A MALDIÇÃO DO LOBO
Uma das poucas coisas que tornava a sua rotina um pouco menos dolorida era inspirar o ar noturno enquanto seu corpo recebia o toque suave da luz da lua. O luar era um bálsamo para os seus tormentos e uma chave para ativar todos os sentidos. Diferentes odores invadiam-lhe as narinas e seus pêlos eriçavam-se dando-lhe um aspecto intimidador.
Os minutos que antecediam o momento decisivo oscilavam bruscamente do mergulho tranqüilo em seu próprio interior até a agitação causada pela fúria com que a adrenalina inundava-lhe a circulação. Ele não era um ser comum, era um amaldiçoado, alguém fadado a enfrentar o destino que lhe fora reservado durante toda a sua existência.
Ele se lamenta, sente sua alma corroer pela falta de sorte que tivera, se fosse um pouco mais afortunado teria recebido o abraço gélido da mulher de negro, teria olhado fixamente para sua órbitas vazias e implorado para sentir o toque afiado e infalível de seu instrumento.
Desta forma, haveria uma possibilidade da sua atormentada alma correr livre pelo espaço a que teria direito ao invés de senti-la aprisionada e à disposição da rainha do céu noturno. Mas nada disso importava naquele momento, não haveria lugar para outros pensamentos, apenas a meta a ser atingida, a missão a ser cumprida.
O alvo estava ali, alheio a tudo, indefeso e condenado. Era impossível não lembrar de si próprio, na exata situação, muitos anos antes, mas diferentemente do que ocorrera com ele, o rapaz seria liberto, cumpriria seu papel e encontraria a paz. O garoto não teve tempo de reação, nem ao menos conseguiu perceber ao certo o que acontecia, apenas uma coisa era certa e inegável, a dor. Absoluta. Insuportável.
Ele queria fornecer ao rapaz uma passagem tranqüila e rápida, mas durante a ação ficava quase impossível acertar o raciocínio, tal qual um tubarão em um frenesi alimentício, o sangue da presa impulsionava e ativava a sua fúria. Ele se delicia com os gritos de dor e com o olhar aterrorizado, a carne roubada serve para nutrir seu corpo, mas o desespero alheio lhe alimentava a alma.
Contrário ao que geralmente acreditamos, ele não se compõe apenas de instinto cru e bruto, não, ele consegue manter acesa uma chama remota de consciência, para sua infelicidade. Para ele a maior tortura é saber o que está fazendo, é poder sentir o gosto da carne e do sangue, é ouvir o som dos ossos sendo quebrados, tudo isso sem a menor possibilidade de controlar a ação de seus músculos.
Ao mesmo tempo em que sua humanidade se ressente das atitudes tomadas, sua alma selvagem quer cada vez mais. A lembrança, o registro de tudo em sua memória, mesmo quando utiliza a fragilidade de seu corpo para caminhar sob a luz do sol, ela está lá, acusadora e fria, o rosto de cada um, suas expressões e vozes, mesmo depois de mortos eles não o deixam em paz, essa era a pior parte da maldição.
Infeliz sina! Maldita existência! Cruel fardo fornecido por Mathias, esse era o nome do ser que lhe transmitira o dom. Seria difícil para ele apenas cumprir o ciclo da nutrição sem maiores comprometimentos?
Por que não finalizar o serviço? Por que criar mais uma desgraça para o mundo? Ele nunca entenderia, só queria a chance de deparar-se apenas mais uma vez com aquele que o colocara na eterna danação.
Fome. Ela nunca o abandonava antes da alvorada, enquanto o reinado noturno permanecesse, seria necessário confrontá-la, desafiá-la incessantemente. O inconfundível aroma se espalha no ar ativando-lhe os sentidos, convidando-o ao banquete. Sorrateiro e astuto prepara-se para a investida definitiva contra a incauta transeunte, que sua alma encontre um destino digno.
Um deslocamento de ar anunciou o salto que desta vez não fora certeiro, a jovem, sem nenhuma explicação lógica, conseguira se esquivar do ataque fatal. O horror diante de seus olhos a fez refletir se não teria sido melhor ser atingida de uma vez. Por sua vez, ele sentira que a hesitação que lhe acometera não poderia se repetir mais uma vez. Seu corpo queria alimento, clamava por seu direito legítimo.
No entanto, com surpresa acompanhou o seu pagamento tombar abatido à sua frente, sem que ele tivesse esboçado qualquer ataque. Da cabeça da garota escorria um filete de sangue, mas ele não teve tempo de ponderar sobre o ocorrido, ao longe notou um leve brilho, e em seguida sentiu um impacto, não precisava saber o que era, seu corpo já sentia os efeitos devastadores que envolviam o misticismo da prata.
Suas pálpebras começaram a ficar pesadas a ponto de ser impossível permanecer acordado e dessa forma se viu vencido.
Sentiu a força do astro rei queimar-lhe o rosto, instigando-o a abrir os olhos, demorou a acertar as idéias, um leve ardor se espalhava pela região de seu ombro direito onde uma ferida recém cicatrizada se fazia presente. Imaginava que o projétil prateado com o qual fora alvejado apenas atravessara o seu corpo, tornando o dano extremamente doloroso, mas plenamente reversível. Não entendia o porquê de não terem selado de uma vez por todas a sua existência, mas desconfiou de que algo estranho acontecia quando percebeu jogada ao pé da árvore onde estava, uma fotografia, um rosto conhecido, alguém que ele desejava demais encontrar, no verso havia um endereço, e a partir daquele momento uma nova missão.