Buscando Paz...
Por muitos dias e noites, a calmaria sempre foi predominante, tão calmo que chega a ser entediante. Apesar da preferência por estar perto da natureza numa casa no meio do mato, há limites para a solidão. Mas esta noite eu não estaria tão sozinho como esperava.
Quando decidi passar alguns dias sozinho, isolado, mais próximo a natureza e de mim mesmo, queria também ter alguma inspiração para escrever. A selva de pedra estava consumindo minha imaginação, precisa dar alento a minha mente. A questão é que não fui inspirado de maneira alguma, mas meus dias naquele lugar remoto rendeu-me ainda assim uma boa história.
Quando cheguei, após 2 horas a cavalo em estrada de terra, deparei-me com uma casa bem antiga, com paredes de barro e chão de terra. A casa ficava na beira de um pequeno barranco, onde logo abaixo havia um córrego, e o som das águas era tranqüilizador. A casa se estendia sobre o barranco, e os cômodos que ficavam suspensos tinham um assoalho de madeira que rangia ao andar sobre eles. Esta parte suspensa da casa formava um porão embaixo, e estava fechado, nem imagino a quanto tempo.
O sertanejo que me acompanhou até o local deu me algumas instruções, e indicou a direção onde morava e que se precisasse poderia chamá-lo, o problema é que ele morava há 1 hora dali... Bem, os vizinhos daquele lugar eram assim, um a 30 minutos, outros há 1 hora, enfim, era realmente o que eu procurava, ficar isolado.
Meu primeiro dia foi gasto limpando aquela casa, que não via a luz por muito tempo. Além de espantar morcegos que já faziam morada nas vigas de madeira que sustentava o telhado ainda tive que espantar todo tipo de inseto que estavam em todos os lugares. Havia uma cama, até com um colchão, feito de algo que parecia palha, mas como era prevenido levei meu próprio colchão inflável. Após muito trabalho a casa parecia habitável.
Após um dia cansativo, o descanso era merecido, quando a noite caiu acendi algumas velas para iluminar, pois não havia eletricidade, e eu preferi assim... Minha nossa onde estava com a cabeça?! Tentei ler algumas coisas, mas logo os olhos pesaram e me retirei para dormir. No meio da noite, havia ruídos, barulhos estranhos que vinham do lado de fora. O sertanejo havia me alertado que animais aparecem durante a noite e podem fazer barulhos, tranqüilizou-me dizendo que eu não precisava preocupar-me, mas que tomasse cuidado se fosse sair para fora, era bom carregar um facão por precaução. Meu cansaço era tão intenso naquela noite, que apesar dos ruídos eu continuei a dormir sem me incomodar com isto. Nos dias que se seguiram, apesar dos incômodos ruídos dos animais do lado de fora durante a noite, eu estava apreciando o local.
Em uma destas solitárias manhãs, o sol entrou pelas frestas da janela, do telhado, por cada abertura que havia naquela casa, que não eram poucas. Após o café da manhã, decidi andar pela localidade. Subi num pequeno monte que ficava logo atrás da casa. Lá de cima tinha uma visão melhor da natureza que me cercava. Bem no topo havia uma pequena capelinha abandonada, já estava com as paredes escuras pelo abandono, o pequeno portão que guardava a entrada estava caído, apesar de haver um grande cadeado na tentativa de manter a entrada lacrada, as dobradiças já haviam se corroído há muito tempo, tornando livre a entrada.
Sentindo-me atraído pela pequena construção esgueirei-me pelo portão tombado. Tendo que ficar curvado, pois o teto era baixo, tentava evitar que alguns morcegos que estavam ali atingissem minha cabeça, enquanto fugiam do intruso. Lá dentro, na parede oposta ao portão, havia um pequeno altar, com muitas imagens de santos, velas já queimadas, restos de flores e outros objetos que não identifiquei. Chegando mais perto do pequeno altar, notei 3 potes de vidro e conforme me aproximei tentando identificar o que havia dentro, aproveitando o pouco luz que entrava, esfreguei os olhos, forcei-os para identificar o que havia lá, mas o liquido era escuro e não conseguia ver. Curioso, retirei um dos potes dali e levei-o para fora, onde poderia examinar melhor. Assim que meus olhos se acostumaram novamente com a luz do lado de fora pude ver o que havia dentro do pote... Um arrepio subiu dos pés a cabeça e com um acuado grito de pavor deixei o pote cair, que espatifou-se ao bater numa pedra, espalhando o líquido que agora mostrava-se muito fétido e arremessando o objeto que estava dentro bem aos meus pés. E para meu espanto era um coração humano... E estava batendo! Com o susto e o medo, acabei chutando aquilo para longe. Com ondas de arrepio indo e vindo, entrei novamente na capelinha retirei os outros dois potes que haviam lá, e eles continham um coração, cada um deles e para meu assombro, batendo!
Corri daquele lugar, em pânico e lancei fora os potes, que caindo em terra fofa não quebraram. Ao descer do monte, parei para respirar e colocar meus pensamentos em ordem. Lembrando daqueles corações batendo, não pude encontrar nenhuma explicação plausível. Sabia bem que as pessoas que viviam no interior tinham todo o tipo de superstição e que deixavam as coisas mais estranhas nestas capelas, em busca que algum tipo de milagre, mas deixar corações humanos... E que batem?!
Voltei para casa tentando refletir sobre aquilo, mas quanto mais pensava, mais o arrepio percorria meu corpo e mais eu sentia medo. Mergulhado em meus pensamentos não vi o tempo passar, e logo vislumbrei o crepúsculo muito belo que enfeitava o horizonte. Decidi então que na manhã seguinte procuraria o sertanejo que me conduziu até o local e perguntaria sobre este assunto, e com certeza decidi também deixar aquele lugar.
Fechei as portas e janelas, e noite caiu, mas havia alguma luz que provinha da lua cheia que brilhava muito. Da cidade não da pra perceber como é belo e azul a luz da lua, e sua intensidade fornecia alguma visibilidade diante daquela escuridão total. Acendi as velas para iluminar, tentei dormir, mas a imagens daqueles corações batendo vinham a minha mente a todo instante. Após muito custo, consegui pegar no sono.
A madrugada adentrou e meu sono tornara-se cada vez mais profundo, quando foi interrompido pelos sons que vinham de fora. Tornaram-se tão intensos que me despertaram. Levantei-me e decidi dar uma olhada e ver quem me fazia companhia. Peguei uma da velas e dirigi-me até a janela de meu quarto com intenção de abri-la, pois parecia que os ruídos vinham mais intensamente daquele lado da casa. Lentamente e com certo cuidado para não fazer barulho, fui abrindo os ferrolhos da janela. Quando destravei-a, dei um passo para trás e empurrei as duas partes da janela que se abriram completamente. A lua brilhava e pude ver o terreno lá fora, não havia nada. Sentindo-me mais seguro, me aproximei da janela, parecia tudo em paz, pus a cabeça para fora, virei para a direita, não havia nada, virei para esquerda não havia nada. Olhei para baixo, e estava muito escuro, aproximei a vela para iluminar, e oh se arrependimento matasse! Daquela escuridão, levantou-se quem estava ali agachado... Um homem, vestido em trapos, com o corpo totalmente desfigurado, literalmente em estado de putrefação, com a pedaços da pele faltando, no lugar do olho esquerdo havia apenas um escuro e profundo buraco vazio. Fiquei congelado de pavor e medo, não sabia se corria, se gritava. Fui despertado daquele estado de choque com o urro daquela criatura, que mais parecia ter saído diretamente de uma tumba. Saltei para trás em pânico e a criatura saltou para dentro do meu quarto. Corri para o cozinha que dava acesso para a parte exterior, abri a porta em pânico e corri, deixando a casa para trás. Meu temor era tão grande que mal podia controlar as pernas, que estavam bambas, desajeitadamente tentei correr, mas acabei tropeçando numa pedra e caí com violência no chão, ralando meus joelhos e braços.
Em meio àquele pânico, eis que vi duas silhuetas desenhadas a luz da lua que se aproximavam em minha direção. Quando chegaram mais perto pude ver-lhes a face... Tão assustadora quanto ao da criatura que me surpreendera na janela, aqueles outros dois corpos putrefatos vinham em minha direção. Desta vez gritei, gritei muito e comecei a correr com todas as minhas forças. Sem saber ao certo que direção seguir, vi o monte onde estava a capelinha e lembrando dos terríveis corações que batiam, imaginei que tinham algo a ver com isso, decidi então subir novamente até o local.
Enquanto me esforçava ao máximo para subir, as criaturas me seguiam, com seus grunhidos e gemidos. A visão deles era terrível, me sentia num inferno, sendo perseguido por demônios por ter sido condenado por um crime terrível. Em meu desespero, ouvi rápidos galopes vindo em minha direção. “Oh não, um deles a cavalo!”, pensei desesperando-me ainda mais. Quando se aproximou, ouvi uma voz familiar.
- O que você fez? A voz perguntou-me asperamente, e eu reconheci como sendo a voz do sertanejo que me levara até a casa.
- É você? – Senti certo alivio em ver uma pessoa viva de verdade – O que são aquelas coisas? – Apontei para as criaturas que continuavam a subir o monte perseguindo-me.
- Não me diga que você retirou os corações da capela?! – Perguntou o sertanejo mais asperamente ainda.
- Sim... Mas... Eu não sabia de nada, o que diabos era aquilo???
- Escute bem seu idiota. Aqueles três são meus servos! - Servos, como assim? - Eram meus inimigos aqui na região, e eu resolvi torná-los meu servos, tomando-lhes o coração ainda vivos!
Escutei aquilo sem acreditar, agora não sabia se temia mais as criaturas que nos perseguiam ou o sertanejo que estava ali, que outrora havia sido tão hospitaleiro.
- Sim, tomei-lhes o coração e aprisionei-os naquela capela, e desta maneira tornei-me senhor deles. Eles não podem entrar em local sagrado e por isso nunca poderiam retirar os corações de lá. Todas as noites eles se levantam e me servem, meus inimigos me servem! Mas você, seu idiota, libertou-os quando tirou o coração deles de dentro da capela! Se não devolvermos os corações novamente para dentro da capela, eles vão nos matar e devorar!
- Como... Como você foi capaz de algo tão monstruoso assim...? – Perguntei incrédulo no que acabara de ouvir.
- Não me questione seu tolo, você tem seus pecados também! Onde você colocou os corações? - Estão lá, em algum lugar ao redor da capela.
- Vamos logo, temos que encontrá-los. O sertanejo desceu do cavalo, que parecendo sentir o que estava acontecendo ali disparou num galope incessante fugindo do local. Senti inveja daquele cavalo, queria poder correr como ele, para bem longe dali.
Chegamos ao topo, e começamos a procurar os corações. A noite dificultava muito, e eu não tinha a menor idéia de onde tinha caído. Não prestei atenção onde aquelas coisas asquerosas tinham caído. E ainda mais tinha que fazer isto com aqueles monstros se aproximando cada vez mais e ainda ter que ficar ouvindo os gritos e vociferações do sertanejo.
O que temíamos aconteceu... Não fomos capazes de localizar os corações e as criaturas nos alcançaram. Eu já havia aceitado a morte, enquanto o sertanejo continuava seus profanos gritos. Quando se aproximaram, as criaturas saltaram com grande violência contra o sertanejo, seu grito ecoou muito longe.
Mais uma vez fiquei em pânico e congelado com o que estava vendo. Aquelas criaturas começaram a devorar o sertanejo, que agonizava e tremia o corpo todo. Queria aproveitar a chance para fugir, mas não conseguia mover um músculo sequer. Assistindo aquela cena perturbadora e indescritível, uma das criaturas parece ter encontrado o que procurava. Penetrou sua mão no peito do sertanejo, que ainda de olhos abertos parecia perceber tudo, e com violência o mostro arrancou-lhe o coração, que batia em sua mão.
Cai sentado no chão, com menos disposição ainda para fugir. Os três levantaram-se e olharam para mim e caminharam em minha direção. Um deles tinha o coração do sertanejo pulsando em sua mão. Ao se aproximarem, percebi que não queriam me machucar, mas queriam que eu fizesse algo, ou melhor, ordenaram do jeito deles que eu fizesse um "favor".
O que estava com o coração na mão, apontou com a mão livre o coração e depois apontou para a capela. Entendi que queriam que eu pusesse o coração do sertanejo dentro da capela. Horrorizado e com nojo daquele coração batendo e respingando sangue, eu comecei a fazer não com cabeça e a me arrastar para trás. Violentamente, uma das criaturas agarrou-me pela camisa e pôs me de pé e colocou-me bem na frente do coração ainda batendo. O que segurava o coração segurou minha mão com muita força e colocou aquele órgão batendo em minha mão. Naquele instante senti náuseas que quase vomitei. Mas enquanto controlava meu estômago, a mesma criatura que pôs-me de pé me empurrou fortemente em direção capela que cheguei a cair de joelhos deixando o coração cair. Com um grunhido extremamente assustador, as criaturas se aproximaram, pareciam zangadas comigo, por ter deixado o coração cair. Tentando controlar meu repudio, peguei novamente o coração que batia e sem pestanejar fiz como eles queriam, coloquei o coração do pobre sertanejo no altar. Sabendo que ali dentro eu estava seguro, não sai de lá. Olhando para fora, espantei-me ainda mais... Vi o sertanejo levantar-se, completamente lavado de sangue, lançou-me um olhar melancólico e fez gelar até a alma. As outras 3 criaturas estavam gritando para o sertanejo recém acordado, pareciam muito nervosas. Começaram a agredir o sertanejo, que totalmente submisso recebia todos os golpes até ficar de joelhos. E assim continuaram, gritavam, pareciam dizer coisas, mas era incompreensível e incessantemente torturam o sertanejo. Não sei se ele sentia dor, mas por sua expressão parecia estar sofrendo muito. E assim permaneceram o resto da noite, e eu fiquei ali, assistindo a tudo, vendo de camarote aquele filme de terror.
Finalmente começou a nascer o sol, e então as 3 criaturas e o sertanejo, como se derretessem, tornaram-se num líquido cinza que escoou pela terra e assim voltaram para as profundezas. Sai de dentro da capela procurando entender o que aconteceu. Depois do pesadelo e de colocar as idéias em ordem, percebi que agora o sertanejo estava sob controle das criaturas, que outrora eram 3 pessoas, 3 desafetos do sertanejo. Com a luz do sol, pude localizar os corações. Por um instante pensei “Vou colocá-los de volta na capela”, mas ao refletir sobre a maldade do sertanejo, decidi que eu não colocaria os corações, mas lancei-os longe. E enquanto aqueles três corações permanecerem batendo em algum lugar, todas as noites o sertanejo receberá sua pena.
Mesmo estando exausto, recolhi minhas coisas e fui embora daquele medonho local, que ao invés de me trazer paz trouxe-me um pesadelo... Da pior espécie.