A MULHER DA ESTAÇÃO CENTRAL
Olhei para o meu pulso, o relógio marcava meia-noite e cinqüenta e oito minutos, deixei escapar um suspiro de aflição. Respirava entrecortado enquanto corria pelas ruas desertas do centro da cidade, havia razão de ser na pressa, se eu não cruzasse o portão da estação central do metrô antes de uma da manhã, estaria fadado a ficar sem meios de retornar para casa, pois a única alternativa seria o ônibus, mas este, só depois das três...
Dobrei a esquina e já conseguia avistar a entrada do meu destino, era possível visualizar, também, a silhueta do vigia noturno, em suas mãos estavam a pesada corrente e o cadeado que poderia selar a minha permanência no lado de fora. Ele era extremamente metódico, depois que trancava o portão não havia jeito, mesmo estando ao lado da grade com as chaves na cintura. Mais de uma vez havia dado as costas para as minhas súplicas. Mas hoje seria diferente, ele não me deixaria com a cara nas grades, não mesmo, hoje não.
Ele já estava puxando a grade pelo trilho, acelerei o passo e praticamente me joguei pelo estreito vão que ainda restava, quase fui ao chão com a manobra desengonçada, o maldito ainda riu de forma debochada. Fico me perguntando se esse infeliz depende do transporte público...
A estação estava extremamente vazia, na verdade, eu era a única pessoa que cruzava aquele salão amplo e mal iluminado, o que era estranho para uma quarta-feira. Desci as escadas com pressa, afinal o trem chegaria em instantes, porém mesmo movido pela vontade inquestionável dos ponteiros do tempo, não pude deixar de notar que havia algo diferente naquele lugar, alguma coisa não estava certa, não se encaixava com o ambiente familiar com o qual estava acostumado.
Conforme eu descia as escadas, os degraus que estavam diante de mim ficavam mais estreitos, parecia que o caminho afunilava-se gradativamente, além disso, este dava sinais de ser bem mais longo do que o habitual, praticamente não dava para enxergar o final da escadaria, apenas um pequeno ponto luminoso se mostrava ao longe.
Cessei os meus passos e olhei para trás, mas o que vi também não condizia com a realidade que instantes atrás eu havia cruzado. Atrás de mim os degraus estendiam-se para o alto como se eu tivesse descido quilômetros ao invés de apenas alguns metros.
Fui acometido por uma dúvida, subir ou descer? Antes que eu pudesse tomar qualquer decisão a resposta jogou-se sobre mim quando o caminho de volta praticamente desapareceu tomado pela mais completa e absoluta escuridão. Simultaneamente senti um aperto no coração, como se o músculo estivesse sendo comprimido por um mão forte. A luz trás esperança, e por isso segui o caminho traçado originalmente, parecia que a descida não teria fim. Os ponteiro do meu relógio apresentavam uma teimosia insistente, haviam travado desde o horário de fechamento da estação, nessa altura parecia que eu havia caminhado por horas sem chegar a nenhum lugar, foi quando a luz que eu enxergava distante derramou-se subitamente sobre mim, cegando-me temporariamente.
Quando acertei meu olhos, notei que estava em um terminal, embora este desse sinais evidentes de não ser o mesmo local onde eu havia me acostumado a freqüentar, e onde eu desejava mais do que nunca estar. A estação dava mostras de ser antiga, mas não como aquelas que apresentam uma arquitetura de uma época remota e que ostente conservação por conta disso, não mesmo, a atmosfera que rodeava o lugar exalava velhice, putrefação, remetia a uma sensação de extrema melancolia e mau agouro.
A luz que eu havia notado parecia ter origem nos estranhos tijolos brancos que espalhavam-se de forma simétrica por todas as paredes e divisões do lugar. Ainda que tomado pelo receio, toquei com as pontas dos dedos um desses tijolos, e a sensação que tive foi de frio, um frio intenso, o bloco de argila revestida pela camada branca parecia composta de gelo, mas não era. Não sei exatamente do que eram feitos, porque em seu interior parecia tremular uma pequena chama, que seria responsável pela luminosidade, mas não transmitia nenhum calor, só frio, frio e um terrível mal estar, uma certeza de que nada de bom poderia existir novamente.
Retirei a mão da parede tomado pelo desespero, o ímpeto do gesto somou-se à fraqueza de minhas pernas, e o conjunto desses fatos fez com que, desta vez, eu não escapasse da inevitável queda, bati com a cabeça no assoalho escuro, uma camada de poeira desprendeu-se do solo fazendo surgir uma nuvem composta de partículas esquecidas pelo tempo. Tão logo o ar impregnado por esse pó chegou aos meus pulmões, fui invadido por um acesso de tosse incontrolável, conforme eu tossia, uma dor lancinante me açoitava, era como se punhais me ferissem de diferentes formas, expeli um líquido gosmento, uma mescla de saliva, sangue e algo mais que não pude precisar exatamente o que era. Fiquei um tempo ajoelhado tentando retomar o controle sobre meus atos, foi quando a notei.
Do outro lado dos trilhos, meio que encoberta pela escuridão, tendo os contornos do seu corpo destacados ocasionalmente pelos flashes que tremeluziam oriundos dos tijolos brancos, estava uma estranha e perturbadora figura. Seus traços delgados e peculiares davam conta de que seria uma mulher, trajava um vestido em farrapos, de coloração desbotada e que deixava partes de seu corpo à mostra. Ela permanecia de cabeça baixa, ocultando o rosto, os cabelos escuros, longos e volumosos encobriam-lhe a frente do corpo quase que de forma completa. A pele pálida de seus braços apresentavam alguns ferimentos e hematomas.
Não posso negar que aquela visão soturna me apavorou de forma intensa, tanto que o mal estar que me consumia, desapareceu por completo, como por um passe de mágica. Coloquei-me de pé, não conseguia desgrudar os olhos dela, e como se pudesse entender o que se passava dentro da minha mente, ela lentamente começou a erguer a cabeça de maneira que seu rosto finalmente pôde ficar à mostra, ainda que entre algumas mechas do desgrenhado cabelo que ainda insistiam em ocupar aquele espaço. Sou incapaz de reproduzir com palavras o que senti quando seus olhos cruzaram com os meus, as órbitas negras mostraram um futuro imediato e irreversível, um mar de dor e lamentação onde eu estaria submerso implorando por uma misericórdia que não chegaria.
Gritei e ela fez coro à minha voz, e o som produzido ribombou pelas paredes alvas, crescendo, aumentando a intensidade até beirar o insuportável e me levar mais uma vez ao chão, dominado pela dor. O assoalho de peças negras recebia o gotejar do líquido vermelho proveniente dos meus ouvidos cujos tímpanos deveriam estar dilacerados. Arrastei-me para o lado contrário da estação, onde os trilhos levavam para a direção oposta, mas como se quisesse brincar com a minha agonia, a mulher também estava lá, do outro lado, arrastava-se no chão da mesma forma que eu fazia.
Desta vez não parei para encará-la, levantei e corri, na ânsia de tentar fugir daquele lugar, virei os olhos para todas as direções, no entanto a escadaria por onde eu tinha vindo não estava mais lá. Só havia a grande plataforma margeada pelos trilhos nos dois sentidos, mais nada. A luminosidade tênue dos tijolos extinguia-se lentamente, na mesma proporção em que um brilho malévolo iniciava-se ao redor da criatura, eu proferia uma oração para que a ameaça contida na energia dos trilhos fosse suficiente para mantê-la do outro lado.
Porém, mais uma vez adivinhando meu temor, como se torturasse a minha alma, ela esticou uma das pernas em direção ao vão que nos separava. Então, ouvi um ruído que preencheu meu peito com uma leve esperança, parecia que o trem chegava, mas, infelizmente, não era no lado em que atravessava, ela não seria esmagada pela aço dos vagões. Ainda assim, imaginei que seria possível escapar, para isso bastava que eu pudesse chegar até a porta que se abria à minha frente.
Ela caminhava com uma leveza impressionante, quase flutuava, ao passo que meus pés pareciam pesar toneladas, eu quase não conseguia movê-los. Ela se aproximava de mim, enquanto o vagão se mostrava distante, logo as portas seriam fechadas e o metrô partiria. Todo meu corpo doía, eu utilizava os braços para ajudar a levantar as pernas, elas pareciam estar fixadas no chão. Já era possível sentir um vento cortante às minhas costas, e como resposta a essa sensação, meu cabelo e os pêlos dos meus braços começaram a cair.
Eu fazia força, mas não saía do lugar, foi quando o magnetismo que me prendia perdeu o efeito, pois tive esta impressão, com isso rolei pelo chão como resultado do esforço empregado. Senti que ela me alcançaria, a porta começou a se fechar, então me joguei, e consegui entrar no exato instante em que ela se fechou.
Ainda deitado no chão sujo do vagão, olhei através da transparência da porta e vi o rosto ameaçador e enigmático que havia ficado do lado de fora. Quando o trem começou a se movimentar, agradeci aos céus pela oportunidade de ter escapado. Ainda que eu estivesse sozinho naquele vagão, eu havia conseguido, tinha me livrado da ameaça em forma de mulher. Sentia a respiração lentamente voltar ao normal e pude então relaxar.
Parecia que horas haviam se passado sem que chegássemos a qualquer estação, meus olhos começaram a ficar pesados, então, acho que adormeci. Quando abri os olhos achei a princípio que tudo não passara de um sonho ruim, mas fui trazido à realidade quando percebi que estava deitado em um banco plástico. O metrô estava parado, a porta do vagão escancarada, fato que me estimulou a sair.
Quando estava do lado de fora, o trem arrancou, ainda com as portas abertas, o deslocamento de ar me desequilibrou, mas desta vez consegui ficar de pé. A escuridão que assolava o lugar lentamente começou a dar lugar para uma fraca luminosidade, os tijolos brancos se revelavam, a mesma estação se mostrava, me ajoelhei vencido pela contrariedade, meus olhos não precisavam ver, pois já sabiam o que estaria do outro lado da plataforma, e com um sorriso perverso ela me esperava, teria toda a eternidade para isso.
A manchete do jornal dizia que o circuito interno havia flagrado os movimentos do rapaz na última quarta-feira. O relógio indicava uma da manhã quando ele entrou correndo pelas dependências da estação central do metrô, o segurança ainda foi em seu encalço, ele saltou a roleta e um minuto depois estava na plataforma, uma mancha branca ofuscou a cena, e em seguida, sem qualquer razão aparente, o rapaz se jogou nos trilhos, morrendo eletrocutado em instantes devido à alta voltagem. Várias pessoas presenciaram a cena. Os motivos que levaram ao tão violento e chocante ato de suicídio ainda são desconhecidos.
* Conforme idéia original do meu amigo Xande Ribeiro.