As Marias - Giselle Sato

Cinco em ponto ela despertou, abriu as cortinas e sorriu para mais um dia. Após o banho, o perfume da água de colônia encheu a casa antiga e bem conservada. Meia hora depois, o café estava pronto e o leite fervido. Movimenta-se devagar, sentindo as dores causadas pela artrite, pediu forças a Deus enquanto cortava o pão “dormido’’ em fatias finíssimas:

- É preciso aproveitar tudo, não desperdiçar nada e transformar as sobras de comida... Nada de desperdícios! –Tinha por hábito resmungar baixinho, falando consigo e tirando conclusões.

Olhou o relógio da cozinha e, no instante seguinte, quatro crianças entraram em silencio. Uniformizadas e com os cabelos úmidos do banho, rostos sérios e compenetrados. Ela sorriu satisfeita, sentou-se na cabeceira da mesa e fizeram a oração matinal.

As pequenas observavam a mulher, com os olhos vidrados no queijo e geléia. Cada vez que ela afundava a faca no pote, imaginavam o sabor doce da fruta e quase podiam sentir o gosto:

- Parem de olhar, parecem um bando de esfomeados, o governo dá merenda e vocês podem esperar. São sortudas por terem um teto. A mãe de vocês era uma drogada que morreu na rua. Ninguém sabe nem seus nomes. Inventaram esta coisa de nome de santa: Maria da Luz, da Gloria, da Graça, da Encarnação e até Maria de Jesus. Coisa horrível! Coisa das freiras... Por mim, mudava tudo, mas não deixaram.

Finalmente a buzina da Kombi que as transportava até a escola, o som significava mingaus e outras delícias. Um gesto e foram liberadas. Apesar de aliviadas, não esboçaram a menor reação. Saíram de mãos dadas, como de costume. As cinco irmãs haviam sido trazidas juntas, eram muito unidas e cuidavam uma da outra. A mais nova era um fiapo de gente, quase não falava e, por isso, Dona Célia costumava implicar bastante, acusando-a de fingida. Muitas pessoas adotaram as menores, mas depois de algum tempo, devolviam a criança doente e tão debilitada, que o juizado não permitiu que fossem separadas. Quando Dona Célia apareceu e concordou em levar as irmãs, foi um alivio geral para o orfanato.

Uma figura pequena e franzina carregava o aspirador de pó com dificuldade. As camas das outras crianças já estão arrumadas e o quarto da senhora também. Faltava passar pano nos móveis, limpar os banheiros e a cozinha. Levaria o dia inteiro para terminar todas as tarefas, mas já estava acostumada e nunca se queixou. Ela só tinha nove anos e nunca soube ser criança.

Maria da Luz sentia muita fome e não conseguia controlar o choro. Dona Célia, irritada com a menina sempre faminta, conseguiu um fortíssimo vermífugo com o farmacêutico. A pobre criança, após ingerir todo o conteúdo de uma só vez, começou a passar mal e os pequenos vermes, saíram até pelos olhos... Um horror que fez os demais meninos gritarem descontrolados.

Naturalmente todos foram punidos e, naquela noite, Maria da Luz dormiu no quintal escuro e frio. Depois daquele dia, a menina nunca mais foi à escola. Dona Célia tinha medo que ela repetisse a cena na frente dos professores. Conseguiu convencer o diretor de que Maria estava muito doente, e assim passaram-se os dias... Semanas e, por fim, esqueceram a menina.

Oito horas. Hora de ir até o mercado. Usando a bengala para auxiliar a caminhada diária e a bolsa de compras na outra mão, a velha senhora deixa a casa. Toda a vizinhança admirava Dona Celinha, mesmo criando cinco crianças, estava sempre bem humorada e sorridente.

Por onde passava, era saudada e conversava um pouquinho:

- Dona Celinha, venha tomar uma xícara de chá, como estão as crianças?

- Ah! Ótimas como sempre. São uns anjos que Deus colocou em minha vida. Hoje não posso aceitar seu convite, preciso comprar carne para o almoço das meninas.

- Você é maravilhosa! Só pensa nos pequenos. Deus há de recompensar!

- Não precisa amiga, já sou muito abençoada com estes queridos. Até qualquer hora.

E seguia o caminho. Na bolsa, as chaves dos cadeados da geladeira e dos armários onde guardava a comida. Seu único pensamento era se a limpeza e arrumação da casa estariam a contento. E se haveria problemas com a falta de disciplina, caso não estivessem.

Maria ouviu a porta abrir e correu para terminar de limpar a bancada da cozinha. Dona Célia chegou arrastando a perna e praguejando:

- Esta dor... É uma provação! Garota, pegue a sacola que deixei na sala e traga aqui. Anda logo, coloque a chaleira no fogo para o chá e me ajude com estes sapatos. Pegue meu chinelo.

A menina correu de um lado para o outro, eram tantas ordens que se atrapalhou toda. A bengala caiu com força nas pernas finas e ela engoliu o choro... Tentou lembrar o que devia fazer, o nervoso tomou conta e não conseguiu sair do lugar. Apanhou muito, tanto que perdeu os sentidos e ficou jogada no chão horas a fio. Maria acordou com as irmãs gritando seu nome. Desta vez Dona Célia havia exagerado, mesmo assim, vez por outra cutucava com a ponta da bengala:

- Levanta daí, pensa que sou boba? Se não ajudar a fazer a comida das suas irmãs, elas vão dormir sem janta.

Maria da Luz tentou, não teve forças e sentiu que aos poucos enfraquecia mais e mais. Seu ultimo pensamento foi para as irmãs, tão pequenas e indefesas... A vida passou como uma novela: cenas da mãe e do pai sendo presos, a avó levando-os para passear e sumindo na multidão. Os dias vividos nas ruas, comendo restos e fugindo dos maiores, até serem recolhidos em uma instituição. O dia em que foram adotados pela mulher da bengala e os olhinhos assustados da irmãzinha mais nova. Depois disso, acabou-se Maria. Dona Célia olhou com raiva o corpinho:

- Todos para a cama, saiam daqui... Vou levar a menina para o hospital.

Não era a primeira criança que morria naquela casa, há anos a mulher recebia a ajuda do governo para pais adotivos. Ela já havia perdido as contas, de quantas crianças havia abrigado. O grande problema era a doença que restringia seus movimentos e forças. Pegou o telefone e discou. Esperou alguns minutos e desligou. Pouco depois, uma caminhonete estacionou nos fundos da casa. O homem que entrou na cozinha não pareceu nem um pouco surpreso.

Ele acendeu um cigarro e bebeu um gole do café forte recém coado. Era forte e muito alto, talvez tivesse mais de vinte anos... O rosto infantil contrastava com o olhar ferino, impossível de passar despercebido, o que lhe conferia um conjunto nada atraente:

- Vovozinha, mais uma vez vou limpar suas sujeiras, assim não vai restar mais órfãos no estado.

- Foi um terrível acidente. Não tive culpa, era uma menina má e rebelde.

- Todas as suas crianças são tão problemáticas. Eu fui um menino mau que sobreviveu, mas tive sorte...

A mulher lembrou imediatamente do tempo em que conviveu com Bruno, a escolha havia sido um impulso, sabia que haveria problemas e não resistiu ao olhar desafiador do menino:

- Lembro que tirei você de um lugar imundo, onde sofreu todos os tipos de maus tratos. Lembro que nunca consegui controlar seus... Impulsos!

- Vovozinha... Nenhuma das suas crianças está viva para contar o que sofreu nas suas doces mãozinhas. Poderia ao menos ser grata.

- Muito bem... Nós temos este problema e precisamos resolver.

- Você tem. Vou levar a mais novinha, este é o preço.

- Mas vão desconfiar, duas crianças de uma só vez é loucura! Pegue a menina daqui a um ou dois meses... Será mais seguro.

- Ok. Fique com seu corpo durante este tempo, apodrecendo na sua cozinha imaculada... Fedendo. É pegar ou largar. Decida-se.

Bruno sorriu para Maria da Gloria. Sentada no banco do carona, a pequena não parava de chorar, chamando o nome da irmã e pedindo para ir embora. Dentro de um saco plástico preto, o corpo de Luz seguia na caçamba da caminhonete, oculto entre as sucatas que ele comprava e revendia. Trabalhava em um ferro velho e, vez por outra, viajava para garimpar entre as cidades vizinhas. Um serviço que o colocava em movimento constante.

Sabia que podia acabar com a velha na hora que quisesse, mas não o fazia: Primeiro, ela sempre pedia favores e fornecia recompensas. Segundo, era a única pessoa que havia sobrado da sua infância. As assistentes sociais que sempre o repreendiam, os coleguinhas odiosos e até a professora, estavam mortos. Bruno vivia enfiado na biblioteca, estudou em meses o equivalente a anos de aulas...

A menina chorona começou a incomodar e levou um forte tapa. Imediatamente encolheu-se no cantinho e passou a soluçar. Bruno sentiu fome e puxou uma sacola do banco de trás. Não gostava de parar na estrada e sempre preferiu fazer sua própria comida. O cheirinho de pastrame abriu o apetite, jogou um sanduíche para a garota e mordeu o seu com vontade. O pão parecia crocante, pedacinhos estalaram sob seus dentes... Pegou a caixa de suco e tomou um gole, foi quando notou um pontinho branco, movimentando-se no canudinho lentamente... Apertou os olhos, apurando a visão... Era um verme. Um pequenino e gordo verme.

Freou bruscamente e saiu do carro, nem precisou forçar o vômito que veio em jatos. Montinhos esbranquiçados mexiam-se nervosos, olhou para a menina que comia normalmente. Puxou o sanduíche das mãos da criança e não havia nada. Limpo. Completamente limpo. Pegou o saco com todo lanche e jogou no mato, próximo ao acostamento.

Aqueles bichinhos, estavam vindo de algum lugar próximo. Imediatamente, pensou no cadáver e subiu na caçamba. A caminhonete rangeu, enquanto revirava pedaços de ferro, bronze e alumínio. O saco com o corpo da menina havia desaparecido.

Respirou profundamente, buscou uma explicação racional e poucas opções surgiram. Pensou em um possível solavanco e o saco sendo atirado para fora... Quanta besteira! A estrada era excelente e teria visto o saco voando. Finalmente pegou o celular e fez a ligação.

Bruno tentou várias vezes seguidas, e a velha não atendeu. Tinha uma menina assustada e um corpo desaparecido. Pela primeira vez, perdeu o controle e chutou o pneu da caminhonete até aliviar parte da raiva que sentia. Toda vez que se sentia tenso, o ar tornava-se quase irrespirável... A cabeça pesava e precisa agir bem rápido antes de perder o controle. Entrou no carro e resolveu retornar a casa da velha. Com certeza, a menina estava viva e tinha fugido. Com certeza, durante alguma curva havia se jogado e ele não deu conta... Só havia esta hipótese. Neste caso, vovozinha iria pagar bem caro pela brincadeira. Com certeza, pagaria com muita dor.

A porta da cozinha estava escancarada e todas as luzes acesas, coisa rara na residência de uma conhecida avarenta. Pegou a pequena pelo braço e saiu puxando sem pressa. Silencio absoluto e um cheiro enjoativo do perfume conhecido. Passou pela cozinha e entrou na sala abarrotada de enfeites e moveis antigos. Nada. Subiu os degraus para o andar dos quartos, ainda puxando a menina pela mão. O corredor estava deserto e todas as portas fechadas. Bruno sentiu-se novamente um menino, entrando pela primeira vez naquela casa, cinco portas de cada lado. Um casarão antigo e decadente. Bem conservado, mas com aquele ranço de coisa carcomida pelo tempo.

Abriu lentamente a porta do quarto de Dona Célia, buscou o interruptor, mas não acendeu de imediato, a atenção nos vultos pequeninos fez com que parasse e prestasse atenção. Crianças. Com certeza, ela iria castigar cada um deles pela ousadia da invasão, eles riam baixinho e corriam na escuridão:

- Acabou a festa! Bando de moleques.

Bruno não estava preparado para a visão e encostou-se no batente. Cambaleou incrédulo, diante da cama coberta de vermes, a única coisa que correspondia à velha senhora, era o vestido florido de sempre. Nenhum ponto de seu corpo estava descoberto. Uma montanha de lesmas, vermes em todas as formas, movimentavam-se lentamente sobre a mulher. Eram quatro crianças, mas quando foi embora, havia apenas três, elas estavam paradas, observando com olhos miúdos e um brilho escapava daqueles meninos. Maldade. Maldade pura e irracional. Velha parceira de Bruno e agora, frente a frente, não se sentia confortável no papel de suposta vítima.

A menina mordeu a mão de Bruno e soltou-se, agora eram cinco crianças encarando o homem que supostamente deviam temer:

- Vocês não sabem com quem estão brincando.

- Claro que sabemos!_ A menina que devia estar morta era a mais velha e encarava Bruno nos olhos:

- Você é o bicho papão. O monstro que não pode existir.

- Mas existo e como criancinhas como vocês.

- Sabemos que está podre de tantas criancinhas que devorou... Por isso tem tantos vermes...

- Pare com isso, não me assusta nem um pouco, não sei o que fizeram com a velha, mas não me assustam. Quando puser a mão em vocês, vão implorar desculpas.

Bruno sentiu um nó no estômago, uma sensação horrível, como se as tripas estivessem sendo reviradas... No instante seguinte, vomitou uma enorme solitária, gritou de horror e logo estava saindo uma segunda ainda maior... As crianças deixaram o quarto, passaram rente ao homem caído no chão que tentava respirar enquanto era sufocado, bichos e bichos acumulando-se... Ele arranhava o pescoço e o peito, o rosto inchado e roxo, estava morrendo lentamente...

Quatro meninas sentaram-se na mesa da grande cozinha, todas as portas e janelas estavam abertas e os potes de geléia também. Riram e comeram sem pressa, uma vizinha estranhando, veio verificar o que estava acontecendo e saiu gritando pela rua... A policia chegou algum tempo depois, havia uma moça entre eles, que se apresentou como a nova assistente social:

- Sei que estão assustadas... Dona Célia sofreu um acidente e está indo para o hospital. Havia um rapaz com ela, vocês sabem o que aconteceu? Já haviam visto este moço antes?

- Eles estão mortos? – A mais velha então falou por todas.

- Estão muito mal, mas farão tudo para salvá-los. _ A jovem ficou assustada com a frieza da criança: A desaparecida tinha nove anos, depois vinha a de sete anos, que parecia estar no comando. As outras eram gêmeas, com cinco anos de idade. A menor, com três anos, parecia alheia a tudo e não falava.

- Não estamos assustadas. Só queremos saber se estão mortos.

- Sim querida, sinto muito. Infarto fulminante. Em ambos. Nunca vi nada tão... Perdão, eu fiquei meio perdida...

- Você parece boa. Não é como a outra que nos deixou aqui.

- Está bem, disseram que Dona Célia criava cinco crianças, e só temos quatro meninas. Onde está sua irmãzinha? Sei que são irmãs, devem estar preocupadas com a mais velha... Maria da Luz. Acertei? É a mais velha e conseguiu fugir, não tenham medo... Não se preocupem, queremos apenas ajudar... Precisamos encontrar sua irmãzinha.

- Não estamos com medo. Ela não vai voltar, foi embora para sempre.

- Muito bem, vocês vão comigo para um abrigo, mais tarde vamos conversar e com certeza, irão contar o que aconteceu aqui. Não é?

As quatro Marias se entreolharam, não sabiam o que aconteceria adiante, mas com certeza nada seria pior que viver com Dona Celia ou ser levada pelo homem mau. A última coisa que viram ao sair do casarão foi a figura da irmã, Maria da Luz... Seguindo outro menino. Ela acenou e dobrou a esquina.

Não ficaram tristes, sabiam que Maria da Luz, não podia mais ficar, precisava ir embora para algum lugar muito longe. Ela havia contado, que dali em diante, tomaria conta das crianças que ninguém queria e que não deixaria mais que fossem maltratadas. As Marias deram-se as mãos e aceitaram o destino, sabiam que estariam sempre protegidas.

Revisão - Lucia Czer

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 27/07/2009
Reeditado em 31/08/2009
Código do texto: T1722357
Classificação de conteúdo: seguro
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