Espelho, espelho meu.
O espelho rachou nas mãos da garota, ela estava sentada na beira da cama olhando para seu reflexo agora partido enquanto sentia as gotas de sangue escorrendo em direção ao piso.
O livro de contos de fada estava aberto sobre a cama, em uma das páginas uma ilustração pintada por uma criança, enquanto na outra o texto em letras grandes e bem visíveis contava a história. Os traços borrados da pintura e as cores extravagantes davam ao desenho angelical um ar diabólico. A bruxa ardia como o fogo, enquanto a princesa era azul, fria como o gelo.
A garota suspirou derrotada, deixou o espelho cair e fechou o livro com ferocidade, deixando nele marcas de sua mão ensangüentada.
- Isso é tolice! – disse a garota olhando para os cortes profundos em sua pequena mão, parecendo pela primeira vez sentir a dor atingi-la.
Levantou correndo e correu em direção a pia do banheiro, deixando a mão sob a água corrente, enquanto olhava para seu reflexo mirrado no grande espelho da parede.
Os cabelos eram como palha, tanto na cor, quanto no aspecto, espigado, desidratado, envelhecido. O rosto apresentava a maciez da pele de uma criança, mas os traços eram profundos e sérios. Os olhos demonstravam exaustão tremenda enquanto ela apertava os lábios com raiva.
Um vento forte entrou pela janela aberta, folhas mortas do carvalho caíram sobre o acolchoado. O livro se abriu com a fúria da natureza, as páginas sendo arrancadas e voando em direção a parede do quarto.
Súbito como começou o vento parou, sobre a cama as folhas formavam as letras B e R. O livro estava aberto onde a mão ensangüentada da garota deixara sua marca, mas agora a ilustração estava com uma pintura perfeita, as cores eram vivas e vibrantes.
A garota deixou a torneira aberta enquanto olhava abobalhada para o tumulto instaurado em seu quarto. Páginas arrancadas cobriam o chão, sua mão pingava uma mistura de sangue e água manchando algumas páginas. O livro aberto emanava um brilho suave e pulsante, as imagens começaram a mover.
- Ei, você! Você, garotinha! Anda logo! – disse a bruxa presa no livro.
A garota aproximou-se cautelosa e pegou o livro nas mãos.
- Cuidado! Não balança! Vou ficar enjoada! - resmungou a velha.
- Desculpe! – disse a garota colocando o livro com cuidado em seu colo.
- Ótimo! Ótimo! Agora diga-me o que está escrito em cima da cama! – pediu a bruxa ansiosa.
- B e R? – perguntou ela.
- B e R? Só isso? Tem certeza? – questinou a velha.
A garota olhou novamente para checar, mas agora não eram mais as mesmas letras que estavam na posição, as folhas haviam se movido, formando outras.
- Espere... agora mudou para A e N...
- BRAN? Não faz sentido ainda!– disse a velha pensativa.
- Oh, tá mudando denovo…C e A…
- BRANCA? – perguntou a velha incrédula.
A garota encolheu os ombros observando as folhas que se agitavam... Mas dessa vez elas não formaram letra alguma, mas sim, um desenho de uma linda maçã vermelha, pois haviam se esfregado no sangue da garota.
- O quê? O quê está acontecendo? – disse a bruxa levantando-se da velha cadeira e debruçando-se na página como se esta fosse uma janela.
- Uma maçã vermelha? Pensei que era branca!
- Você nunca leu a história? – perguntou a garota incédula.
- Qual história?
- A bela adormecida!
- Claro que eu já li! Fui eu que fiz! Mas que tem a ver a branca com minha maçã envenenada?
- Ah, é, verdade, a branca de neve é de outro conto.
- Que coisa…
- Você não pode perguntar para seu espelho?
- Ah, claro, perguntaria… mas não sei onde aquele danado se escondeu!
- Talvez seja melhor você procurá-lo!
- Bom, me ajude! É um espelho arredondado, sem moldura, pequeno…
O rosto da garota ficou branco, os cacos do espelho ainda estavam sob seus pés. Ela abaixou o olhar e viu o rosto do espelho quebrado, mostrando-se em centenas de pequenos pedaços amaldiçoados.
- Oops – deixou escapar a garota.
- Você achou?
- Acredito que sim, mas não sei se ele vai poder ser de muita valia.
- Por quê?
A garota virou o livro, inclinando a bruxa para avaliar a cena destruidora. O homem dentro do espelho se agitava balançando as mãos, incrédulo e depois as levando a seu rosto, contendo lágrimas de desespero. A bruxa berrou, um som agudo e estridente que fizeram as vidros do quarto racharem. Um grito aterrorizante que foi ouvido pela vizinhança toda.
A garota fechou o livro violentamente, tentando conter o berro da bruxa. Ouviu passos no corredor. Apressou-se a jogar todas as folhas e cacos para debaixo da cama e enfiou-se em baixo de seus acolchoados.
A porta foi aberta, uma mulher de cerca de vinte anos vestindo uma camisola branca entrou no aposento. Em sua mão, uma linda maçã vermelha.
- Tudo bem aqui? – perguntou desconfiada a babá.
- Tudo – mentiu a garota olhando aterrorizada para a maçã e pela primeira vez reparando no cabelo moreno curto da babá emoldurando seu rosto branco de bochechas rosadas.
- Tem certeza? – perguntou a babá sentando-se na beira da cama.
- Sim
- Você parece tão assustada. Bom, qualquer coisa estarei lá embaixo lendo, ok?
- Ok
A babá levantou-se, seu pé resvalou do chinelo de dedo fazendo seu dedão encontrar um caco do espelho.
- Ai! – disse ela de súbito abaixando-se para estancar o sangramento.
Assim que ela se acalmou, observou a bagunça que estava em baixo da cama.
- Mocinha!! O que aconteceu aqui? – disse ela em um tom de voz sério, chacoalhando três páginas arrancadas do livro.
- Nada, o vento arrancou a página...
- Hmmm, amanhã quero esse quarto limpo antes de eu sair!
- Tudo bem...
Assim que a babá saiu, a garota adormeceu de súbito, uma sensação de sonolência fora do comum. Acordou na manhã seguinte quando já era tarde, sirenes da polícia soavam lá na rua. Ela levantou colocando cuidadosamente os pés no chão indo olhar embaixo da cama, mas para sua surpresa, não havia nada lá.
Ela desceu as escadas em direção a sala, vários policiais estavam ali, assim como sua mãe e seu pai. Sentada tranquilamente em uma cadeira, estava a babá. Sob seu pé uma poça de sangue, em sua mão, a maçã vermelha tranquilamente colocada, com apenas uma mordida comida.
A garota colocou as mãos na boca, engolindo um berro seco enquanto corria novamente para o quarto. Procurou sem descanso pelo livro e pelo espelho, mas não havia nada lá, como se tudo não passasse de um pesadelo que deixou sua marca no mundo real.