Lar Doce Lar

Roberto saiu para a rua movimentada. Engraçado como nunca notara a circulação de pessoas no centro da cidade antes do meio dia.

Olhou para o prédio que se erguia imponente atrás de si.

Dez anos de sua vida trancado ali em um andar cheio de repartições. Recordou-se de dias em que não vira o tempo mudar de quente para frio ou de seco para chuvoso. Quantas tempestades não vira chegar? Quantos outonos confinados em uma baia cheio de papéis à sua frente? Pilhas de formulários! Lembrou-se do lamento diário por ter largado o teatro, podia estar encenando uma peça nesse momento. Mas não! Seguira o conselho do pai.

Mas e agora?

Despedido!

Toda empresa sofre cortes.

O que podia fazer se estava na lista negra?

Passou a mão pelos cabelos, afrouxou sua gravata e se pôs a atravessar a rua quando o semáforo parou o tráfego dos veículos. Entrou no estacionamento de frente para a empresa caminhando cabisbaixo até seu carro. Desativou o alarme e entrou largando-se de qualquer jeito no banco.

Tinha uma esposa, duas filhas e uma casa quitada pela metade.

Abriu o porta-luvas e tirou de lá um maço de cigarros Morley.

Puxou um de dentro e ficou encarando o câncer em forma de tubinho por um longo tempo antes de acendê-lo. Estava tentando largar o vício. Eis o lema de todo fumante. Mas só ele sabia como era difícil.

Olhou para seu reflexo no retrovisor.

Havia rugas no canto dos olhos e o cabelo começava a branquear logo atrás das orelhas.

— Está se tornando um velho decadente — falou para sua imagem com um sorriso pesaroso no rosto. — Agora você vai parar de fumar na marra!

É, talvez você venda alguns móveis... Quem sabe uma das meninas.

— Tá legal! Isso já tá ficando ridículo — disse enquanto dava a partida no carro.

Afinal não poderia ser tão ruim, era qualificado, conseguiria outro emprego.

Devia sentir-se livre, pois acabava de sair de uma prisão.

Ligou o rádio para aliviar a tensão que tomava conta de si. Um pop rock tocava em uma estação qualquer, ele sabia a letra e foi o suficiente para amenizar a situação.

***

Estacionou em frente à sua casa. Esperou apreensivo que Ellen saísse correndo pela porta de entrada intrigada por ele ter chegado mais cedo. Mas isso não aconteceu. Na verdade, tudo estava muito quieto. As casas vizinhas pareciam vazias, exceto pelo som dos televisores que escapavam por algumas janelas abertas.

O dia estava abafado.

Desceu do carro com a pasta e o paletó na mão. Notou que a porta estava entreaberta, mas o que mais lhe chamou a atenção foi aquela mancha vermelha na parte baixa da porta branca.

Atravessou o jardim tentando ver algum movimento através das janelas. Aquela calmaria o deixava nervoso. Ora, uma casa com duas crianças pequenas não tendia ser quieta a esta hora do dia. Ajoelhou-se de frente a mancha. Parecia tinta. Passou o dedo indicador nela e levou ao nariz. Cheirava a ferro.

Era sangue!

Rapidamente se pôs de pé pronto para adentrar a sala com violência, mas o pensamento de que a casa podia estar sendo assaltada o fez estacar ali na soleira, suando frio. Tocou a porta e a empurrou lentamente.

Não estava preparado para o choque.

Havia sangue por todo o lugar.

Sentiu suas pernas tremerem.

Apoiou-se no mancebo que ficava logo na entrada para que não caísse.

Havia um rastro grande que levava em direção à cozinha. Caminhou pé ante pé para lá, consciente do corpo todo tremendo convulsivamente.

A televisão estava ligada no noticiário.

Ellen estava caída no chão. Onde deveria estar seu abdome havia um enorme buraco e um dos braços parecia ter sido arrancado de forma violenta.

Roberto levou a mão à boca petrificado com a visão.

Não podia ser verdade! Aquilo era um maldito pesadelo. Um maldito e incrivelmente vívido pesadelo.

Não conseguia pensar em nada, nem sequer notou que havia caminhado até o corpo de sua esposa, quando ouviu o barulho no andar de cima já estava ajoelhado ao lado dela encarando seus olhos entreabertos e sem vida.

Houve mais um ruído.

Algo estava sendo rasgado.

Meu Deus, as meninas!

Apanhou uma faca sobre a pia e subiu a escada trançando as pernas. Viu a porta aberta no fim do corredor. O quarto delas.

— Não... por favor não... — murmurou com a voz fraca.

Correu até a porta e a chutou com a faca pronta para desferir um golpe no assassino.

A primeira coisa que registrou foi a cama de lençóis rosa claro ensopada de sangue. Havia uma confusão no centro do móvel.

Pedaços de carne dilacerados.

Alguns cachos de cabelos perdidos por ali.

E sobre o que sobrara das garotas havia um enorme tigre.

A faca caiu de sua mão enquanto os olhos selvagens do felino o encaravam.

O animal pulou da cama ainda encarando Roberto.

Soltou um rugido gutural e o homem foi tirado de seu transe particular.

Sem pensar, pôs-se a correr para fora do quarto. Desesperadamente, chegou até a escada e começou a descer. Tropeçou no instante em que o tigre investiu. Enquanto rolava os degraus, pôde ver o momento em que o animal passou por cima dele. Bateu a cabeça ao chegar no chão da sala. Ainda zonzo tentou se colocar de pé.

O tigre estava na porta de entrada e o encarava.

No noticiário, o jornalista informava que um tigre fugira do circo durante a manhã e estava à solta na cidade. Havia um número de telefone ao fundo para que os telespectadores ligassem caso visse o animal. A legenda do noticiário aconselhava trancar portas e janelas.

Dizem que notícia ruim chega rápido, mas essa pegara um engarrafamento, conseguiu pensar Roberto em meio a tensão do momento.

Estava a três passos do telefone residencial. Seu celular repousava no banco de passageiros do carro.

Deu um passo e o tigre se adiantou. Ficou em posição de ataque.

Mais um passo e o animal saltaria.

Assim ficaram: homem e animal, frente a frente.

Roberto viu que não tinha muito a se fazer e então resolveu sentar-se no sofá. Mas antes que o fizesse o tigre saltou, em questão de segundos seu pescoço estava entre as presas afiadas, dilacerado.

FIM