O Torneio das Trevas
 

            Toda a terra era um piso de areia. As paredes, muros, montanhas, construções e objetos de qualquer espécie eram de vidro, de cristal, frias, indo do transparente ao opaco, podendo tanto reluzir quanto não permitir a passagem de qualquer forma de luz. As pessoas me conheciam, sorriam, eram amigas e não possuíam pés. Caminhavam sobre cotós, sendo o tornozelo seu limite com o chão e tinham cascos, ferraduras, aproximando-as do trotar típico dos cavalos.
            Naquele mundo estranho valia a valência física. A força bruta era o grito do líder e quanto mais músculos maior a sua projeção naquela sociedade paralela, um dos estranhos mundos ao qual me arrasto e no qual vivo em uma simultaneidade incessante com a natureza da Terra. Sei que me conduzem, por vezes, nessas jornadas impensáveis com um determinado propósito que desconheço e que muito me embaraça nos momentos em que a essência do éter se liberta da prisão do corpo, que nos detém e também preserva, até que chegue o momento do necessário ajuste de contas em que as verdades e mentiras se hão de confrontar.
            Haveria ali uma disputa, na qual estaria em jogo uma grande honra. Era quase como um futebol, travado na areia, tendo cada time centenas e centenas de jogadores. O objetivo era atentar contra os adversários chutando uma bola de cristal duro que atingindo qualquer um o eliminaria da peleja até que um grupo se tornasse mais que o dobro do outro. Os placares começavam com cerca de 400 para cada lado e iam reduzindo a contagem. Uma multidão enorme se postava em arquibancadas incrivelmente íngremes que pareciam não ter fim devido à sua estranha disposição. A enorme arena possuía obstáculos particularíssimos, dentre eles, uma espécie de erva, que nascia das entranhas do mundo e que chicoteava os jogadores arrancando-lhes nacos de carne podendo sugá-los para buracos que se abriam como redemoinhos aleatórios sob os nossos pés.
            Evidentemente eu não queria estar ali, mas me tratavam como a um dos jogadores, sendo a minha esquadra vermelha, de uma tonalidade quase alaranjada. Os números eram estranhos, mas eu os conhecia naquela vida que levo ao mesmo tempo em algum outro ponto do infinito que não compreendemos, que brinca com o quanto não sabemos dele. Trombetas azuis poderosas anunciavam o início do esporte atroz. O ruído enfurecia as ervas que brotavam com suas línguas verdes emitindo um som medonho, um tipo de grunhido que chicoteava o ar. A multidão urrava ávida por sangue e morte.
            No campo branco as equipes se espalhavam, naquele momento do eterno crepúsculo que se fazia ali, tendo a cobertura de um céu enlameado por nuvens grotescas, arroxeadas, emitindo uma constante e pavorosa chuva de relâmpagos e de trovões que faziam tremer a intimidade das vísceras. O time adversário possuía a tonalidade verde, com ombreiras típicas do futebol americano. Nossos capacetes apresentavam diversas setas afiadas. Armaduras de metal polido e reluzente com o dantesco símbolo de cada falange amaldiçoando o próprio existir. Podíamos atacar estilhaçando os adversários e batendo seu corpos contras as muralhas de vidro, ou arremessá-los para perto das línguas de ervas e seus redemoinhos famintos.
            - O dobro ou nada! – Gritava a multidão e o jogo tinha início. Sem raciocinar direito, achando familiar o que agora me parece estanho, corria pelo campo buscando a um só tempo fugir das investidas e atacar os adversários. Podíamos usar a cabeça e o corpo para impor golpes, mas nunca os pés ou as mãos sob risco de desclassificação. Os árbitros voavam pelo espaço suspensos em guindastes içando os infratores e os eliminados. Os que morriam seriam venerados como heróis de batalha e suas famílias se perpetuariam em honra, na torpe honra daquele orbe triste. A peleja poderia durar horas, à medida que as equipes se consumiam e que os eliminados eram mortos ou abatidos pelo toque da pelota.
            Quando menos de 100 restavam de cada lado, sem que nenhuma equipe conseguisse impor derrota à outra, senti uma das línguas arrancar-me a perna direita caindo ao solo. O sangue jorrava em uma cor estranha, negro, inundando a areia. Todos se afastaram apavorados e, começaram a gritar:
            - Mandata! Mandata!
            Em torno de mim a poça negra começou a levantar-se e me envolveu completamente dotando meu corpo de poderosos músculos e de uma insaciável fome por carne. Notei que possuía garras incomuns, afiadíssimas e de cor de bronze. A perna arrancada crescera como por milagre e era agora um membro poderoso, peludo, cinza e percebi que meu corpo crescera de forma descomunal. O meu apetite voraz levava-me, em um átimo medonho, a atacar os companheiros de luta devorando-os e sugando-os com uma língua que os buscava a metros de distância. As ervas se encolheram de medo e os redemoinhos se fecharam. O público sumia por passagens que se abriam rápidas nas entranhas das arquibancadas. Percebi que daquele mundo eu era o sinônimo de medo, o senhor das trevas e o próprio diabo em carne; tendo uma carne grossa, poderosa, pervertida em uma forma que nós não conhecemos, ainda, mas na qual talvez possa me transmudar se, por qualquer motivo, um de meus membros ousar ser amputado...