A GAROTA DO CAPUZ VERMELHO
Manhã de sábado, a polícia vasculha a área ao redor da casa que teria sido palco de um estranho e inexplicável episódio. O interior da casa apresentava sinais evidentes de luta; marcas e rastros de sangue se espalhavam por toda a parte, no entanto não havia qualquer vestígio da proprietária ou da menina que supostamente teria se dirigido para lá na noite anterior. Mais dois jovens também eram dados como desaparecidos. Uma capa de chuva com capuz de cor vermelha encontrada no quintal teria sido a única pista que teriam.
Na noite anterior...
A menina seguia com passos firmes e decididos, sua pressa era legítima. Recebera uma missão da mãe, uma tarefa importante para ela e crucial para alguém por quem nutria um sentimento muito especial, a avó. Dentro da mochila carregava os remédios imprescindíveis para a manutenção da saúde da senhora. Era para ela ter seguido para lá mais cedo, no entanto os hormônios em ebulição, sinais típicos da fase na qual recém entrara, a detiveram além do tempo usual na companhia do namorado, agora seria necessário correr para evitar maiores problemas em casa.
A noite havia caído há algumas horas e junto dela uma chuva insistente e fria, a falta de condução para aquela parte da cidade agravava-se consideravelmente com a chegada do final de semana, nas noites de sexta-feira o subúrbio se tornava um verdadeiro deserto urbano, a agitação ficava do outro lado, na zona sul mais especificamente.
Uma longa via não pavimentada levava até a residência da senhora, uma pequena casa quase esquecida que ficava incrustada ao pé da serra, não seria prudente para ela seguir pela trilha que passava por dentro do parque da cidade apenas para ganhar tempo, pois rumores davam conta de que o local seria freqüentado por toda sorte de maus elementos: viciados em drogas, delinqüentes e assaltantes oportunistas.
A escuridão proporcionada pela ausência do poder publico colaborava e servia de abrigo para ações desse tipo. Na verdade, até mesmo atravessar a estrada àquela hora já seria um ato arriscado, ainda mais com a queda de energia elétrica naquela região, fato causado pela tempestade insistente.
Embora gostasse de exaltar sua modernidade e maturidade, e de clamar pela independência, a menina sentia-se desprotegida e receosa, de fato estava preenchida pelo medo. Olhava constantemente para o aparelho celular na esperança tola de que por algum milagre o sinal de recepção surgisse na tela, algo que nunca acontecera naquela área.
Ela tentava assobiar uma canção enquanto buscava aumentar o ritmo das passadas, nada de visualizar a casa da avó, o vento cortante acoitava-lhe o rosto, a água gelada a fazia tremer. O silêncio quase absoluto agigantava até mesmo o mais leve ruído, e isso a permitiu perceber o som característico de passos logo atrás dela.
O ritmo dos seus batimentos cardíacos aumentou em proporção semelhante à violência da cascata que era derramada pelas nuvens, suas pernas perderam as forças e começaram a bambear. Petrificada como estava, temia em virar a cabeça e encarar quem ou o que estava às suas costas, mas mesmo assim sabia que não tinha escolha, e desta forma o fez. Seus olhos mal puderam acreditar no que via:
- Você?!?
O medo da menina imediatamente fora substituído por outro sentimento, algo mais próximo à repulsa.
- Quem você esperava, queridinha? O lobo mau?
O tom debochado era uma característica inerente a personalidade de Igor.
- Seria bem melhor do que me deparar com você!
Bianca detestava o rapaz, desafeto declarado do namorado no colégio. Na realidade Igor era ignorado por quase todos, a esquisitice não era uma particularidade muito apreciada.
- Cuidado, Bia! Você não sabe o que diz. Vai que você é atendida nos seus desejos. A propósito, onde está seu namorado? Como ele te deixa andar por essas ruas debaixo dessa chuva?
- Ele, ele, ele disse que não poderia, pronto! Mas você não tem nada a ver com isso! Não é da sua conta! E me deixe que preciso seguir meu caminho, não posso perder tempo. E não me chame de Bia!
- Para onde você vai?
- Vou te responder, mas me deixe em paz. Preciso ver minha avó, ela está doente, diabetes, tem problemas com o açúcar...
- Então nada de doces na mochila para ela...
- Idiota!
- Tudo bem, Bia. Mas, cuidado, esse percurso é longo e deserto. Fique atento com o que pode estar por perto.
A garota se virou sem nem ao menos ouvir o comentário, muito menos perceber o sorriso do rapaz no canto da boca, nem o leve aceno de cabeça, em sinal de negativa.
Bianca seguia furiosa, porém um pouco menos tensa, o bastante para se encher de confiança e atravessar a trilha pelo meio do bosque. Uma vez lá dentro, se sentia uma tola por não ter tomado essa decisão anteriormente. Nada havia ali, talvez os meliantes tão destacados nas recomendações da mãe tivessem fugido da tempestade.
A fúria da água tornava a capa da garota, supostamente impermeável, um mero adereço, sobretudo o capuz que lhe ocultava a cabeça e que mesmo assim não evitava que seus cabelos, de cor tão escarlate quanto o acessório, ficassem totalmente ensopados.
A monotonia fora quebrada por uma incômoda sensação, era claro, perceptível, quase palpável que estava sendo acompanhada de perto. Praguejou pela existência do irritante rapaz, ele não havia desistido de segui-la, assim pensou. No entanto, um grito aterrador seguido por um urro, um uivo que se assemelhava às trombetas do inferno invadiu-lhe os tímpanos, de modo que todos os temores que havia sentido até então naquela noite se tornassem insignificantes.
Então correu, correu como pôde, tentava se concentrar única e exclusivamente na missão de vencer os domínios daquele mar de trevas, precisava chegar à casa da avó. Conforme se aproximava, ficava mais nervosa e então fora acometida por uma constatação terrível e desesperadora, o som que ouvia não se originava do complexo de árvores e arbustos, ele se espalhava pelo local a sua frente, na direção de onde seguia.
Chegando ao descampado nos arredores da pequena residência, sentiu-se vulnerável e solitária, ficou estagnada. A essa altura a chuva deixava de cair e as nuvens carregadas abriam-se lentamente permitindo que os contornos de uma lua redonda e tímida fossem visíveis.
Ainda que a área estivesse mergulhada nas trevas, Bianca, com os olhos lavados pelas lágrimas, conseguiu distinguir no gramado as manchas escuras e o rastro de um líquido pegajoso que seguia para os fundos da casa.
Ela não precisava ver a cor viva e rubra do líquido, sabia muito bem o que era, e essa certeza a fez perder o chão, desabou completamente as suas estruturas. A jovem estava ciente de que não haveria escapatória, e por isso decidiu entrar na casa e enfrentar o que lá estivesse. Seguiu lentamente, com passos calculados, até a pequena varanda cujo assoalho era revestido por pedras polidas e envernizadas, mesmo com toda a cautela, se descuidou e seu equilíbrio foi traído pela armadilha úmida do piso.
Com a queda feriu os joelhos e gritou de dor, o sangue derramado deixou ainda mais ativo aquele que a aguardava. A porta da sala estava destrancada, algumas velas acesas davam um tom mórbido ao lugar.
- Vovó? - Chamou a menina com a voz cortada por soluços e choramingos. Não encontrou resposta, como o seu coração previra.
Continuou em direção aos aposentos da idosa, não tinha esperança em encontrá-la viva, mas precisava conferir com os próprios olhos e encarar o algoz. Dobrou o corredor, e então visualizou uma sombra que começava a se projetar na parede alimentada pela luminosidade tênue das velas. Conforme a sombra se aproximava, mais a angústia se apoderava dela. Fechou os olhos e apertou os punhos contra o peito, iniciou uma oração com um tom de voz inaudível, ela sentia a presença maligna mais perto, já não conseguia mais rezar, desabou num choro incontido, então, sentiu um toque gelado no seu braço, soltou um grito.
- Bianca!
Ela abriu os olhos e chorou ainda mais, desta vez de alegria.
- Marcelo! Ah, Marcelo! Que bom que você está aqui...
A menina saltou sobre ele enlaçando-o num abraço apertado, a felicidade era tamanha que demorou a perceber algo que não se encaixava: o que o namorado fazia na casa da avó?
Como se pudesse antecipar-se ao questionamento, Marcelo começou a falar baixinho, bem próximo do ouvido da jovem.
- Sabe, Bia, eu poderia falar para você que estou aqui porque me senti mal por deixá-la sair sozinha a essa hora, que fiquei preocupado e tudo mais...
Nesse momento Bianca caiu em si e tentou virar o rosto para fitar o namorado, mas fora contida pela força do abraço, cada vez mais potente, impossível de se libertar.
- No entanto, eu estaria mentindo se dissesse isso. Na verdade, o motivo que me traz aqui é o mesmo que escorre agora pelos seus joelhos. Sim, querida, o seu sangue. Sabe, esta manhã você se cortou no treino na escola e pela primeira vez o perfume do seu sangue invadiu a minha mente. Eu juro que não tinha intenção de fazer isso com você, afinal, eu a amo, mas não consigo tirar essa idéia da cabeça, é mais forte do que eu. Desta forma, aproveitei essa oportunidade para fazer essa visita e te encontrar aqui.
- A minha...minha avó...
- Não se preocupe com ela, Bia. Logo você a encontrará, só espero que você tenha um gosto mais saboroso do que a carne insossa daquela velha...
O rapaz empurrou a namorada sobre a cama e posicionou-se em frente a porta a fim de evitar qualquer tentativa de fuga. Arrancou as roupas e abriu os braços, imediatamente bolhas surgiram sobre toda a sua pele. Espasmos e convulsões o dominaram, seu corpo contorcia-se incontrolavelmente, ele emitia sons estranhos, uma mescla de gritos, gargalhadas, rosnados. Parecia sentir uma dor infernal, a expressão de seu rosto era a própria tradução da histeria. Seus olhos eram duas esferas incandescentes, amedrontadoras. Bianca não conseguia desviar o olhar, estava estarrecida, como alguém poderia ter os olhos tão grandes?
As orelhas que se projetavam não ficavam atrás, certamente a criatura poderia ouvir bem melhor com elas. O som de ossos sendo partidos, um ranger seco se propagando, um uivo agudo se espalhando, era uma canção do inferno.
Bianca fitava a criatura revestida por pêlos escuros e fartos, o rosto do namorado havia desaparecido, seu nariz costumava ser tão bonito, agora estava disforme, um focinho hediondo e perturbador. Para que ele precisaria de um nariz tão grande?
Possivelmente para completar-se com a mandíbula escancarada de onde escapava uma gosma esbranquiçada e fétida que espumava entre os dentes longos e afiados. A garota temia pela certeza que tinha mediante a cena que estava diante de si. A boca da fera era enorme e estava preparada para devorá-la.
O lobo saltou sobre ela, a garota jogou-se no chão conseguindo livrar o pescoço, que era o alvo da fera, mas não com eficiência suficiente para evitar que as lâminas em forma de dentes resvalassem sobre a pele de sua perna.
Bianca levantou-se ignorando a dor e tentou escapar pela porta, mas fora alcançada pelo golpe potente efetuado por uma das patas do demônio. Quatro valas foram abertas nas frágeis costas da garota. Ela sentia que não haveria jeito de fugir, desta vez não evitaria o golpe derradeiro do namorado, estava conformada com o destino.
A besta projetou novo salto, voou pelo ar, mas sua investida fora frustrada por algo que riscou o ar e a atingiu entre os olhos. O corpo gigantesco do lobo tombou no solo e lá ficou, parado ao lado da garota estava o carrasco.
O rapaz segurava um revólver calibre .38, o único artefato de prata que estava no tambor fora projetado por ele e agora estava alojado no crânio de Marcelo, encerrando, assim, os ciclos amaldiçoados da fera e também a sua vida.
- Você está bem, Bianca?
- Acho que estou, Igor e, por favor, me chame de Bia.
O garoto esboçou um sorriso e esticou a mão para ela. Dirigiram-se para a porta, lá fora a noite não dava sinais de que uma terrível tempestade havia infestado os céus instantes antes. A lua se apresentava plena e radiante, tornando mais amena a situação para Bianca. Igor falava incessantemente enquanto andava, a menina quase não o ouvia, estava entretida, fascinada por aquele brilho suave, que de alguma forma estranha deixava tudo tranqüilo.
- Então, Bia, conforme eu falava, há algum tempo eu desconfiava das atitudes estranhas do Marcelo, eu o segui várias vezes e descobri...Bia? Bia?
A menina estava imóvel, nenhuma roupa revestia seu corpo, a capa de chuva com capuz vermelho estava jogada próximo aos seus pés, ela exibia um olhar estranho e perdido. Contra todo o bom senso, Igor se aproximou, logo a menina soltou um grito, bolhas surgiram no seu corpo esguio enquanto se contorcia involuntariamente. Igor nunca mais seria visto, o corpo de Marcelo, que jazia no quarto da avó desapareceria vítima do apetite feroz que surgia, o ciclo renasceria mais voraz do que nunca e se instalaria em um outro lugar, longe dos olhos conhecidos. Nem sempre o caçador vence no final, às vezes, em alguns contos, os caldeirões são manipulados pelas fadas...
*Valeu Danilo, incansável licantropo!