O Caminhoneiro
Acordou sentado de mau jeito sob a sombra de um bar abandonado.
Que lugar era aquele? Como chegara até ali? Não se lembrava de ter bebido na noite passada. Aliás, fazia muito tempo que não sabia qual era o gosto de um bom uísque.
Estava quente, o Sol lá no alto queimava a longa BR, ondas de calor confundiam a sua visão. Levantou-se com certa dificuldade, tirou a poeira de sua calça olhando para o horizonte, tentando colocar a mente em ordem. Logo recordou-se que estava hospedado em um hotel. Era só seguir a estrada abaixo, talvez não estivesse tão longe. Olhou para o relógio em seu pulso:
10:44
Passou a mão pelos cabelos. Estavam úmidos. Soltou um muxoxo. Deveria ter saído com a carga há uma hora. Rapidamente começou a caminhar estrada abaixo. Haviam outros bares abertos por ali. Estava faminto, mas precisava chegar logo e sair com aquela carga, talvez levasse algum lanche para comer enquanto dirigia, mas no momento só pensava em chegar ao velho hotel, embora a barriga reclamasse alto. Suava com apenas algumas passadas. Sua pele ardia. Os bares ficavam mais distantes uns dos outros à medida que avançava, logo não haveria nenhum, somente ele e a estrada mais uma vez.
Um caminhão passou em alta velocidade provocando uma leve, mas aliviante brisa.
Como fora parar debaixo daquele bar? Sua mente estava a mil. Será que nessas tantas andanças pelas estradas durante as madrugadas tinham acabado por gerar algum distúrbio do sono? Talvez um sonambulismo desenvolvido, por conta de tantas noites insones?
Não!
Carla teria percebido isso.
A esposa sempre prestava atenção em tudo, pensar nela o fez aumentar seu ritmo. depois que entregasse a carga poderia correr de volta para casa, tirar alguns dias de folga, relaxar na rede assistindo TV com a mulher e as crianças, comendo comida caseira, sem se preocupar em chegar no horário.
Olhou para seus pés e parou. Tinha sangue em seu jeans. Imediatamente levou a mão sob o nariz. Também havia sangue ali.
Teria ele entrado em alguma briga?
Franziu o sobrolho tentando se lembrar de algo, mas a última recordação era a cama dura do hotel, a julgar pela dor nas costas. Continuou a caminhar tentando puxar da memória algum evento que lhe explicasse aquilo. Consultou novamente o seu relógio:
11:05
A vegetação rasteira começava a dar lugar a grandes touceiras de mato seco. Já não havia estabelecimento algum à beira da estrada, pequenas árvores também surgiam para incrementar o cenário solitário. A descida se tornava agora uma subida quase íngreme. Sua camiseta estava ensopada de suor. A estrada era uma imensidão deserta e silenciosa. Vez ou outra a quietude era quebrada por um veículo em alta velocidade. Quase no topo da subida encontrou os restos mortais do que fora antes um vira-latas, um cheiro horrível invadiu suas narinas, sobre os ossos do cachorro havia uma pasta marrom que fora antes a pele do pobre animal.
Sua cabeça doía, era quase que insuportável, poderia pegar uma insolação, mas a vontade de chegar logo no hotel estava se tornando desesperadora.
Chegou ao topo.
11:19
Uma longa descida se estendia a sua frente por mais ou menos um quilômetro. Um longo e mal cuidado tapete de piche.
Respirou profundamente antes de começar a descer a extensão.
As grandes touceiras de mato junto às árvores formavam uma parede a sua volta aumentando a sensação de isolamento. Caminhava lentamente. Os pés movendo-se automaticamente, ardendo a cada passo, como se pisassem em um chão forrado de brasas, a impressão era de que as solas de suas botinas derretiam. Sabia que seguia na direção certa, mas não se lembrava se aquela era realmente a estrada, recordava-se apenas do hotel e de seu caminhão.
O silêncio era pesado.
11:41
Estava na metade da descida, a cabeça baixa devido à forte luminosidade.
Junto à estrada o chão era de terra batida.
Há uns dez metros à frente avistou algo fincado na terra. Mas o que mais lhe chamou a atenção era que em volta daquele objeto fincado a vegetação era interrompida, um diâmetro sem mato ou árvore.
Mais algumas passadas e estava em frente ao local. O objeto em questão era uma cruz de madeira pintada de preto, havia nela letras brancas desenhadas toscamente.
EMILIO DIAS
16/05/1984
a
13/08/2020
Ficou ali parado contemplando a cruz por um tempo, ouvindo os carros que passavam ocasionalmente atrás de si. Já vira aquele nome antes, só não se lembrava onde.
Sem pensar levou sua mão ao bolso traseiro do jeans e tirou sua carteira de couro gasto.
Abriu-a.
Viu sua carteira de identidade e a puxou para fora, seus olhos caíram sobre a sua assinatura: Emilio Dias.
Olhou novamente para a cruz.
Era seu nome escrito lá!
Balançou a cabeça negativamente tentando entender aquilo tudo. Só podia ser alguma brincadeira de mau gosto.
Um carro estacionou lentamente atrás dele. Virou-se e caminhou em direção ao automóvel, o homem que estava dirigindo saltou para fora e abriu a porta traseira para que um garotinho descesse e urinasse ali perto do mato.
Ninguém pareceu notá-lo, sentada ao lado do passageiro estava uma moça. Caminhou até ela a fim de lhe perguntar sabe-se lá o que. Estava confuso. Mas o vidro do carro estava fechado e o que viu refletido não era ele e sim um monstro.
Quem estava no reflexo tinha um enorme buraco no lado esquerdo da cabeça, e o outro lado estava totalmente queimado, sangue seco lhe cobria os ombros.
O homem colocou o garotinho no banco traseiro e voltou para seu lugar atrás do volante.
O menino olhou em sua direção e cobriu o rosto com as mãos, assustado com pânico no semblante infantil enquanto o pai acelerava de volta para a estrada.
O carro seguiu o trajeto e Emilio ficou ali parado, ainda segurando sua carteira de identidade na mão. Sem perceber caminhara para o meio da estrada, ainda balançando negativamente a cabeça.
Um caminhão em alta velocidade descia a BR, Emilio levou os braços em frente ao rosto, a fim de se proteger do impacto, mas a colisão não aconteceu. O caminhão passou através dele que caiu sentado no asfalto quente contemplando a cruz sobre seu túmulo.
FIM
__________
Conto publicado em 2021 na antologia "Histórias Para Ler e Morrer de Medo - IV"