ELA

Um suspiro, uma reação usual do corpo diante de uma situação adversa. Mãos trêmulas, ensopadas pelo líquido salgado e frio que o corpo não cansava de expelir. Medo? Sim, ela sofre com o aperto no peito e a aterradora sensação de impotência, mas não é só isso, não se trata apenas da ação do infalível e inegável sentimento. Sua alma está pesada porque a situação a deixou enclausurada, acorrentada a um dilema de improvável solução. Eu a conheço bem, na verdade, acompanho essa jornada desde antes de sua chegada física a esse mundo, sei tudo sobre a vontade infinita que antecedeu a sua desejada existência. Os filetes escarlates que escorrem sobre sua delicada e alva tez, resultado da automutilação, evidenciam que o estado emocional no qual se encontra está além de seu domínio, não a recrimino por isso, não sei se agüentaria estar em seu lugar.

Muitas foram as tentativas para que o ventre de sua mãe fosse agraciado com a tão sonhada dádiva, no entanto, para o infortúnio da desesperada mulher, todas se mostraram infrutíferas. Longos anos de luta e decepções se passaram sem que o fruto da união do casal conseguisse germinar, então, numa noite extremamente clara, onde o manto celeste mostrava-se salpicado por inúmeros pontos luminosos e a rainha dos céus se exibia plena em seus contornos, ela foi surpreendida pela aparição de um anjo, e este lhe disse que seria necessário envolver-se na fé e que prometesse de todo o coração que a vida que desejava gerar fosse dedicada, devota e comprometida a esta aceitação.

Talvez a ansiedade, que lhes corroía e que se revelava mais proeminente na alma aflita da mulher, tivesse, de alguma maneira estranha, sido revertida para a criança que se formava, pois antes mesmo de sete meses terem se passado, dores infindas começaram a assaltar o corpo e a torturar a mente da futura mãe. Um turbilhão de maus pensamentos desciam como uma cascata repleta de pânico e maus presságios, ela já experimentara situações parecidas anteriormente, e estas se mostraram terrivelmente frustrantes, ao ponto das marcas do desapontamento ainda arderem em seu peito. Não, ela não poderia sofrer novamente, não agüentaria, a sua humanidade já estava despedaçada e a lucidez a ponto de desaparecer por completo.

De fato, montanhas poderiam ser movidas, assim ela pensava. Com o rosto lavado pelo líquido que brotava em profusão dos dilatados poros, com o cansaço extremo quase lhe abatendo, com uma dor absurda a lhe açoitar, ainda assim estava realizada. Contra todas as perspectivas um som agudo e estridente preenchia os seus ouvidos, dando como certa a realização da sua mais preciosa vontade e deixando-a convicta de que a promessa feita fora a responsável pela felicidade alcançada. Não conseguiu conter as lágrimas ao deslizar os olhos pela menina, uma delicada e fina penugem dourada se estendia por toda a sua cabeça, a expressividade das exuberantes safiras estampadas no rosto angelical não denunciavam ser ela uma prematura.

Dezoito anos se passaram, plenos de realizações e contentamento. A menina crescera rodeada por requintados cuidados, tudo para que se tornasse uma fervorosa e devota praticante dos ensinamentos invioláveis, como deveria ser. Sua dedicação era tamanha e sua influência inegável, ela detinha um carisma que chegava ao ponto de ser algo magnético, era uma verdadeira referência dentro da comunidade. No interior do seu coração ela sabia que nada era por acaso, estava claro e evidente que ela teria uma missão a cumprir na vida, só não sabia exatamente o que.

Mas, como nem todos os questionamentos ficam insolúveis para sempre, numa noite de semelhante esplendor, o anjo visitou mais uma vez a sua mãe, dando conta em seu relato de que um grande acontecimento estava prestes a surgir e que esse fato iniciaria uma onda de danação absoluta, derramando um mar de pragas e dor sobre todos os viventes desse mundo em perdição. Ela, a menina, precisaria estar nesse lugar, na hora exata, e então deveria fazer uso da força que surgira com o seu nascimento e do conhecimento que acumulara nesses anos, o destino da humanidade dependeria única e exclusivamente dela.

Ela chorou ao saber do sacrifício que deveria fazer para que tudo ficasse bem, para que as coisas dessem certo, mas o preço a ser pago era deveras alto, até mesmo para ela, que entendia tão bem dos caminhos tortuosos que se revelam ao longo da vida. Porém, mesmo com o coração despedaçado ela se prontificou a rumar para o caminho final e enfrentar o destino a ela reservado, não haveria jeito, a dor faz parte da vida e o bem maior, o coletivo, deveria ser colocado acima de tudo, ela esperava que, ao menos, o ato que estava prestes a cometer ficasse gravado para sempre na memória de todos os beneficiados.

A fatídica noite não apresentava os mesmos contornos radiantes, longe disso, mostrava-se escura e melancólica, exalava indícios de que nada de bom poderia surgir num ambiente assim. E foi desta forma que rumaram, ela, os pais, e todos os outros membros da instituição religiosa, todos compartilhavam do mesmo temor, da mesma aflição. Chegaram a um grande descampado, as trevas estendiam-se além do campo de visão, ventos traiçoeiros cortavam os céus anunciando que algo grande e aterrador começava a acontecer.

A relva ressequida, os galhos trazidos pelo vento, as pedras cobertas de limo, tudo se movimentava na direção do grande vão que surgia como uma desfigurada boca escancarada no chão barrento. Um imenso calor rodeava toda a extensão do vale, o ar tornava-se pesado e nauseante, sombras distorcidas escapavam da cratera, as figuras, que de início se mostravam disformes, começaram a tomar contornos aterradores, deixando perplexos os espectadores de tão macabra manifestação. Ela conhecia as regras do jogo, tinha plena consciência de que precisava cumprir a missão que lhe fora atribuída, no entanto, a coragem para tal parecia lhe faltar, olhar para o canal aberto e contemplar os diferentes demônios que dali surgiam para reclamar seu espaço nessa terra, não a fortalecia em nada.

As unhas deslizavam pelo rosto, o sangue escorria, tufos dourados enchiam-lhe as mãos, desespero absoluto. A turba, antes solidária em seu pesar, agora exigia que tomasse a atitude definitiva, os cães das terras esquecidas dominariam o plano humano, ela precisava agir. Seus pais permaneciam deitados no solo, prostrados e entregues, aguardavam conformados pelo toque da lâmina da enviada do anjo.

O fio selvagem do aço reluziu mesmo com a ausência de qualquer luminosidade que pudesse incidir sobre a superfície metálica. Mais e mais demônios surgiam, parecia o fim do mundo como conhecemos, a lâmina riscou o ar num círculo perfeito, para em seguida encontrar-se com a pele macia do alvo. A imensidão rubra envolveu por completo o frio metal, as delicadas mãos não abandonaram o cabo amadeirado, nem mesmo quando suas forças começaram a enviar os primeiros sinais de abandono. Ela não conseguia ouvir os gritos enfurecidos das pessoas, nem perceber as sombras retornarem como um turbilhão, nada no mundo exterior parecia fazer sentido. De fato, ela só conseguia olhar para o chão, sentir seus joelhos dobrando e sua vida se esvaindo. Tudo acontecia em breves instantes, mas esse intervalo se mostrava mais do que suficiente para que os fatos voltassem à sua mente com uma força avassaladora.

O anjo negro revestido por escamas e garras que visitara a sua mãe, a promessa feita de total entrega, obediência e servidão em troca do seu nascimento, os estudos e a prática das artes escuras, a liderança e a influência que conquistara perante os demais adoradores. Os ritos, a morte, a dor. A chegada do mestre eterno, a missão a cumprir, seu papel nisso tudo. Ela nascera, sim, viera ao mundo para preencher a lacuna na vida de seus pais, entretanto os meios para que isso fosse possível exigiria um preço, ela estaria disposta a tudo, até mesmo perder a vida. Decidir acabar com a própria existência se mostrara como única alternativa. Com sua morte, os demônios não preencheriam de dor o espaço vivo, paciência, seria um sacrifício a fazer, uma outra oportunidade para os irmãos das trevas haveria de surgir, mas o que ela não conseguiu e sabia que nunca conseguiria era ceifar a vida dos próprios pais, a oferta definitiva. No fim das contas, ela, o elo de ligação entre os mundos, se mostrava mais humana do que seu lado demoníaco poderia supor, e antes de cerrar para sempre a luz de suas safiras, olhou para eles e pensou: “Quem sabe era para eles nunca terem sido pais, espero que me perdoem”.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 20/08/2009
Código do texto: T1764551
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