Lua de Sangue
Gostava de como a faca deslizava na garganta, e de como o sangue corria fresco pelo corpo jovem das suas vitimas... sempre muito bem escolhidas. Pensava, enquanto degustava uma taça de sangue fresco, no que mais lhe agradava nas vitimas; se era o pavor nos olhos antecipando sua morte, aquela agonia, a vontade de gritar e pedir socorro, a submissão que expressava aquele olhar... ou se era o cheiro fresco do sangue, a carne se rasgando e abrindo corruptamente, mostrando o vermelho que remetia às suas origens animais, mas ainda tinha o simples gosto de matar, o ato pecaminoso de tirar uma vida. Talvez todo este conjunto o atraísse tanto, pois essa era a sua principal teoria. A noite foi lhe abraçando delicadamente, e enquanto surgiam as primeiras estrelas no céu, acendiam-se as chamas criminosas que repousavam mortalmente nos seus olhos e a vontade de ceifar outra vida crescia no seu interior. Tornou-se inquieto na poltrona, a taça de sangue foi bebida em um só gole e sua garganta secou instantaneamente. No entanto, não se moveu. Deixou o corpo repousando no esquecimento da sala em tom fúnebre e esperou a lua aparecer soberana no alto de sua janela. Restava pouco mais de uma jarra de sangue para aquele velho demônio, sabia que não era suficiente para uma noite sequer. Precisava matar urgentemente, sentir o gosto quente de um sangue jovem e tentador. Se fosse de uma virgem, imaginou ele, melhor! Assim lhe bastaria uma taça para passar um dia em paz, sem se preocupar com a lua e as regras absurdas que Lúcifer ditava no submundo quente do inferno. E naquela calma ele penetrou, sabia que só precisava esperar a lua e já poderia abrir, ou melhor, quebrar aquela janela e sair correndo para os cantos escuros da cidade, esperar por uma vitima que certamente viria farta de sangue e mergulhar seus lábios no sangue. Mas não, gostava de provocar pânico nas vitimas, isto deixava o sangue mais saboroso, a tensão acabava dando o toque final para um sangue bem escolhido e o corte também fazia muita diferença, precisava ser cauteloso com os mortais. Enquanto planejava horrendas mortes, olhava impaciente para a janela, que não lhe mostrava o que queria. Surgiam cada vez mais estrelas, só que as estrelas de nada serviam para aquele criminoso. Voltou-se para a jarra sobre a mesa, sabia que não ia durar a noite toda e como noite passada ele fracassara, aquilo não bastaria para saciar a sua vontade de sangue. Sua necessidade era animal, grotesca até eu poderia dizer, mas até mesmo os mais brutais dos animais exibem compaixão e familiaridade com terceiros. Ele não. Serviu meia taça e pensou, “antes do último gole a lua estará no seu devido lugar e eu no meu, matando por rua afora...”. A sua ansiedade aumentava, o sangue estava ficando cada vez mais amargo na sua taça. Não podia deixar tanto tempo exposto assim, precisava beber imediatamente. Com a faça na mão ele desenhava no espaço o contorno de uma garganta e como se fosse tirar a vida de alguém, aplicava um golpe mortal e com palavras sórdidas o enviava direto para o inferno. Não, isto não bastava para suas necessidades infernais, ele queria de verdade, a adrenalina, aquela explosão dentro do seu corpo podre, alimentar o velho demônio dentro dele. Tentou recordar qual era o cheiro da morte e viu que sua mente começou a apresentar os primeiros sinais de confusão. Não distinguia mais a morte da vida, era sempre horrível quando isso acontecia. Olhou para o seu pulso e viu que se dissipavam as ultimas gotas de sangue, voltou a ter seu tom pálido e sombrio. A sala era um manto negro para o defunto sobre a poltrona esperando algum milagre vir do céu para poder matar. Já estava nervoso, definitivamente nervoso! Amaldiçoou quando acabou o sangue em sua jarra, bebera furioso as ultimas gotas e se sentia preso agora dentro de sua própria residência, onde possivelmente viria a ser sua sepultura. O relógio estava certo, a escuridão da noite também, apenas a lua não aparecera no céu, até as estrelas estavam lá, ouvia vozes, gritos, sabia que as pessoas circulavam livremente pelas ruas e ele estava preso. Não podia matar. Correu de um lado para o outro impaciente, sabia que o Diabo estava lhe pregando uma peça, que dentro de poucos instantes a lua brilharia no céu, mas era cruel, era cruel a brincadeira com aquele demônio, seus olhos estavam quase saltando da face, as mãos não seguravam mais nada, notou que as pernas também estavam moles e os gritos não saiam mais de sua garganta! Queria sangue! A morte, que tanto lhe dera a vida, estava agora levando a dela. A sua podre vida chegando ao fim. Olhava para cima, caído no chão, esperando um milagre, esperando a lua brilhar no alto da noite, como brilhava todas as vezes. Era como se estivesse sendo esmagado pelo tridente do demônio. Já não tinha mais esperanças, apenas lutava para respirar, sentia o ar cada vez mais pesado nos pulmões. A garganta seca perdendo a voz, o brilho extinto nos olhos azuis, a pele branca se dissolvendo, os ossos quebrando, a carne já dilacerada e por fim um ultimo suspiro sem desejo de retornar a vida. Assim que morreu, a lua apareceu brilhante no céu, sorrindo sarcasticamente para sua mansão, e lá permaneceu por toda uma noite calma de vento morno, perfeita para uma monótona caminhada noturna.