A Maldição de Kermit

Kermit era temido por todos da cidade, disso ninguém tem dúvida. Os que não o temiam pelo que se falava acerca dele, temiam por seus costumes um tanto quanto estranhos. Ninguém conseguia uma comunicação com ele que passasse de monossílabos vagos, exceto eu. Eu era a única pessoa próxima dele; a única mesmo. Eu era seu mordomo, confidente e único amigo.

Ele me pagava uma pequena fortuna, muito mais do que qualquer outro pagaria. Certamente pagava isso pela minha discrição e amizade para com ele quando ninguém mais queria tê-lo por perto. Não possuía cozinheira, pois sua comida era consumida crua.

Não sei se o temiam só pelas histórias, ou se temiam também seu olhar penetrante e movimentos tão firmes e precisos que acho que atordoariam até um tigre.

Certa vez, em uma das quais comprava enormes quantidades de carne, seu olhar frio e penetrante assustou tanto o açougueiro do mercado que o mesmo deixou a faca cair e ficar cravada em seu pé. Como de costume Kermit não esboçou reação alguma ao ver o açougueiro sangrando e gritando.

Agora vou lhes contar exatamente como tudo começou. Kermit fora uma criança estranha com uma infância estranha, marcada por desgraças e acontecimentos surreais. Seu corpo sempre foi um enigma para os seus pais, seus dentes do leite nunca caíram, e ao despencar do terceiro andar, nenhum osso se partiu. Nas brigas que teve na escola, sempre levava a melhor, e o adversário sempre parava no hospital com ossos quebrados. Tinha uma força além do comum e uma agilidade inumana. Kermit seria capaz de derrubar cinco pugilistas em cinco segundos sem que nenhum lhe oferecesse risco.

As mudanças estranhas em seu corpo começaram junto com as mudanças naturais; na puberdade. A medida que seu corpo crescia, suas costelas pareciam sumir e pêlos não cresciam em seu corpo branco, exceto seu longo cabelo negro. Com a falta de algumas costelas, e suas habilidades naturais, sua elasticidade invejaria qualquer monge. Aos quinze anos seus passos eram firmes e graciosos, sua força era como de um leão e sua velocidade como a de um guepardo.

Aos dezessete, seus pais foram assassinados no que a policia classificou como ataque de animais selvagens, porém a perícia identificou as mordidas que dilaceraram os dois como humanas. A noite era um enigma para Kermit, que acordou ao lado dos pais sem marca alguma, e que mesmo depois de diversas sessões de hipnose, continuava incógnita.

Aos dezoito era o único na cidade que possuía um saldo bancário com oito dígitos, herança de seus pais milionários, e recusava todas as propostas das faculdades que se interessavam pelo seu intelecto e brilhantismo em tudo que fazia.

Agora vem a parte importante da história, afinal não estou escrevendo uma biografia. A essa altura, vocês já devem ter uma idéia do que o Kermit era. Não era nada que se pudesse descrever ou ter uma base histórica, não podia ser comparado a personagens de histórias, mitos ou lendas. Ele era como um animal selvagem. Ele não era mau. De forma alguma ele era mau. Porém, mesmo suas fartas refeições de carne crua não satisfaziam seu desejo. Como um felino, possuía dentro de si um instinto caçador que não podia ser dominado. Por mais que tentasse, seu instinto era mais forte e indomável, e acabava sempre... acontecendo.

Suas caçadas aconteciam em momentos de fraqueza de sua mente, e que depois tornavam-se para ele como um monte de imagens embaraçadas e sem sentido. Ás vezes conseguia ver a face de suas vítimas, mas geralmente ele dilacerava tão rápido que não conseguia vê-las. Boatos surgiam acerca dele, envolvendo-o nos assassinatos, porém nunca foi visto ou provado nada. Sempre que Kermit retomava sua consciência, já estava limpo, e aí então vinha a pior parte.

A depressão e o sentimento de culpa corroíam seu coração quase humano, e ele fazia questão de, depois dos enterros, colocar flores para todas as suas vítimas. A depressão não o abandonava, assim como a dor nas mãos e nas solas dos pés pelos ferimentos decorrentes das perseguições selvagens de sua veloz caçada. Seu corpo também ficava marcado por inúmeros galhos que o feriam durante sua corrida frenética.

O alto da colina onde morava – praticamente se escondia – era a única coisa que o mantinha seguro dos familiares das vitimas. Alguns não acreditavam nos boatos, mas os que criam, queriam matá-lo já que a justiça não conseguia incrimina-lo.

Até então, isso era o que importava: ele não me fazia mal, eu gostava dele e acima de tudo, ele não era culpado pelos seus atos. Por isso, por tanto tempo escondi esses fatos, mas agora, devido as circunstâncias que narrarei a seguir, serei obrigado a confessar-lhes a pior coisa que já fiz na vida.

Kermit tinha saído para caçar. Sem dúvida ele tinha ido caçar, pois suas vestes estavam na porta de entrada e a mesma porta estava entreaberta. Fui para o meu quarto, no andar mais alto da mansão, e fiquei apreensivo como em todas as vezes que ele saía para caçar. Sempre temi que algo acontecesse com ele, mas no fundo sabia que nada nem ninguém conseguiria atingi-lo. Com minha luneta olhei pela janela, e o vi agachado, as mãos no chão como um tigre que se prepara para atacar. Muito tempo se passou sem que ele se mexesse um centímetro. Ele tinha realmente uma paciência felina. Ao longe avistou uma presa. Era uma menina e devia ter uns dezoito anos. No momento em que ela o viu, eu vi em seus olhos que ela sabia que a morte era certa, e meus olhos lacrimejaram na hora. Foi tudo muito rápido. Ela tentou fugir, inutilmente; ele saltou sobre ela com graciosidade e fincou seus dentes no pescoço da jovem moça que se debatia. E então cessou. Ela parou de se debater e ele começou a comer suas entranhas. Ele levantou a cabeça e cheirou o ar, e de repente pulou na vegetação e tornou a subir a colina. Aí então não consegui mais acompanha-lo.

Deitei em minha cama, com aquele sentimento de repulsa e enjôo tomando conta de mim. Mas acima de tudo, sentia ódio, e talvez, acima do ódio, pena. Pena da menina, pena de Kermit. Ele seria um ser perfeito, mental e fisicamente; completamente superior a mim ou a vocês, não fosse essa maldição que o acompanhava. Não fosse essa “sede” de caçar, esse desejo incontrolável que dominava seu ser.

Ouvi então a porta bater. Ele tinha chegado. Descia as escadas quando ele me lançou um olhar penetrante e lamurioso, nem precisava ser dito nada, nem de mim nem dele. Com as roupas mal vestidas passou pela cozinha, pegou uma garrafa de rum e foi para o escritório. Lá virou uma grande quantidade da bebida e jogou-a na parede infestando o ar com o cheiro do álcool. No chão, ele caiu encolhido chorando. Certamente pelo fato de ter tirado a vida de uma pobre menina.

Eu não suportava mais aquilo. Acontecia cada vez com mais frequência. Cada vez era maior o sofrimento, tanto dele, quanto das vítimas, que agora já deviam ser quase uma centena. As pessoas já não saíam de noite. Poucas tinham tanta coragem a ponto de fazê-lo. Alguns andavam armados, mas isso não resolvia; acabavam mortos do mesmo jeito. A cidade ficava caótica e macabra.

Então, em meio a melancolia, tanto da cidade quanto de Kermit; em meio à minha própria melancolia, decidi fazer o que eu mesmo não esperava de mim, e que Kermit certamente também não esperava. Não de mim.

Foi numa noite fresca em que ele tinha voltado da caça. Estava embriagado – o que agora era cada vez mais frequente para tentar se livrar da culpa. Me aproximei dele, como sempre fazia para tentar consola-lo, e saquei um machado que antes escondia em minhas costas e investi contra ele. Ele desviou se abaixando mesmo embriagado por causa de seus reflexos incríveis, mas então lhe chutei a face, coisa que jamais alguém havia conseguido fazer antes, e antes que o mesmo retomasse o equilíbrio acertei o machado em sua cabeça, fazendo o mesmo ficar cravado em seu crânio semi-aberto. As lagrimas caíam dos meus olhos e eu caí de joelhos. Os olhos dele piscaram, e quando se foi de vez, seus olhos continuaram abertos, naquele olhar penetrante, vidrado nos meus, que fez com que eu me sentisse ainda mais culpado. E agora, decido acabar também com minha própria vida, e por isso lhes mando esse relato, pois sei que irá para todos os jornais e revistas, e tranquilizará as pessoas, acalmará os corações dos familiares das vitimas do meu grande amigo Kermit e trará de novo a paz a seus corações.

Adrian O’Dile.

Derek Mendonça
Enviado por Derek Mendonça em 18/08/2009
Código do texto: T1761600
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.