes. Assim como ele, levantei minha voz e falei aquelas palavras:

- Exorcízo te, omnis spíritus immúnde, in nómine Dei + Patris omnipoténtis, et in nómine Jesu + Christi Fílii ejus, Dómini et Júdicis nostri, et in virtúte Spíritus + Sancti, ut discédas ab hoc plásmate Dei N., quod Dóminus noster ad templum sanctum suum vocáre dignátus est, ut fiat templum Dei vivi, et Spíritus Sanctus hábitet in eo. Per eúmdem Christum Dóminum nostrum, qui ventúrus est judicáre vivos et mórtuos, et sæculum per ignem. R. Amen.

Fiz uma, duas, três vezes e os demônios se contorceram no chão. Os bancos da igreja pareciam carregados pelo vento, voaram para todos lados, e eu continuei a falar as palavras. Finalmente os demônios pareciam estar cedendo, e gritando horrivelmente deixaram os corpos de meus amigos, os bancos pararam e os três caíram desacordados. Tentando ainda entender o que aconteceu, vi meu amigos acordarem. Totalmente perdidos, eles viram o corpo do padre esquartejado em sua frente, viram suas mãos banhadas em sangue, sentiram o gosto do sangue em sua boca, e o pior, sentiram que haviam ingerido algo estranho. E pelos pedaços do corpo do padre que estavam faltando, entenderam que aqueles pedaços estavam em seus estômagos. Como se sofressem que alguma doença grave, começaram a vomitar, e muito, o chão tornou-se asqueroso, pois foram expelidos os pedaços que haviam ingeridos. Diante de tanto horror, os três vomitaram até não ter mais nada em seus estômagos e desmaiaram novamente.

Ao fim disto, meus amigos foram presos, como explicar isto para a polícia? Ficaram loucos, diziam ver os demônios, foram possuídos novamente, atacaram outras pessoas, até que acabaram mortos. Quanto a mim, segui o conselho do padre, resolvi estudar, e entender o mundo a minha volta... pois os demônios estão por toda a parte, pode ser que eu precise novamente mandá-los de volta...

LeoLopes
Enviado por LeoLopes em 24/08/2009
Reeditado em 24/08/2009
Código do texto: T1771010
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