SELVA

Quando acordamos, a situação apresentava-se um pouco melhor do que na noite anterior. A tempestade que nos pegara de surpresa havia dado lugar a um céu aberto, nenhuma nuvem ofuscava o brilho radiante do sol. Não havia sobrado nada do nosso equipamento, o bote que utilizávamos para a prática do rafting noturno simplesmente desaparecera por obra do caudaloso rio e de sua fúria que nos abraçara e arrastara em meio as rochas por longos metros. Estarmos vivos já era algo para se agradecer, querer que as mochilas estivessem intactas já seria pedir demais.

A posição de guia me colocava como responsável por aquele grupo de jovens, mas a verdade era que eu não fazia a menor idéia de onde havíamos parado. Não fazia sentido, eu conhecia toda a região, mas, de forma incompreensível para mim, o rio nos jogara em alguma parte da floresta que não constava nos mapas. Eu não poderia dar sinais sobre a situação para não causar pânico, era necessário manter a calma antes de qualquer coisa.

O ambiente que nos rodeava era formado pelo pequeno lago, de onde saímos, mas nele não havia nenhuma conexão com o rio que nos trouxera. Árvores altas e unidas formavam um círculo ao redor do espelho d`água, completando o cenário. A única menina do grupo, Ana, apresentava sinais claros de medo, ela estava confusa, não a culpo por isso. Falei para ela e para os três garotos que precisávamos cruzar a floresta, não havia outra alternativa, o dia claro ajudaria...

Pelo menos era assim que eu pensava até cruzar os primeiros troncos e notar que gradativamente a luminosidade, que antes abundava, tornava-se rara, para em seguida praticamente desaparecer. Olhei para trás, mas não havia mais qualquer sinal da clareira e do lago. Conforme andávamos, eu tinha a nítida impressão de que estávamos sendo observados, não sei explicar, era como se estivéssemos atravessando uma passarela perante milhões de olhos, mas não havia ninguém ali, nenhuma viva alma para nos fazer companhia.

Lembrei do pequeno canivete no bolso, tomei-o nas mãos e com ele decidi marcar a casca das árvores no intuito de identificar o caminho. Com a primeira investida da lâmina veio junto um som aterrador, era um grito agudo e profundo, os garotos, que até então se faziam de fortes, desabaram num pranto incontido, quase beirando à histeria. Eles me questionavam sobre o que estaria acontecendo, e eu me via na delicada situação de não ter o que responder. Ana escorava-se em um dos troncos, a copa das árvore deveria estar a metros de onde ela se colocava, no entanto, mesmo com a fraca luminosidade, pude perceber claramente os cipós e galhos descendo sorrateiramente pelo imenso cilindro de madeira. Ao notar algo sobre seu corpo, ela gritou mais uma vez, e então um daqueles tentáculos vegetais projetou-se através de sua boca, quebrando-lhe os dentes e invadindo a sua garganta. Os garotos correram, eu fiquei, na tentativa de ajudá-la, mas percebi que já não seria possível fazer mais nada. Os galhos revestidos de folhas escuras já haviam enlaçado o seu corpo, conforme pressionavam contra o corpo da menina, filetes de sangue escorriam pelos seus poros dilatados, pelas narinas, olhos e ouvidos.

A essa altura eu partia de forma desabalada ao encalço do resto do grupo. Ricardo estava parado no meio do caminho, seu olhar estava petrificado, eu sacudia o seu corpo tentando tirá-lo do transe, ele nada dizia, apenas esticou o braço, virei os olhos na direção em que apontava, então entendi. Maurício, o mais novo, estava deitado de braços abertos, não havia mais nenhum vestígio de suas vestes, os arbustos que lhe serviam de leito preparavam-se para investir contra a sua carne, e as folhas e espinhos que constituíam a estrutura vegetal apresentava um apetite indescritível, em instantes os ossos do garoto se exibiam sobre o manto verde.

Coloquei Ricardo nos ombros e procurei sair dali sem olhar para trás, venci alguns metros, mas a relva enroscava-se em meus tornozelos, quanto mais força eu fazia para desvencilhar-me, mais elas se enlaçavam em mim, a pressão era tanta que fui ao chão. O garoto rolou e logo foi envolvido pelos fios afiados que brotavam do solo. Com o canivete eu cortava as malditas ervas rasteiras que insistiam em me manter preso. Ricardo estava imóvel, os finos tubos naturais sorviam o líquido que vertia do corpo retalhado.

Quando consegui vencer a vegetação rasteira, já tinha em minha mente que seria impossível sair com vida daquele inferno verde. A esperança abandonava o meu corpo como o sangue que escapava dos ferimentos em minhas pernas. Eu corria e gritava, chamava por Caio, o último dos garotos, mas apenas um silvo agudo ribombava pela mata como resposta. Continuei pela única direção que se oferecia a mim, eu pensava se não seria melhor desistir, sentar e esperar pelo inevitável, prolongar o sofrimento não me parecia agradável, mas a idéia de morrer daquele jeito também não, assim permaneci na fuga, sem saber para onde, sem saber como, pois já não havia forças correndo em mim, mas as pernas não paravam e continuavam a se mover mesmo assim.

Ouvi meu nome ser chamado no mesmo instante em que notei um ruído familiar, era água! Por sorte estavam vindo da mesma direção, então corri o mais rápido que pude. A trilha levava até um precipício, era uma espécie de poço, no fundo dava para perceber o leito do rio, era a saída dali! Então ouvi meu nome novamente, foi quando percebi que era Caio quem me chamava. Suas pernas estavam presas a um longo cipó que o arrastava lentamente, um tronco aberto e revestido por inúmeras protuberâncias que lembravam dentes o aguardava. Ele implorava para que eu o ajudasse.

Preparei-me para seguir em sua direção, mas um outro fato me impediu. Um fina camada vegetal começava a se formar sobre a entrada do poço, logo a rota de fuga estaria lacrada. A dúvida me consumiu por alguns instantes, eu não sabia o que fazer, então apertei com força o cabo do canivete e me joguei na abertura que se fechava. Antes de cair, ainda olhei para o rapaz, e o que vi nunca mais deixará a minha mente, a feição de seu rosto, a incredulidade, o medo, a dor. A árvore já devorava os seus pés enquanto ele se agarrava ao solo numa tentativa improdutiva de fugir da criatura.

Senti a água gelada me envolver e o meu corpo ser levado, então perdi os sentidos. Quando acordei estava em um hospital, não tenho a menor idéia de como fui parar lá. Estava aliviado, mas os rostos daqueles jovens não desapareciam da minha cabeça, senti que eles se tornariam fantasmas a me atormentar pelo resto da vida. Permaneci enclausurado por aquelas paredes brancas por algum tempo. Não fui responsabilizado pelas mortes causadas pela acidente com o bote no fenômeno inexplicável da repentina tempestade. As autoridades assim acharam, e deixei que pensassem dessa forma, tudo fora culpa da maldita tormenta.

Em algumas semanas fui para casa, e então procurei dar continuidade a minha vida, não falei e nunca falaria com ninguém sobre o acontecido. Dias depois recebi uma encomenda expressa, era do hospital, abri a caixa e deparei-me com os pertences que estavam comigo naquele dia fatídico; roupas, relógio, o pequeno canivete e os tênis, eles haviam esquecido de entregar-me na ocasião da alta. Fiquei enfurecido com aqueles objetos, só me traziam más lembranças, tomado pela ira atirei-os pela janela, no dia seguinte trataria de dar um fim definitivo a toda aquela tralha, só não os queria dentro da minha casa.

A noite chegou e adormeci ali mesmo, na sala, sendo embalado pela vontade do líquido que horas antes enfeitava o interior da garrafa, o demônio etílico corria feliz em minhas veias. Lá fora, os vestígios da relva que estavam incrustados no solado do par de tênis começavam a flertar com o gramado do meu jardim. A comunhão entre a vegetação mostrava-se perfeita e crescente, sob a testemunha da lua, as heras que estendiam-se sobre os muros e paredes da residência começavam a se mover, logo alguns tentáculos entrariam pela janela aberta e me fariam uma visita. Aquela noite se mostraria longa...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/08/2009
Reeditado em 07/06/2013
Código do texto: T1752195
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