Noite do Terror
O estrondo do trovão fez as finas janelas de vidro chacoalharem, segundos antes o clarão intenso iluminara a grande sala fazendo o garoto enxergar com nitidez os dois seres que o espreitavam por detrás da vidraça.
O peito do menino arfava, o coração batia disparado e era o único som que ele conseguia ouvir no aposento vazio. Ele estava encolhido em um dos quatro cantos, as paredes geladas não eram um conforto para ele, que tinha os olhos fixos na frágil janela.
Os grandes olhos negros, redondos, com as pupilas estreitas e assustadoras. Um deles parecia ter a estatura maior que o outro, mas pelo segundo que o raio iluminou os monstros eles parecerem terrivelmente perigosos para o garoto. A ossatura gigantesca, coberta de músculos fortes e rápidos. A pele coberta de pêlos espessos e nada sedosos estava pingando pela chuva, enquanto eles mantinham as mãos e suas garras sujas arranhando o vidro.
Trovoadas sempre o assustavam, mas nunca haviam sido como naquela noite. Seus pais haviam saído cedo para um jantar, antes de a chuva desabar e ele ficar isolado naquela grande mansão rodeada por um rio. A chuva fora tanta que o rio transbordara carregando a ponte e deixando a casa sem comunicação com o exterior.
È claro que o pequeno Bruno não sabia que seus pais não chegaria, até esse momento ele não sabia, a única coisa que ele fez quando os trovões começaram foi correr para o escritório de seu pai. Uma grande sala, com grandes janelas de vidro transparente que davam uma visão exata da ponte e da única entrada para a casa. E lá ele ficou, por horas, sentado na grande poltrona de couro, jogando seu vídeo-game.
Mas a noite passou, as horas corriam, embora ele só viu que hora era quando a bateria de seu vídeo-game terminou e ele levantou o olhar para o pequeno relógio digital na mesa, marcando onze e trinta e sete. Assim que ele olhou para o relógio, as luzes da casa piscaram, uma, duas, três vezes e apagaram.
Bruno tinha dez anos agora, mas sabia que quando as luzes apagavam era necessário ir até o sótão ligar o gerador. Ele ainda não aprendera como fazer, mas no mesmo segundo que as luzes apagaram ele teve certeza que ficaria na mais completa escuridão até seus pais voltarem.
Desistindo de esperar ele se levantara para ir para a cama, mesmo assustado ele sabia que se conseguisse dormir o tempo passaria mais rápido. Estava a dois passos da porta que levava ao hall da casa quando ouviu os passos pesados próximo a janela. Congelou seu pé no ar no mesmo instante, exatamente como faziam os atores nos filmes, e abaixou-se, escondendo-se na escuridão proporcionada pela grande mesa de mogno.
Sentado ele esperou, ouvia vozes sussurradas mas não conseguia distinguir palavra alguma, até que o som da janela sendo empurrada o alarmara. Não esperava que ninguém tentasse entrar dentro da casa, na verdade, não esperava que houvesse ninguém ali. Eles moravam a quilômetros de qualquer pessoa, isolados por uma grande reserva florestal.
As mãos forçavam o vidro no mesmo instante que o clarão do raio os iluminou. Bruno se arrastou silenciosamente de encontro ao canto da sala, os olhos fixos naquelas duas feras, as lágrimas começando a descer em seu rosto quente, o pânico e o terror pela primeira vez em sua vida.
Uma porrada forte de encontro ao vidro fez esse quebrar-se em mil pedaços, o trinco foi desativado e as grandes janelas duplas escancaradas. Um, depois outro, eles entraram na sala, sacudiram o pêlo do corpo, como fazem os cães molhados.
- Cara, que chuva! – falou um dos monstros.
- Espero que isso apague nossa trilha... – comentou o outro.
- Eu to com fome, deve ter algo pra comer nessa casa, eu vi luz nela antes, deve ter gente vivendo aqui – falou o primeiro, esfregando a grande barriga.
O coração do garoto bateu disparado, sua mente recheou-se com imagens dos monstros comendo pessoas, fazendo ensopado dele, ou talvez o comessem cru e ainda vivo. Ele tremeu inteiro e bateu sem querer no pé da mesa. A mesa tremeu e o pequeno relógio digital caiu no chão.
- Shhhh – fez um dos monstros.
Passo a passo as duas criaturas cercaram o pequeno garoto, avançando sobre ele no mesmo tempo.
- Tapa a boca dele antes que ele berre! – ordenou o maior.
Rapidamente o garoto foi segurado e sentiu a mão grande e suja de lama encobrir completamente seu rosto. Seu peito subia e descia com dificuldade enquanto ele debatia suas pernas e braços tentando se libertar.
- Shhhh – fez o monstro que o segurava – quieto aí moleque.
Pelo tom de voz do monstro, parecia que este temia ser descoberto por outra criatura ainda pior, sem saber porque, Bruno apenas obedeceu, ficando inerte e silencioso nas mãos do monstro.
- Pra onde é a cozinha? – perguntou o outro, abrindo a porta do escritório e entrando no hall.
- Uhh, bela casa! – o monstro soltou o garoto no chão. – Agora, nós não vamos te machucar, tem comida por aqui?
O garoto levantou um braço trêmulo apontando para outra porta, no lado oposto do hall. Os dois monstros caminharam pesadamente atravessando o tapete caro, deixando nele o rastro de lama e água da chuva. Escancararam as portas duplas e Bruno demorou para conseguir segui-los. Mesmo com medo, sua curiosidade de criança era mais forte.
Quando chegou na cozinha viu um dos monstros comendo a galinha assada que sobrara do almoço enquanto outro preparava uma baguete gigante recheada com tudo que encontrava, enquanto mastigava metade de um bolo que encontrou na mesa.
O garoto parou na porta, olhando estarrecido eles comerem o estoque inteiro de comida em uma fração minúscula de tempo. O som do arroto e a satisfação dos dois quando terminar sua refeição era visível.
- É, agora sim, que venham aqueles malditos.
- Ah não, me dá um tempo para digerir isso aqui!
- Haha, verdade! Agora eu não conseguiria matar nem uma barata.
- Ei moleque! – disse o monstro notando o garoto. – Obrigado pelo lanche!
- É, tava muito bom! Agradeça a patroa pra gente.
O garoto não conseguiu encontrar sua voz, mas balançou a cabeça concordando com tudo.
Os dois monstros se precipitaram para a janela novamente, a chuva tinha se transformado em uma fina garoa agora, mas o rio ainda estava ruidoso e tinha alagado vários metros ao seu redor.
- Droga! Eles conseguiram nos achar! – falou um deles preocupado.
- Malditos! E nem podemos contar com a lua! Droga de dia chuvoso!
- Em plena lua cheia e não somos bons o bastante contra aqueles malditos. Vamos!
Os dois pularam a janela rapidamente e correram para o meio da floresta, a única coisa que o garoto ouviu foram as pisadas abafadas. Sem perder tempo Bruno correu para o segundo andar, para o quarto de seus pais e lá se trancou. Sentado na cama ele tinha uma visão ampla de grande parte da floresta com suas pequenas trilhas mal reveladas.
Ele viu os dois monstros correrem, um atrás do outro em direção à grande clareira que seu pai gostava de ir quando tinham dias de sol. Era um lugar limpo e claro, o cheiro das flores silvestres era abundante, mas seu pai sempre ficara intrigado com estranhas marcas que apareciam nos troncos, algo como garras, tentaram investigar se haviam ursos ou grandes felinos na floresta, mas os biólogos nada encontraram.
E agora lá estavam os dois monstros, de pé na clareira, o corpo de dimensões monstruosas. E Bruno os viu serem cercados por seis outras criaturas, humanóides pálidos, parecidos com zumbis. Os humanos avançaram sobre os dois monstros, apertando o cerco e no mesmo instante pularam sobre os dois seres.
Bruno tapou os ouvidos ao ouvir o ganido agonizante, o som da dor, exatamente igual à vez que viu um cão sendo atropelado próximo à sua escola. O som preencheu todo o ambiente e não parou, continuava, como em uma luta sem fim, cada vez mais alto e parecendo demonstrar mais sofrimento.
A chuva cessara, um vento forte e gelado derrubava folhas e galhos e destelhava a parte norte da casa. Uma árvore caiu na clareira, exatamente em cima de um dos humanos, que ficou preso pelo peso. O ambiente iluminou-se pouco a pouco quando a grossa camada de nuvens escuras foi carregada pelo vento em direção ao sul.
Os monstros uivaram, qual lobos nos filmes, com ferocidade, selvageria, correndo em seguida, levando os humanóides em seu encalço. Pularam o rio como se este fosse apenas um filete de água, e correram.
Bruno caiu deitado na cama, tremia dos pés a cabeça, os olhos apavorados, a mente ainda em transe, não conseguindo absorver nada do que tinha acontecido.