Meu escapulário
O barulho de uma pesada tampa de concreto se abrindo.
Tiziano ouviu uma pessoa dizer:
_Opa! Este aqui ainda é novato.
Outra voz respondeu:
_ O que ele tem de valor?
_Nada._respondeu o primeiro.
Uma terceira voz entrou na conversa:
_ Cara! Muito estranho esse aí não é?
_É. Lívido como se fosse recente.
Um deles perguntou novamente:
_Ele não tem nada de valor?
Alguém respondeu prontamente:
_Aparentemente não.
Barulhos indistinguíveis.
_Me ajuda aqui, vamos checar. Pode ter algo escondido aqui dentro.
Outro emendou:
_Dá só uma olhada na roupa dele.
_Olha só; o cara tem um cordão que parece bem caro.
_O que tem nele. É um crucifixo?
_Não.
_Então o que é?
_ Acho que é um escapulário. Deve valer alguma coisa, parece ouro branco; se for, vai valer um dinheiro extra.
_Então pega.
Alguns segundos de silêncio
_ Pra que serve?
Não houve resposta.
_ Pronto. Peguei.
Logo um deles disse:
_Vamos andar logo com esse aqui, temos mais dois só esta noite. A grana vai ser boa.
_O que mais estamos procurando, além dos pertences valiosos?
_Não sei, mas o cara disse que era algo muito raro e saberíamos quando o encontrássemos.
_Tá frio._alguém reclamou.
_Continua procurando.
_Olha só o rosto dele, nem parece que está nessa situação.
Os três riam abertamente.
_Deixa de ser bobo... Situação, o cara já m...
Foi interrompido pelo comparsa.
_Que estranho, olha só; bati em algo dentro da camisa.
_Deve ter alguma coisa escondida aí com ele.
Mais risadas.
_Será que é algo muito valioso?
_ O cara prometeu pagar cinco “pilas”.
Dois deles se espantaram:
_Cinco Mil!?_ Disseram em uníssono.
Ao que o primeiro respondeu:
_Para cada um.
Mais felicidade.
_Puxa, vou me arrumar com essa dinheirama toda.
Outro disse:
_Eu nem sei o que fazer com tudo isso.
O terceiro:
Então acho bom nós acharmos logo essa “parada” e pularmos fora desse lugar.
Todos concordaram.
_Abre a camisa dele e vê o que tem dentro.
Silêncio.
Respirações ofegantes.
Silêncio novamente.
O clima se alterou.
_Cara, isso aí é muito esquisito.
Um falou baixinho:
_É aquele negócio de magia negra.
_Calado._ repreendeu o terceiro_ tira isso do peito dele.
_Eu não! Ficou doido. Tira você.
_ Caramba! Eu tiro. Eu deveria ganhar mais do que vocês dois, o trabalho pesado sobra sempre pra mim.
Som de esforço.
Respiração ofegante.
Barulhos estranhos, alguém caindo.
_Tá bêbado?_ brincou um deles._Puxa com força.
_Cala a boca. Já tirei.
_ O que é?
_ Uma madeira.
O som ritmado e surdo de uma batida. Depois outra, é outra, e mais outra...
Cheiro de oxigênio noturno misturado ao orvalho.
Pensamentos diversos inundando sua mente.
Vozes distantes; homens, mulheres, crianças, idosos. Barulhos diversos; carros, motos, gritos e muitos outros.
Cheiros aos montes; perfumes, odores adocicados e outros não, relva, flores, lixo e decomposição.
Ruídos de animais, roedores, cães, gatos; o bater de asas de pássaros ou morcegos e uma infinidade sonora.
Forças novamente.
Sentimentos no ar. Apreensão, ansiedade e receio.
Uma dor lancinante se irradiando do peito para o resto do corpo.
_ Essa madeira estava enfiada nele?!_ perguntaram dois.
_É; não está vendo.
_ Vamos sair fora. Fecha o caixão; ele não tem nada mais de valioso a não ser o tal escapulário.
Uma rápida consulta na mente dos outros três, uma torrente de vibrações; dias, meses, anos e algumas impressões.
Mais dor...
...Fúria...
...Fome.
Os sentimentos no ar se transformaram em algo mais familiar, mais doce, muito mais saboroso. O medo.
Um deles disse em tom nervoso:
_Fecha logo isso; tem algo errado.
O rigor mortis já não o dominava mais.
_Ai, ai, ai; ele se mexeu.
_Ficou louco rapaz, o cara está morto.
A respiração voltou, o coração batia forte e compassado de novo não obstante a fenda em seu torax, o tato se reestabelecera, as suas memórias já tinham retornado.
O primeiro pensamento brotou das sombras da mente:
“Eu sou Tiziano, o venerável”.
A dor alcançou seu clímax, fustigando o interior do outrora morto e explodiu tão atrozmente que apenas uma coisa podia acontecer.
Tiziano ergueu-se do túmulo como um relâmpago, deflagrando um bramido gutural e inumano.
Um dos três homens que estavam roubando as sepulturas naquela noite caiu no chão em um baque surdo, o susto foi o suficiente para lhe roubar a vida.
Tiziano tremia violentamente e seu fôlego parecia não se esgotar, o grito medonho permanecia. Os outros dois já tinham corrido.
_O morto!_gritavam_ O morto voltou! O morto voltou.
Finalmente o rugido cessou e o ex-morto olhou para o homem caído próximo a ele, o coração do homem não batia mais, estava sem pensamento algum; já não pertencia mais a esse lado. Os outros dois já tinham escapado; não estava nem pensando neles.
Abaixou e recolheu o que o homem segurava, a estaca de madeira que tinham retirado de seu peito e o escapulário, que lhe pertencia, o qual colocou no pescoço novamente.
_Meu escapulário._ disse. Respirou fundo, estava livre e tão vivo quanto sua natureza permitia.
A dor permanecia.
A fúria também. Mas agora algo novo nascia; desejo.
Olhou em volta, estava num cemitério; ouvia as vozes ao redor, vivos e mortos; seguiria as vozes dos vivos, se alimentaria, e seria como outrora. Um deus das sombras entre os vivos; poderoso e indefectível, tinha muito a fazer.