O DEMÔNIO DA MATA

Nós tínhamos um plano para executar naquele final de tarde, estávamos preparados para a vitória, lutaríamos até o fim para defender os nossos interesses e ideais. Poderíamos até suportar a derrota caso ela surgisse, no dia seguinte estaríamos prontos para uma nova batalha. Estávamos prontos para tudo, pelo menos era isso o que imaginávamos.

Invadimos o terreno com toda a nossa força. Nas mãos levávamos foices, pás e enxadas e no coração a coragem que nos impulsionava. Aquele gigantesco pedaço de chão roubava a essência da mata por nada, e já que as árvores estavam no chão, ao menos serviria para produzir alimento para os desfavorecidos. Como não poderia ser diferente, fomos recebidos pelo chumbo despejado pelos canos enfurecidos das armas que faziam a segurança daquelas terras improdutivas.

Muitos de nós caíram e mancharam com o próprio sangue o solo desejado, tornando o pôr do sol mais rubro e pesado. A violência nos brindava com a sua presença, a morte começava a sorrir...

Nosso grupo se dispersou e fugiu, alguns correram para a mata sob a minha direção, os seguranças seguiram em nosso encalço. Gritei para que o pessoal se espalhasse e se escondesse sob a escuridão proporcionada pelas árvores altas e unidas, cujas copas impediam que qualquer sinal de luminosidade penetrasse mesmo com o sol a pino, logo, no início de noite era impossível enxergar um palmo que fosse diante do nariz.

Eu tentava controlar a respiração a fim de que esta não denunciasse a minha presença. Os malditos cães usavam o faro para servir de olhos para os homens que nos perseguiam, eu me sentia como se fosse uma presa, um animal sendo caçado, encurralado e indefeso.

De onde eu estava era possível ouvir os gritos dos meus companheiros sendo alvejados por aquela corja de mercenários. Era duro não poder ajudar, mas era necessário resistir para poder lutar novamente. Embora eu não pudesse enxergar, pude notar que algo se movia na vegetação logo a minha frente, apertei forte o cabo da foice, eu decapitaria o primeiro que aparecesse.

De repente, o barulho se espalhou em todas as direções, e acompanhado do farfalhar das folhas um grito agudo e estridente ecoou. Sou um sujeito calejado, acostumado às artimanhas que a vida nos prega, mas eu juro pela minha vida, aquilo não soava como algo que tivesse vínculo com esse mundo.

Não tive tempo de sentir por completo o calafrio que começava a surgir no meu pescoço, uma pancada violenta e precisa levou-me ao chão. Quando acordei estava amarrado ao tronco de uma árvore, de cabeça para baixo. Minhas pernas estavam retalhadas, eu sentia o líquido espesso escorrer em abundância, os malditos não quiseram me matar logo, não, eles sabiam da minha posição no grupo, queriam me fazer sofrer, deixar as formigas e os animais me devorarem vivo. Isso eu não posso permitir, não mesmo, preciso sair daqui.

Não adianta, não consigo. O que é isso? Novamente esse barulho...que gritos são esses? O desespero já me dominava quando percebi que os homens, os mercenários, estavam correndo com o pânico estampado nos olhos, a mata exibia uma luminosidade tênue e inexplicável que me permitia contemplar a cena. Eu desejava estar livre para fugir dali, eles estavam armados e ainda assim debandavam como se o próprio demônio estivesse em seu encalço.

O destino parecia debochar de mim, pois como se minha mente estivesse sendo lida, descobri com pesar o motivo do pavor dos homens, e o demônio realmente não deveria ser tão diferente daquilo que se aproximava. A luz o acompanhava, o circundava, ele não caminhava, embora o pudesse fazer sem sombra de duvidas, parecia que se sentia mais confortável daquela maneira, sendo carregado no dorso daquele animal: uma espécie de porco, porém de proporções gigantescas, revestido por pêlos que mais se assemelhavam a longos e afiados espinhos.

Afiadas presas saltavam horizontalmente do focinho do bicho. A criatura que o montava exalava crueldade no ar era difícil encará-la, sua pele exibia um tom de bronze, os cabelos desgrenhados e rubros brilhavam como uma chama, talvez fosse dali a origem da luminosidade.

Olhos amarelos e redondos, os dentes pequenos e afiados eram totalmente perceptíveis naquele sorriso insistente e doentio. Em uma das mãos trazia uma machadinha, na outra uma cabeça decapitada, segurava-a pelos cabelos, o sangue gotejava deixando um rastro, e de onde havia caído cada gota do líquido escarlate, surgia uma planta rasteira e verdejante. A visão era aterradora, mas o que mais prendia a minha atenção eram suas pernas, cobertas por um pêlo espesso e retorcida nos tornozelos, como uma mola, o que deixava seus pés caprinos virados para trás. Ele fumava um cigarro feito de folhas que exalava uma fumaça branca com cheiro de ervas. O demônio conduzia calmamente sua montaria hedionda em minha direção, parecia não se preocupar com a fuga dos bandidos, como se soubesse que não poderiam escapar, afinal.

O pequeno ser parou diante de mim, baforou no meu rosto e gargalhou, então novamente ouvi aquele som estridente, só que agora quase estourando os meus tímpanos.

- Seu desejo é genuíno, moço? Ele me perguntou com uma voz abafada e retraída. Mesmo sem entender direito o que ele queria dizer eu respondi:

- Sim, sim, é genuíno.

Ao ouvir a minha resposta o pequeno demônio atirou a machadinha em minha direção, a lâmina foi de encontro ao tronco da árvore e cortou a corda que me prendia, levando-me ao chão.

Arrastei-me de forma atabalhoada movido pela urgência em sair dali, morrer já seria demais, morrer pelas mãos daquela coisa então, seria um castigo sem tamanho. O ser não me seguiu, me deixou partir, apenas gargalhava mediante o meu desespero.

Comecei a correr pela escuridão da mata, ouvi outro grito, não queria me virar, mas não consegui resistir. Um rapaz estava ajoelhado, a criatura falava alguma coisa para ele, provavelmente fazia a mesma pergunta. Alguns instantes se passaram até que o braço curto e musculoso do demônio se levantou e com o machado partiu o crânio do homem.

Foi a minha vez de gritar, fazendo com que a criatura se virasse em minha direção e soltasse uma nova gargalhada infernal, como se zombasse de mim. Nessa hora eu agradeci por ter sido poupado da sua fúria. Por horas ou dias, eu estava confuso e não conseguia precisar, continuei a circular pela floresta, ouvia gritos de dor e súplica, ouvia também risos e gritos de contentamento e prazer.

Eu estava num inferno e não conseguia sair, várias vezes me deparei com as marcas de pegadas da criatura no chão, mas eu não sabia se ela estava indo ou vindo, os pés retorcidos do ser e de sua montaria causavam essa confusão, eu não poderia arriscar, o jeito era seguir de forma transversal, mesmo que fosse preciso escalar as árvores ou atravessar os riachos, o importante era não me deparar novamente com aquele horror.

Fui bem sucedido na minha empreitada, o que me deixava mais tranqüilo para buscar uma saída, eu tentava ignorar todos os sons e ruídos que chegavam aos meus ouvidos. E foi do alto de uma seringueira que consegui avistar uma trilha para fora daquele inferno verde, eu estava enfraquecido e debilitado, as feridas nas pernas doíam demais, mas não poderia desistir, eu tinha muita coisa a fazer na vida.

Segui o traçado que imaginei como certo e senti na pele o que seria os tão desejados raios do sol, meus olhos chegavam a doer. Apertei o passo, a alegria começava a preencher meu coração, eu tropeçava e caía, mas nada disso importava ou me incomodava, eu estava livre.

Tropecei e caí novamente, mas dessa vez não havia sido uma pedra ou galho retorcido o motivo da minha queda, fora a pata maliciosa de um porco colocada entre as minha pernas ávidas e desesperadas.

Tentei me levantar, mas fui impedido pelo corpo do animal que se projetava sobre mim. O demônio me olhava de maneira impaciente, enquanto tragava o cigarro verde.

- Não! Você me liberou, me liberou!

- Eu não disse isso, disse moço? Perguntei se o seu desejo era genuíno.

- Isso, ele é, ele é, eu juro!

- Então o moço acha genuíno se aproveitar da necessidade dos outros, dos humildes, em causa própria? Para enriquecer às custas dos miseráveis?

- Não! Não! Eu sou um líder sim, mas sou um sem-terra também, os fazendeiros, eles sim derrubaram as árvores por nada! Foram eles, só eles.

- Então o moço não deixou a mulher e os filhos numa casa bonita e confortável na cidade? Não se aproveitou dos pobres? Não cobra pagamentos sobre as terras obtidas? Não minta para mim! Não minta moço!

- Eu...eu...

- Seu desejo não é genuíno, moço, não é...

Eu não tinha argumentos, ele estava certo afinal. Fechei os olhos, lágrimas escorreram, eu não queria ver a lâmina. Senti o impacto partir meu crânio e o sangue descer. Meus olhos ainda avistaram o mundo lá fora, tão próximo, mas tão distante. Será que eu faria diferente? Não sei. Ouvia a gargalhada do demônio se afastando de onde eu estava, lentamente fui fechando os olhos, para nunca mais abrí-los novamente.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 17/07/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1705258
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.