Antigas Superstições
Desde que comecei a trabalhar na IBM como técnico de campo, cobrindo o sul de Minas Gerais, minha vida tem sido na estrada, de cidade em cidade, resolvendo os problemas em computadores dos bancos. Não acho ruim, é bom viajar e conhecer lugares, claro que fico sujeito a ser chamado em locais remotos e em horários nada atrativos.
Em uma dessas ocasiões, recebi o chamado para ir até Monte Verde, e eu estava em Extrema. Não era longe, o problema era o trecho final para Monte Verde, que é uma horrível estrada de terra, que sobe pela serra, e em muitas partes beira a um precipício. O pior de tudo é que estava escurecendo, minha viajem seria perigosa.
Aproveitei a parte boa da estrada e acelerei ao máximo. Além de ser sexta feira as 19:00, ainda tinha que agüentar meu RRM (a pessoa que diz para onde tenho que ir e que fica me cobrando!) dizendo para ir mais rápido, pois o pessoal do banco estava somente me esperando. Estava fazendo o máximo que podia, mas infelizmente na estrada de terra eu ia precisar de muita cautela, até porque havia chovido muito e a lama estaria por toda parte.
No inicio da estrada, fiquei tonto com o sacolejar do carro, mas logo me acostumei. Realmente a estrada estava ruim, e como eu imaginava havia muita lama e agora começava a garoar. Tinha que ir muito devagar, em alguns trechos meu carro andava na diagonal deslizando na lama. Apesar de ter alguma experiência em terrenos difíceis, eu estava muito receoso! Liguei o limpador do pára-brisa, mas só piorou, espalhou a lama, deteriorando minha visão já não muito boa, pois o farol alto não estava funcionando! Para ajudar na minha tensão, meu RRM liga.
- Onde você está!? - Já perguntou aos berros.
- Estou indo, na estrada de Monte Verde. - Respondi com voz de poucos amigos.
- Ainda? Não acredito! Já tem mais de 1 hora e meia que eles notificaram a ocorrência e você só tinha 1 hora para chegar!
- Sinto muito Sidnei, mas estou de carro e não de helicóptero! Está chovendo e fique torcendo para que meu carro não atole nesse lamaçal! - Em condições normais eu nunca responderia desta maneira.
- Você sempre dá desculpas! Me avise quando chegar! Tchau! - Desligou abruptamente.
Eles ficam confortavelmente nos escritórios da IBM em São Paulo e nem imaginam o que temos que passar! Agora eu estava nervoso, tentei ir ainda mais rápido, tentando controlar o zigue-zague do carro e forçando meus olhos para enxergar além do que o farol baixo permitia. "Espero que não haja animais na pista", pensava. Mas para meu azar, surge abruptamente dentro do campo de iluminação do farol um rápido vulto, o qual eu atingi com a quina do carro do lado do passageiro. "Estou com muito azar mesmo, devo ter matado uma bezerro!". O que eu atingi não era muito grande, então não poderia ser uma vaca, que era comum nestas estradas. "Ainda bem que estava devagar, acho que não amassou nada". Nem me preocupei com o animal, quando ia continuar, ouvi um gemido de dor, com voz feminina. Imediatamente sai do carro e fui para o outro lado do carro, a chuva ainda caia, mas fracamente. "Minha nossa atropelei uma mulher!", foi meu espanto quando vi uma mulher, de aparência jovem talvez 25 anos, estatelada no chão, com o vestido que outrora branco estava marrom de tanta lama. Ela estava com a mão no quadril, provavelmente a parte onde eu a atingi.
- Você está bem?! - Perguntei, ajudando-a a se levantar.
- Sim... Ai! - Ela parecia agora mancar um pouco.
- Você surgiu de repente! O que faz aqui?
- Estava somente indo para casa... - Respondeu de cabeça baixa, com tom cansado, pela palidez parecia que ela não estava muito bem, mas era muito bela.
- Onde você mora?
- Quase na entrada de Monte Verde. - Ela respondeu ainda com fraca voz.
- Vamos, eu te levo até o hospital, estou indo para Monte Verde.
- Não precisa... - Se apoiando em mim, ela mal parava de pé, e estava muito gelada, pois já havia tomado muita chuva.
- Assim você pega uma pneumonia moça. Vamos por favor.
- Mas vou sujar todo seu carro...
- Não se preocupe. Eu acabei de te atropelar, tenho obrigação de te ajudar. Qual seu nome?
- Maria...
Assim ela consentiu e entrou no carro, e que droga, realmente sujou todo meu carro! E agora eu tinha dois problemas! Bem, continuamos a viagem, ela estava ensopada, imaginei que estivesse morrendo de frio, então ofereci um dos muitos agasalhos que vão se acumulando no banco de trás do carro porque nunca os devolvo ao guarda-roupa.
- Não precisa, não estou com frio.
"Sem frio? Esse povo do interior é mesmo muito acanhado!", pensei. Peguei um dos agasalhos e pus no colo dela.
- Quando sentir frio pode vesti-lo.
Tentei conversar, mas ela parecia de fato muito acanhada, só dizia sim e não, era difícil manter um diálogo, afinal diálogo é entre 2 pessoas. Durante o caminho observei algo, ela só olhava para frente e fazia expressões conforme íamos avançando na estrada. Fazia expressões de dor, depois de raiva, depois de cansada, havia momentos em que sua expressão de dor era tão intensa que achei que eu realmente a tinha machucado.
- Você está bem? - Perguntei preocupado. - Te machuquei muito?
- Não, não foi você... - Ela respondeu levantando um tímido e pequeno sorriso.
Ainda sem conseguir que ela falasse muito, continuamos nossa viagem. Chegando a Monte Verde, a cidade recebia seus visitantes com um belo e grande portal, com os dizeres de boas-vindas. Pouco antes de entrar pelo portal, a moça balbuciou algumas palavras.
- Pare...
- Desculpe não entendi. - Respondi
- Pare! - Ela respondeu com alto tom, com o susto freei bruscamente.
- Qual o problema?
- Nada, muito obrigado. - Ela disse saindo do carro rapidamente e sumindo na escuridão.
- Espere! Temos que ir ao hospital! – Saí do carro tentando encontrá-la, mas foi em vão, entrou na mato e não consegui mais ver nenhum sinal dela.
“Um problema a menos”, pensei. Entrei na cidade, fui até o banco que me chamara ali. Resolvi o problema, que, aliás, era uma tolice, poderia muito bem esperar até segunda-feira, mas sabe com é novos gerentes, sempre querendo mostrar serviço.
Terminado meu trabalho, que não durou nem 20 minutos, eu estava faminto e preocupado com o que teria acontecido àquela moça. Fui até uma lanchonete próxima, onde parecia ter algo de bom para comer. Havia alguns senhores idosos lá, conversando todos uns com outros, um clima bem agradável e familiar, que me relembrou os tempos quando eu viajava para o interior e todo mundo se falava e contava causos e estórias ou histórias, nunca se sabia o que verdade ou não. Senti-me atraído e sentei-me próximo a eles, e como era de se esperar logo estava participando da conversa. Eu adorava ouvir esses causos do interior, meu avô costumava contar muitos.
Entretido na conversa, até me esqueci da misteriosa moça que atropelei. Mas sua memória voltou a minha mente quando eles contaram a respeito de uma superstição que todos tinham na região, a famosa mulher de branco. Bem, essa superstição é famosa em qualquer lugar do interior! Mas algo que eles contaram me fez arrepiar dos pés a cabeça. O que eles contaram foi muito parecido com o que aconteceu comigo. Segundo a crença local, ela aparece pedindo carona e ao chegar ao portal da cidade, ela pede para parar porque tem medo de entrar. Pois na cidade ela foi brutalmente assassinada, há muitos e muitos anos atrás. Ela foi abusada e espancada em vários pontos da estrada, e seu corpo foi jogado em algum lugar próximo ao portal da cidade. Desde então sua alma vaga por aquela estrada, pegando carona e tentando encontrar seu assassino e ter sua vingança.
Apesar do arrepio, achei graça no que contaram, afinal eu não era nem um pouco supersticioso.
- Que legal! Sabia que hoje a noite vindo pra cá eu dei carona para uma mulher de branco que não quis entrar na cidade! – Disse em tom alegre para dar mais assunto à conversa.
Repentinamente todos se calaram e olharam para mim. Um deles perguntou sem acreditar, com os olhos arregalados.
- Você o que???
- Mas não se preocupe, não era a mulher de branco, porque ela não pediu carona, eu acabei atropelando ela.
- Oh não! Seu maluco! Tem noção do que fez? – Um deles perguntou asperamente.
- Eu sei que é crime atropelar alguém, mas eu ofereci socorro, estava levando ela para o hospital!
- Não é disso que estou falando! Durante todos esses anos, alguns motoristas desavisados que deram carona para ela tentaram fazer mal a ela, tentaram abusá-la, e ela permitia... Mas quando deixavam a cidade ela os reencontrava na estrada novamente e matava-os e enterrava-os no mesmo lugar onde seu corpo foi enterrado. Assim ela se vinga de todos os homens que tentam fazer mal a ela. Aqueles que deram somente carona a ela ganham a chance de voltar a salvo, mas ao retornar pela estrada, visualizavam em muitos trechos sua real forma, uma mulher toda maltrapilha, desfigurada e horrível de se olhar. Embora ela não fizesse mal a eles, o susto e o tormento mataram alguns ainda na estrada e outros ficaram tão apavorados que nunca mais tiveram uma vida normal. Aprenda isto meu rapaz, nunca em sua vida dê carona a uma mulher de branco em uma estrada deserta no meio do mato, nunca!
- Mas eu a atropelei, era uma pessoa...
- Boa sorte garoto, você a machucou...
Incomodado com este causo, decidi ir embora. Apesar de tudo, acalmei minha mente e meu receio aceitando que tudo aquilo era “folclore” do povo local e fui-me embora. No meu carro, coloquei um som bem alto, sai da cidade olhando para os lados buscando a mulher de branco inconscientemente, mas logo vi me sozinho e imergi na música que ouvia e logo me esqueci da assombração.
Estava indo tranquilamente, não chovia mais, mas ainda eu tomava alguns cuidados com a estrada molhada. Quando já estava na metade do caminho, meu rádio começou a perder a sintonia e a chiar. “Que droga, já estou fora de alcance das estações, eu estava gostando dessas músicas sertanejas.”, pensei enquanto tentava encontrar outras estações. Na tentativa de sintonizar uma rádio, percebi que meus faróis começaram a piscar, estavam falhando. “Era só o que faltava, esse carro dar problema aqui no meio do nada”, tirei meu celular para ver se tinha sinal caso eu precisasse, e para piorar tudo meu celular estava piscando e falhando. “Droga, até meu celular está com problemas!”. Andei por mais alguns metros nesta situação até o carro parar de vez e desligar completamente os faróis. Desacreditado no tinha acontecido, encostei minha cabeça no apoio do banco e fechei os olhos para controlar o estresse. Após respirar por alguns segundos decidir tentar ligar o carro. Deixei o rádio e os faróis desligados, para não consumir bateria. E com muito pensamento positivo virei a chave. Para minha alegria o carro ligou sem problemas. Preparando-me para sair, liguei os faróis novamente. A luz do carro iluminou imediatamente poucos metros a frente e entrei em pânico! A moça que atropelei, a mulher de branco, estava bem na frente do carro com a mão apoiada no capô, olhando fixamente para mim, com uma expressão de raiva. Então ela começou a bater no capô e gritar, um grito horrível e estridente. Sua força era tamanha que amassou o capô. No desespero, engatei a ré e acelerei muito deixando ela onde estava. Apavorado, respirando incessantemente não sabia o que fazer. Ela calmamente começou a caminhar em minha direção. Continuei a dar ré e embora ela estivesse caminhando a passos lentos, sua distância de mim diminuía. Resolvi fazer então o impensável. Engatei a primeira, segurei bem o volante, que já escorregava com minha mão suando frio, acelerei e resolvi passar por cima de tudo! Enquanto meu carro ganhava velocidade eu procurava mantê-lo em linha reta, na direção daquele monstro. Quando alcancei meu alvo, senti minhas rodas passaram por cima dela, quase perco o controle do carro, um grito horrível saiu dela. Sem olhar para trás continuei apavorado, acelerando o máximo que podia. Em meu desespero, ouvi novamente seu grito e senti uma forte pancada atrás do carro, e logo em seguida a lataria da porta ao meu lado foi amassada tão fortemente que encostou mim, porque recebeu um golpe e afundou até tocar meu corpo. Ao olhar para o lado, com a pouca luz disponível ali, vi a sombra daquele ser horrível, desta vez ela estava como os velhos haviam falado, maltrapilha e desfigurada. Isto piorou minha situação e meu medo, ela parecia correr de forma incrível, continuava a dar socos no carro e afundando a lataria, fazendo-o parecer que tinha capotado. Ela correu mais a frente, e com a luz vi sua forma horrível e medonha. Sem pensar muito, novamente apontei o carro em direção a ela e a atropelei novamente, e aquele terrível grito ecoou pela noite. Ela continuou em minha perseguição, destruindo completamente meu carro, até chegar de novo ao meu lado e quebrar o vidro. Agarrou-me pelo pescoço com uma das mãos, enquanto com a outra se segurava na porta. Meu pavor era indescritível, estava sufocando, mas tentando manter a calma para poder usar a cabeça. Decidi frear, e assim o fiz, lançando a mulher longe. Sem perder tempo, novamente a atropelei, sentindo as rodas passarem por cima dela e seu corpo raspar o assoalho abaixo de meus pés. Neste momento eu já me encontrava chorando e com o pescoço sangrando por causa das unhas dela. Sua perseguição continuou implacável, eu tentava evitar que ela se agarrasse ao carro novamente, mas era muito difícil. Quando eu achava que tudo estava perdido vi as luzes da cidade vizinha, a estrada de terra estava acabando. Esforçando para manter o controle do carro acelerei ainda mais e quando estava próximo do asfalto, a mulher pulou bem na minha frente, em cima do pára-brisa. Olhou-me fixamente com olhar de ódio, começou a gritar, fechou as mão e batia no pára-brisa, com feições que me causavam náuseas e um horror indescritível. O pára-brisa ficou totalmente rachado, mas antes que ele se quebrasse totalmente ela saltou, pois eu havia chegado ao asfalto e num local iluminado. Percebi então que ela não passaria dali. Parei o carro, sai sem acreditar no tinha acontecido. Olhei para a estrada, e lá estava ela, no limite da estrada de terra. Ela gritava, balançava os braços como se quisesse me pegar. Sua visão era horrível, antes a bela mulher de branco, com um vestido angelical e feições de moça inocente, tornara-se num monstro, maltrapilho, sujo, com pouco cabelo, olhos fundos, a pele parecia cair de seu corpo, e seu corpo era horrível, seco e magro. Pus mão no pescoço, que ainda ardia do arranhão, e para meu pavor algo havia penetrado através da minha pele. Arranquei o me incomodava, que causou certo sangramento. Tremendo, vi que a unha daquela mulher havia ficado em mim, apavorado joguei aquilo no chão. Quando notei, minha mão estava cheia de sangue, e cada vez saindo mais, meu pescoço sangrava muito. Logo senti-me tonto com a perda de sangue, sentei no asfalto, encostado no carro e apaguei...
- Ei, você está bem?! – Quando abri os olhos, me deparei num leito de hospital, com o Sidnei, meu RRM que me fez ir até àquele lugar medonho, ao meu lado.
- O que aconteceu? – Perguntei confuso.
- Você sofreu um acidente terrível! Ainda bem que foi depois de ter concluído o serviço!
“Eu quase morri e ele preocupado com o serviço!”, indignei-me, agora recobrando a consciência me lembrei de todo o pavor da noite passada. Pensei em dar-lhe um soco, mas tive uma idéia melhor...
- Sidnei, tenho uma sugestão para você. A cidade que fui era incrível! O visual da noite e da estrada até lá é impressionante, não sei como esse caminho não é mais famoso.
- Sério? – Disse ele interessado.
- Sim... – Eu concordei sabendo que ele adorava lugares novos, e sempre gostava de visitar as cidades do sul de Minas.
- O melhor de tudo é que no caminho, se tiver sorte, poderá dar carona a mulheres lindas, e sabe como são essas mulheres do interior quando vêem alguém da cidade grande... Acreditam em tudo o que dizemos. E você pode levá-las até a cidade e ter companhia. O que acha?
- Legal! Parece muito bom! – Disse muito animado esfregando as mãos.
- Está tendo uma festa lá, e há muitas moças disponíveis esperando carona na estrada. Você deveria aproveitar que é sábado, já está quase noite, e ir até lá! Amanhã você volta e me leva para casa, foi por isso que veio não é?
- Foi sim. Ótima idéia! Já que perdi meu fim de semana para te buscar, vou aproveitar então! Obrigado pela dica! E sem ressentimentos!
- Sem ressentimentos! Bom divertimento...
Assim ele saiu apressadamente, em busca de uma boa companhia...