EMBAIXO DA CAMA
Embaixo da Cama
Com os gritos, não foi só eu a acordar, mas toda casa. Meus pais, numa ânsia defensiva e humana, em poucos segundos já estavam ao lado da cama do meu irmão, cama esta que sempre vislumbrei ao lado da minha. Ele se debatia violentamente contra o colchão enquanto suas mão cerravam-lhe os olhos. Aos poucos, por um forte abraço materno, fora se acalmando e, logo, entre soluços, relatava o motivo daquele escândalo devastador:
"Embaixo da cama do João mãe, ele..., tem... olhos azuis, falou no meu ouvido com uma voz de monstro que.. mataria meu irmão, que ele o queria... então apertou meu braço, está ardendo muito." (A mãe olhou não havia marca alguma).
Meus pais se entre-olharam e com uma afirmação suave disseram quase simultaneamente: "Bem querido, foi só um pesadelo". Entre protestos e pedidos de Gerson (Meu irmão) ainda, antes de saírem, tiveram que olhar por debaixo da minha cama (Não havia nada além de cuecas e meias sujas, estas provedoras imediatas de uma repreensão direta de minha mãe). Sob último pedido, a luz do corredor ficara acesa e, a porta do quarto entreaberta. Meus pais se despediram de Gerson de forma tranquilizadora e, minha mãe, antes de retirar-se por completo; disse à mim: "Amanhã quero tudo limpo João" Um simples "Sim, Senhora" finalizou o diálogo.
Eu tenho apenas doze anos, Gerson, quatorze, portanto três fatores me incomodavam: Primeiro: Por que havia de ser embaixo da minha cama?. Segundo: Por que o monstro do pesadelo inútil do Gerson queria matar-me e não a ele? ( Digamos; fato incomum em sonhos). Terceiro: Sendo eu mais novo, jamais me comportaria daquele modo, como Gerson era infantil. Aliás, na escola quem anda brigando por ele sou eu. Bem, como sempre diz minha mãe; acredito que ele seja mais sensível. Ah! e quarto: Amanhã teria de limpar debaixo da cama, este era o menor dos problemas, mas com certeza incomodava.
Entre estes pensamentos, percebi que Gerson ainda soluçava um choro contido. Tentei acalmar-lhe; explicando o que meus pais, há pouco, haviam explicado. O efeito foi gradativo e aos poucos foi acalmando-se até adormecer, mas não sem antes dizer, com voz sonolenta e disforme, algo que me gelou a espinha e me fez arrepiar: "Entre o dormir e o sonhar, vou te pegar".
Acordei cansado, meus olhos pesavam um sono contido. A cama de Gerson estava perfeitamente arrumada; este já levantara. Da janela entre as frestas do metal furado escorria a luz serena do sol matinal. Calcei o chinelo e devagar caminhei para a cozinha no percalço de um bom café-da-manhã.
Minha mãe encontrava-se frente ao fogão, fritava algo, talvez um ovo, mas não pude reconhecer pelo cheiro. "Bom dia mãe" . "Já arrumou debaixo da cama como prometeu João?" a resposta veio seca e imediata. Ela deve estar muito brava(Pensei), droga Gerson, droga de sonho. "Não, mas já vou". "Ótimo, vá arrumar e depois você come". "Tá" Disse eu em desânimo - "Onde está o Gerson?" Complementei. "Ocupado" Foi a resposta.
Arrumei a cama rapidamente, sem muito enfeitar, o que no final mostrou-se um trabalho muito diferente da arrumação de Gerson, contudo não cem por cento desarrumada. Bastava agora arrumar debaixo, recolher as meias, as cuecas e sabe lá mais o que. Indefinidamente um pequeno receio veio-me à mente, os gritos e o medo de meu irmão expressos na noite anterior transmitiam-me um temor involuntário em abaixar e olhar. Sem dúvida embaixo da cama é um lugar horripilante, não foi ao acaso que Gerson teve aquele pesadelo. Tudo poderia esconder-se ali, era um lugar pouco visitado, escuro e sujo.
Contudo a limpeza tinha de ser feita, senão, não haveria café. Abaixei lentamente ainda ouvindo na mente os gritos de Gerson na noite anterior. Não consegui. Meu coração pulsava num ritmo desordenado. Mais duas tentativas seguiram, até que de súbito caí de joelhos prostrando a cabeça entre o colchão e o chão.
Tudo era muito escuro ali, algumas peças de roupa brancas destacavam-se meio à poeira antiga. Aos poucos e quase sem olhar fui retirando peça por peça; abria os olhos, fazia mira, fechava-os e, aplicava o golpe certeiro recolhendo-a. Num desses arremessos agarrei algo duro, possivelmente um sapato, instintivamente o larguei recolhendo-me para longe da cama. Mas não poderia parar ali, e aos poucos retomei a coragem. Mirei no sapato e, com toda força lancei-me em direção ' a presa', puxei com força, mas este parecia estar preso entre a madeira e o chão, forcei ainda mais, mas nada. Sem soltar decidi abrir os olhos para ver o que se ocorria.
O sapato não estava preso, estava pesado, pois era o sapato de Gerson. E ali estava Gerson embaixo da cama, aos poucos fui subindo o olhar, passando do sapato, ao tornozelo, depois ao joelho, à barriga ,enfim , ao chegar no rosto Gerson aproximou-se de súbito, agarrou-me pelos cabelos e colou sua face banhada de sangue na minha. Onde deveriam haver os olhos só haviam dois escuros orifícios mesclados de sangue. Tentei fugir, mas era impossível, a força que me segurava era descomunal. Gerson sorriu e suavemente disse exalando seu hálito podre: "Entre o dormir e o sonhar vou..."
Desesperadamente acordei, olhei desesperado procurando Gerson em sua cama, ele não estava ali. Já era manha e, a cama de Gerson, como de costume, estava rigorosamente arrumada. Corri rapidamente para a cozinha, minha mãe, como no sonho fritava alguma coisa no fogão. "Cadê o Gerson?" Perguntei afobado.
Sem notar a pergunta minha mãe virou-se para mim estendendo a frigideira. "Vai querer querido?" . O medo fez-me cair ajoelhado no chão frio da cozinha, pois entre borbulhas de gordura e sangue, encontrava-se, na frigideira, os olhos de Gerson. Minha mãe com um sorriso irreal, disse entre gritos: "Te pegar" "Te pegar".
Acordei num desespero infindo. Ao meu lado meu irmão dormia tranquilo, ainda era noite. A luz do corredor entrava pela porta, iluminando boa parte do recinto. Poucos carros passavam pela rua. O ronco do meu pai no quarto ao lado definia sua presença.
Gradativamente me acalmei, tudo estava em paz, com excessão de um pequeno ruído, suave e doce como o sono inicial, que aos poucos, juntamente enquanto eu adormecia, começou a tornar-se claro e real, dito por uma voz simples e repetitiva; era como pequenos sinos que badalavam no inicio do sono uma pequena frase, agora inofensiva: "Entre o dormir e o sonhar eu vou..."
João Victor
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