A LÍDER DOS SETE DEMÔNIOS

A beleza sempre andou de mãos dadas com a vaidade, um pecado para aqueles que não reconhecem os seus próprios limites. A ânsia pelo poder, tudo a qualquer preço, valores e ética se rendem quando o desejo fala mais alto que a razão. Soldados mudam de lado, altruístas se corrompem e a morte não passa de uma palavra correspondente a um ato.

O machado de um dos demônios riscou o ar dividindo a rocha bruta em dois, seus irmãos empurravam as pedras a fim de selar a entrada da gruta, a mesma onde exerciam seu trabalho, empilhar os corpos dos incautos viajantes que cruzavam aquela trilha incrustada no coração da mata a fim de realizar os hediondos festins em homenagem ao responsável pela existência de sua líder, aquela por quem doariam o seu sangue negro e maldito de bom grado. Eles buscavam impedir que as forças opressoras da mulher que havia tentado contra a vida de sua mestra entrassem na fortaleza de pedra e finalizassem o serviço.

A inimiga era cruel e não descansaria até por um fim na vida da jovem e desacordada líder do grupo dos pequenos seres das trevas. Ela almejava livrar seus domínios do reinado de danação e horror proporcionado pela garota. Investira anteriormente de diversas maneiras, até mesmo enviando o mais valoroso de seus guerreiros na missão definitiva de trazê-la aos seus pés, ou mesmo, apenas o coração negro transpassado pelo fio de uma lâmina virgem.

Mas o soldado não se mostrara digno de tal atribuição, pois caíra perante a arma mais poderosa da menina: a sedução. Receoso do castigo que o esperaria, suas mãos carregaram para a construção de pedra o símbolo da vida de uma inocente, mas nada escapava aos olhos vigilantes da soberana. Conhecida pelo temperamento intempestivo, a monarca obrigou o serviçal a devorar o músculo ensangüentado que antes pulsava forte no coração de uma súdita, sob os olhares temerosos da corte, ela bradava a plenos pulmões que a mão que abatia a caça levaria a carne à boca, não haveria desperdício em seus domínios. Ainda sob o mesmo lema, ordenou que o homem tivesse o corpo despedaçado e que servisse de alimento aos animais do reino.

Não se sabe ao certo se era a busca incessante pela justiça implacável ou apenas as feridas causadas pelo mais vil e mesquinho dos sentimentos, o que movia a soberana. A razão de sua vida a cegava, e em certas ocasiões blindava a sua mente com lampejos da mais pura loucura, ao ponto de macular seus próprios princípios, como no ato de sua última investida contra a mulher demônio. Clamando misericórdia para os seus deuses, ela seqüestrou uma pequena camponesa e fazendo uso das artes há muito esquecidas e proibidas em sua família, fez correr nas veias da criança uma eficiente substância que, embora inofensivo para a menina, seria fatal para a inimiga.

Sem nenhum pudor, ocultou-se sob a aparência e as vestes de uma serva do mestre do submundo ofertando a vida da criança ao apetite voraz da líder dos sete demônios. A beleza da inimiga ofuscava a visão da soberana, ela não conseguia entender como um ser amaldiçoado poderia ostentar tamanho magnetismo em sua beleza, ao ponto de cegar a visão e domar o raciocínio do homens.

A pele extremamente alva da garota assemelhava-se aos mais puros flocos que caíam do céu no rigor do inverno, o contraste fornecido pela escuridão absoluta de seus cabelos aparados na altura dos ombros acendia ainda mais as feições simétricas de seu rosto, onde os lábios cuja cor combinava perfeitamente com o seu objeto de desejo, o líquido quente e nutritivo que corria pelos caminhos do corpo da sua pequena vítima.

Os olhos negros da mulher converteram-se em brasa no exato instante em que abocanhava a pele tenra do pescoço da menina. O toque sutil de sua língua áspera com a fonte que brotava do corpo da criança não produziu o efeito inicial esperado, não lhe deu a sensação absoluta que costumava sentir enquanto drenava a vida, ao invés disso, percebeu o ardor mortífero causado pelo consumo das ervas bulbosas cujo simples odor já seria responsável por sua perdição.

Caiu sem forças ao lado de Apple, a menina batizada pela mãe com o delicado nome de uma fruta. A gargalhada da monarca ecoou pela mata, mas sua felicidade não seria completa, o cântico maldito que entrava em seus ouvidos deixava claro que os sete demônios, servos da mulher caída, não deixariam que completasse o ritual de cravar a madeira de lei no centro daquele coração amaldiçoado.

O corpo frágil , no qual habitava, impedia que ela impusesse qualquer resistência aos ataques dos pequenos diabos, não restando a ela outra opção que não fosse prezar pela própria vida e abandonar mais uma vez a tentativa de aniquilação completa da inimiga. Alguns dos seguidores da vampira seguiam em seu encalço portando seus poderosos machados e foices, enquanto os outros tratavam de recolher o corpo inerte da mestra para depositá-lo no ataúde de cristal negro onde ela costumava repousar no covil durante o reinado do sol.

Chegando aos seus domínios, a soberana tinha plena consciência de que não haveria oportunidade maior do que essa para ceifar definitivamente a vida e a beleza alva da mulher demônio, bastava para isso destruir os seus sete protetores. Com toda a força que pôde reunir seguiu decidida para a gruta, reduto certo para onde os malditos servos levariam o corpo da inimiga.

Os machados trabalhavam incessantemente para obstruir a passagem, ao passo que os soldados investiam pesado contra as rochas a fim de vencê-las. Os irmãos sabiam que seria questão de tempo até que conseguissem entrar. Esse pensamento os fez abandonar a guarda da entrada, levando-os a correr em direção ao fundo da caverna para apanhar o caixão que guardava o corpo vulnerável da linda princesa das trevas.

Após alguns minutos, a certeza dos demônios se confirmava, os soldados liderados pela monarca invadiam a gruta e venciam com facilidade a extensão dos domínios dos irmãos, mas um golpe inesperado pela força que avançada se fez presente com a rápida sucessão de explosões que culminaram com um incêndio no interior do escuro ambiente.

A armadilha preparada pelos sete irmãos mostrou-se eficiente quando os corpos dos guerreiros começaram a queimar no fogo nascido das profundezas. Muitos, incluindo a líder, correram para o fundo da caverna sendo perseguidos pelos rastro mortal das chamas.

Na entrada da caverna, os pequenos apenas podiam imaginar o que acontecia com o grupo inimigo, pois a fuga proporcionada pela abertura oculta entre as rochas lhes garantira a segurança, mas os privava de presenciar o delicioso espetáculo. No interior da caverna, o desespero dos soldados culminou com a chegada do fim da linha, onde apenas um precipício sem fim aguardava. As chamas chegaram ao grupo, uns preferiram enfrentá-la, outros, como ela própria, escolheram se jogar no espaço aberto da garganta onde um sorriso demoníaco formado pelas nuvens escuras os aguardava.

A tempestade não tardou a desabar, os seguidores da vampira vertiam lágrimas escuras pela incapacidade de devolver a vida à líder que jazia calmamente cercada pelas paredes negras do cristal. Ainda que pagando com a própria vida a soberana sorriria mediante à cena, pois finalmente a beleza da inimiga murcharia assim como sua existência.

Porém, a chegada daquela montaria escura que expelia um forte vapor pelas narinas seria um prelúdio de que as esperanças negras dos servos não haviam cessado. Ajoelhados na terra molhada eles observavam o imponente ser que se aproximava, sua pele era tão alva quanto a da mulher, trajava vestes escuras e empunhava uma lâmina retorcida. Abaixou-se ao lado do caixão e com olhar decidido arregaçou uma das mangas e fazendo uso dos afiados dentes que enfeitavam-lhe o sorriso, mordeu o próprio braço levando uma generosa quantidade do líquido negro à boca, encostando-a em seguida nos lábios gelados da garota e preenchendo a sua garganta com uma dádiva.

Instantaneamente riscos azulados faziam-se notar na pele da jovem, deixando claro que o sangue maldito voltava a circular livremente em suas veias, o mesmo líquido negro que escorria pela boca de ambos durante o beijo. Os olhos amendoados da garota abriram-se e de seus lábios vermelhos algumas palavras saíram: Meu príncipe!

A partir daquele instante os sete demônios tiveram plena certeza de que o reinado de terror estava apenas começando.

* As semelhanças NÃO são coincidências

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 07/08/2009
Reeditado em 22/04/2010
Código do texto: T1741964
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