A MALDIÇÃO DO HUMANO

Ele era uma pessoa melancólica, ressentida e extremamente solitária. Antes das suas raras horas de sono sempre deixava os pensamentos voarem longe, vislumbrava as possibilidades que nunca tivera e que certamente jamais teria. Ele se perguntava como teria sido se tivesse estudado mais, se tivesse se relacionado mais com as pessoas, se tivesse sido uma pessoa comum, capaz de experimentar todas as possibilidades nos mais diferentes pontos e situações.

Mas, ele era diferente, fora criado, mais do que isso, fora preparado desta forma. Sentia-se um ser amaldiçoado por isso, antes mesmo de nascer já estava destinado a trilhar pelo caminho que outros haviam pavimentado, não era de sua escolha, não era do seu agrado.

No entanto, sabia que cada ser vivente era responsável por uma tarefa a ser exercida, e a dele, dentre todas as outras, era imprescindível. Ao longo de sua vida lhe foram apresentadas as mais diferentes e inusitadas situações, e em todas deveria empregar uma solução viável e limpa, tinha consciência e acesso a fatos inimagináveis à maioria das pessoas, e era exatamente nesse ponto que se fazia presente o seu fardo, a sua maldição.

Ele sentia saudades do toque quente do sol, do seu brilho, das cores do dia, sua função o impossibilitava de usufruir dessa força da natureza, pelo menos do jeito que desejava, pois era obrigado a acompanhar cada passo daqueles que perseguia em seu ambiente natural, e isso, invariavelmente o levava a reservar as horas do dia para a renovação das forças gastas.

Uma pergunta recorrente lhe martelava a cabeça: Será que um dia sua missão teria fim? Sinceramente ele achava que não, mas nem por isso deixava de esmerar-se ao máximo a fim de atingir a perfeição.

Essa lógica o levava a cálculos precisos, ensaios e pesquisas, fazia estudos minuciosos antes de agir, o equilíbrio do mundo contemporâneo dependia de suas atitudes e ele não gostaria de ser lembrado como o representante do clã que quebrou o elo de gerações de um trabalho, que embora interminável e irreversível, sempre fora realizado a contento.

Ingrato destino! Maldição sem fim! Na noite anterior executara um grande passo para a concretização de um plano elaborado há meses, finalmente conseguira reunir todos os pontos que fechavam o quadrilátero daquela região, ele poderia facilmente aniquilá-los sem vestígios.

Mas, isso seria pouco, sabia que era possível reunir novos elementos ao desenho, eles sempre colocam novos peões no jogo, fazia parte de sua natureza, e se tivessem feito isso, como achava, ele descobriria e colocaria um fim na existência de todos.

Desde o início da noite ele observava oculto àquela figura sentada sobre uma pedra, era previsível e esperado que o sujeito não deixasse de aparecer. O endereço estava claro e o interesse era legítimo. Ao analisar a cena, alguém inteirado à situação, como ele, saberia ser questão de tempo até que a ação esperada começasse, por isso ele precisava estar atento.

O que o incomodava mesmo era o fato da outra convidada não se fazer presente ainda, isso era preocupante, a natureza ardilosa inerente à espécie daquela mulher era merecedora de cuidados redobrados. O rapaz na pedra poderia ser detentor de uma força imensurável, somada a um ímpeto incontido, mas a mulher era extremamente calculista e imprevisível.

O rapaz observado se coloca de pé enquanto é acometido por uma série de espasmos, era chegada a hora. O anfitrião abandona o esconderijo e surge na frente do atormentado homem. Consciente de sua tarefa, saca rapidamente a arma munida de projéteis da mais pura prata e efetua um disparo certeiro. O metal alojado no corpo caído é propositalmente insuficiente para levá-lo à morte, no entanto interrompe a mutação deixando-o apto para o propósito do homem parado à frente da criatura.

Ele segura em uma das mãos a arma e na outra uma cabeça de um ser híbrido, semelhante à fisionomia daquele que espera interrogar. O enfraquecido ser olha com relativo espanto para o adereço carregado pelo agressor.

- Reconhece esse aqui? - O homem exibe o troféu - Ele era conhecido como Mathias, mas você sabe disso, afinal ele transmitiu a sua maldição. Eu o matei, mas antes de morrer ele me falou sobre a sua existência. Agora, antes de acabar de uma vez com você, quero que me diga quem é o seu herdeiro. Onde está o seu sucessor?

Nenhuma resposta surgiu da boca da debilitada criatura.

- Ande! Fale, maldito!

Sem que o homem percebesse, uma figura ameaçadora surgiu das árvores sem prévio aviso, garras afiadas cravaram-se em sua pele, fornecendo apoio para que os afiados caninos se cravassem na carne de um de seus ombros. Tomada pela repulsa, a mulher que executara a investida joga-se no chão, uma substância maldita infesta o sangue do homem, além de poluir-lhe toda a extensão da pele. A língua da garota queima, enquanto uma discreta fumaça escura é expelida por sua boca.

- Surpresa? É alho! Uma dieta rica, especialmente preparada para você.

- Quem é você, humano? Onde está Christian?

- Aquele infeliz que a converteu? Está morto, assim como você vai estar. Mas, antes você vai me dar o nome do seu sucessor, assim como ele enquanto implorava pela vida.

- Ele não pode estar morto...

- Não? Olhe naquela direção. - O rapaz apontava para um longo tronco cuja extremidade afiada exibia a cabeça do derrotado ser.

- Não! Maldito! - Vociferava a mulher - Ele era meu! Eu deveria ter sido a responsável por seu fim.

Impulsionada pela ira a jovem executa um salto na direção do petulante humano, que lamentando-se pela impossibilidade de conseguir o seu objetivo, se vê sem escolha e retira com uma eficiência moldada por exaustivo treinamento, a lâmina depositada no compartimento em suas costas, e com ela separa a cabeça do corpo da vampira.

Observando o fio da espada de onde gotejava o sangue negro da mulher, o homem não percebe que o corpo de seu outro convidado, beneficiado pelo luar, havia expulsado o projétil de prata, deixando o caminho livre para a mutação.

Um uivo aterrador o traz de volta à realidade, e diante dele estava agora um gigante cujo único propósito era preencher a boca com a carne e o sangue do humano. Longe de sentir pânico, o rapaz abandona a lâmina inútil e utiliza a arma para efetuar mais um disparo no exato momento em que a criatura se joga sobre ele, os dois vão ao chão.

A prata, que desta vez preenche o músculo cardíaco da criatura, age rapidamente, escrevendo os últimos momentos do ser entre os vivos. O homem sente uma dor incalculável pelo ferimento causado pelos dentes afiados do lobo.

Arrastando-se pelo chão, ele nota o toque suave do luar sobre seu corpo, logo uma onda de sensações indescritíveis começa a se propagar. Ele sabe o que virá em seguida, então olha para a arma caída e percebe que ainda possui uma escolha, mas o poder que se espalha em todas as direções é sedutor, ele sabe o que fazer para acabar com todas as maldições, só não sabia se teria força suficiente para isso.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 30/07/2009
Reeditado em 25/11/2009
Código do texto: T1727921
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